Em contraste à política de ódio, mulheres do campo e da cidade semeiam resistência nas ruas de Brasília
Por Lizely Borges (Terra de Direitos), Thays Puzzi (Unicopas) e Juliana Barbosa (MST)
As longas vias da Esplanada, em Brasília (DF) foram coloridas, neste domingo (08), pela diversidade de vozes, bandeiras e origens. Marchantes em ato alusivo ao Dia Internacional das Mulheres, integrantes de diferentes movimentos populares e organizações sociais do Brasil e de fora trouxeram à capital federal cor e a reafirmação da urgência da efetivação dos direitos humanos. Em tempos no qual o ódio, a misoginia e a adoção de um modelo de desmonte social são práticas institucionais – em especial pelo Legislativo e Executivo, a alegria das mulheres marchantes contrasta com a sisudez dos tempos atuais.
O ato realizado nesta manhã reuniu mais de 5 mil mulheres e inaugura o conjunto de mobilizações nacionais realizadas em março. No dia 14 as ruas devem ser tomadas novamente pela denúncia dos dois anos do assassinato da vereadora Marielle Franco (Psol) e o motorista Anderson Gomes. Um pouco depois, no dia 16, o objeto das marchas é a denúncia do desmonte da educação, com uma greve nacional.
“O março, para nós, simboliza a inauguração de um período de lutas, como se fosse o desabrochar de uma primavera. A luta que as mulheres têm a capacidade de colocar como pauta serve como impulso para outras lutas”, aponta a integrante da Direção Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Ceres Hadich.
A presença no ato das mais de 3,5 mil trabalhadoras rurais participantes do I Encontro Nacional da Mulher Sem Terra colabora para um amplo diálogo entre campo e cidade. Para Hadich, esse diálogo se coloca como ainda mais urgente diante da retração dos direitos, como o aumento da miséria e do desemprego.
“Neste período de tanta dificuldade, de necessidade de resistência e de tantos limites para a classe trabalhadora, conseguir se organizar e colocar suas pautas [durante o ato], a gente fazer um 8 de março bonito, massivo, simbólico, com conteúdo, mas também com luta, aqui, com mulheres Sem Terra, é bastante importante. A gente recoloca na pauta da sociedade brasileira a reforma agrária e as pautas das mulheres trabalhadoras brasileiras”, destaca.
“Vivemos um desmonte da políticas de reforma agrária e as demais políticas sociais, depois de tantas lutas e conquistas feitas por mulheres. Esse governo quer nos silenciar, principalmente o povo do campo, e as mulheres ainda mais”, complementa a integrante da direção nacional do Movimento de Mulheres Campesinas (MMC), Mirele Diovana.
Desmonte das políticas públicas e machismo
O desmonte das políticas públicas destinadas para o combate à violência sofrida por mulheres é exemplar da pouca prioridade conferida à pauta pelo governo federal. No primeiro ano de mandato de Jair Bolsonaro (sem partido) a Secretaria da Mulher, órgão vinculado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, empenhou R$ 5,3 milhões para investimento na execução de políticas. O valor contrasta, por exemplo, com o total de R$130 milhões empenhados para a mesma política durante o penúltimo ano sob gestão de Dilma Rousseff, em 2015 (Portal da Transparência).
Não apenas a baixa execução orçamentária revela sobre a política institucional do governo. As frequentes manifestações misóginas do presidente e dos parlamentares do campo conservador, como as dirigidas contra a jornalista Vera Magalhães, demonstram uma prática institucional de violência contra as mulheres.
“Nós somos criminalizadas justamente porque gritamos pela liberdade das mulheres. Para que as mulheres possam fazer suas próprias escolhas”, aponta a militante do Assentamento Martir de Abril, Jane Cabral, localizado em Belém (PA). “Vir para as ruas é conseguir colocar em pauta a políticas para mulheres, mostrar para a sociedade isso e que nós queremos que essas políticas sejam retomadas. Vemos o aumento do feminicídio no Brasil inteiro. Aqui no Distrito Federal é um dos estados que mais mata mulheres”, denuncia a integrante da coordenação nacional do Levante Popular da Juventude, Katty Helen.
Nossa arma é da alegria, das cantorias, da cultura, da produção agroecológica”, diz Jane Cabral, trabalhadora Sem Terra.
Em novembro a Câmara Legislativa do Distrito Federal instaurou uma Comissão Parlamentar Inquérito (CPI) do feminicídio. O DF contabiliza 60 crimes de feminicídio apenas em 2019, um aumento de 27% em relação ao ano anterior, quando registrou 47 assassinatos de mulheres. “A gente sabe que as trabalhadoras rurais pegam na enxada e labutam junto com seus companheiros e quando elas trazem essa discussão para a cidade é para mostrar que no campo também existe feminicídio, mas que é silenciado”, relata a assessora parlamentar do deputado distrital Fábio Felix (Psol), Daniele Sanches. Félix é relator da CPI.
Denúncias e as resistências reafirmadas pelas mulheres Sem Terra
Bandeiras, vassouras, colheres de pau, batuques e cantorias se misturaram aos gritos de ordem das mulheres Sem Terra. Denúncias e anúncios seguiram em fileira durante toda a marcha. As manifestações das mulheres Sem Terra foram organizadas em alas, com temáticas de forte presença nas suas vidas, como a reforma agrária popular e a contaminação da terra e alimentos pelos agrotóxicos.
“Nós somos as bruxas que vocês não conseguiram matar. Queimaram muitas mulheres, mas nós estamos aqui. E nós estamos aqui para continuar a luta de todas essas mulheres”, reforçou Jane Cabral. A ala carregada de ancestralidade, trouxe a história daquelas que desafiaram e que desafiam o patriarcado. “Gritamos para que a gente possa ter vida. E o que nós queremos é viver uma vida de alegria, de amor e de poesia”, completou.
A busca por essa sociedade em que a mulher possa viver, de fato, em liberdade requer ainda mais resistência em tempos em que o próprio presidente da República reforça um discurso machistas, sexista e misógino. A ala “Ela quer dar” veio em protesto às falas machistas de Bolsonaro. “Ele tem várias falas machistas e preconceituosas e, por isso, nós decidimos fazer essa ala com esse nome. Se ela quer dar, qual é o problema?”, questionou Eliandra Fernandes, da Direção Nacional do MST pelo Espírito Santo.
A certeza de que o patriarcado precisa ser destruído para que uma sociedade realmente livre possa nascer foi um dos sentimentos que moveu as milhares de mulheres que coloriram a capital do Brasil neste 8 de março. “Nós sabemos que para construir essa sociedade serão muitos calos nos pés de caminhada, muitas terras ocupadas. Aqui, para nós, é o corte do arame e a construção do dia de amanhã mais bonito, onde a gente seja livre para cantar e amar”, destacou Lucinea Duraes, do pré-assentamento Fábio Henrique Prado, na Bahia, e da Direção Nacional do MST. Trazendo o anúncio dessa nova sociedade, a ala “Nós que amamos a revolução resistiremos”, contou com muita alegria e beleza o mundo que as mulheres Sem Terra pensam para toda a classe trabalhadora.
“Um mundo onde a gente tenha uma alimentação saudável e com fartura para todos os trabalhadores e trabalhadoras. Um mundo onde a gente consiga distribuir as riquezas para que todas e todos tenham acesso a todos os bens. Que a gente tenha educação. Que a gente tenha comida. Que a gente seja livre para cantar e amar!”, diz Lucinea Duraes, do pré-assentamento Fábio Henrique Prado, na Bahia, e da Direção Nacional do MST.
Cada passo dentro da marcha representou um passo a mais contra esse sistema que reforça e promove práticas genocidas pelo agronegócio, estimula o feminicídio e oprime mulheres do campo e da cidade. “Em Mato Grosso, por exemplo, a cada dois, três dias, uma mulher é assassinada. É atacada e violentada”, relatou Catarina Lima, do assentamento Egídio Bruneto, de Cuiabá (MT). Ela que caminhava na ala “Os esfarrapados da pátria amada Brasil”, reafirmou a proposta de construção da Reforma Agrária Popular. “Estamos nesta batalha. Somos mulheres em luta semeando resistência”.
Uma resistência ativa capaz de estremecer as estruturas. Levando nos punhos a agroecologia como uma das armas, as mulheres camponesas também denunciaram o uso abusivos de agrotóxicos. “Com a agroecologia, o alimento saudável, nós vamos conseguir avançar e fazer essa unidade entre campo e cidade acontecer”, observou Catarina.
Sob atual comando de Teresa Cristina (DEM-MS), ruralista ex-presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) tem usado dos seus expedientes para avanço do registro de insumos químicos. Em um ano de governo de Bolsonaro, o Ministério liberou a marca recorde de 503 registros de agrotóxicos.
Unidade
Para a representante da Via Campesina Nacional, Etelvina Maria Masioli, a pluralidade de expressões presentes no ato demonstram a bem sucedida construção de unidade, de organizações conectadas pelo reconhecimento das pautas e lutas em comum. “Entendemos com muito mais força o momento histórico que estamos vivendo e a necessidade da construção da unidade, de encontrar os elos que nos unificam para enfrentarmos esse projeto de morte, enfrentarmos tanto ódio, o fascismo e enfrentar esse governo de tantos retrocessos”, destaca. Para ela a força do ato está também na diversidade presente. “A diversidade que nós temos só traz grandeza e riqueza porque cada movimento, cada organização, tem um acúmulo histórico”, complementa.
Ainda que o ato contenha denúncias e memórias sobre as mulheres que tombaram – pela violência do Estado e da misoginia – para a liderança indígena Sônia Guajajara o tempo é de encontros na luta. “Estamos presentes porque o momento é de unidade. Unidade das lutas, das mulheres do campo e da cidade. Nós, indígenas, estamos juntas nesse processo de enfrentamento desse governo que só destrói, só viola direitos e que autoriza o genocídio indígena. Para nós é momento de luta”, destaca.