Teatro e luta de classes
Por Douglas Estevan*
Da Página do MST
No dia 27 de março se celebra o Dia Mundial do Teatro. A data foi instituída em 1962 pelo Instituto Internacional do Teatro, um órgão criado em 1948 e ligado à Unesco.
Como uma das instituições ligadas à ONU, organização criada ao término da Segunda Guerra Mundial, a Unesco atuava na promoção da paz mundial. A data surgiu no contexto de reconstrução de uma parte do mundo destruído pelas guerras e pelos regimes fascistas e nazistas.
O teatro sempre esteve presente entre as atividades humanas. Alguns historiadores apontam as pantomimas presentes nos ritos de caça praticados pelos povos antigos como uma das primeiras manifestações teatrais.
Nessa perspectiva, inclui-se os rituais indígenas e as práticas xamânicas, a transformação em outro por meio de máscaras e uma série de rituais e danças encontrados nas mais variadas épocas históricas e em todas as partes do mundo.
Um dos maiores nomes da história do teatro ocidental foi o teatrólogo brasileiro Augusto Boal (1931-2009). Em uma de suas obras mais importantes, intitulada Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas, Boal inicia suas reflexões enfatizando que “todo teatro é necessariamente político”, porque políticas são todas as atividades humanas, prossegue ele.
Na tradição teatral ocidental, a prática do teatro se inicia na Grécia. O teatro grego tem sua origem em festas da colheita, em cantos e danças coletivas, nos coros dos agricultores na colheita da uva.
O apogeu do teatro grego se deu com os autores Ésquilo, Sófocles e Eurípedes, num momento da história da Grécia marcada pela sucessão dos regimes tirânicos e a instituição do regime democrático. Forma de arte com origens camponesas e comunitária, o teatro tinha um papel de extrema importância nos debates sobre a vida política e as questões democráticas naquele período.
Importante meio de controle político, de formação da consciência e de educação popular, lembremos que o teatro foi uma das primeiras formas utilizadas pelos colonizadores portugueses na tentativa de controle das populações indígenas que se encontravam no Brasil.
Chegado ao Brasil em 1553, o Padre Anchieta ficou profundamente impressionado pela cultura indígena, marcada por músicas, danças, cantos e representações que marcavam seus rituais.
O teatro foi o meio usado por Anchieta para tentar catequizar os indígenas e travar batalhas ideológicas num momento em que os portugueses enfrentavam militarmente os franceses para tentar garantir o controle da colônia.
Um teatro marcado pela colonização e pelas guerras, pelo extermínio de etnias indígenas. Anchieta soube combinar os elementos locais com seu projeto controlador, mas o resultado nem sempre foi o esperado. A resistência indígena também se mostrava no plano cultural.
Nos dias de hoje, torna-se mais comum entre artistas e historiadores caracterizar as próprias expressões indígenas como fundadoras de nossa tradição teatral, revisando a historiografia tradicional que atribuía os méritos a Anchieta.
O teatro é uma arma. Essa palavra de ordem que marcou os grupos de teatro revolucionários na década de 1920 no contexto das revoluções socialistas que se espalhavam pela Europa e pelo leste europeu foi retomada por Augusto Boal nos anos 1960 no Brasil e na América Latina. Naquele contexto revolucionário, o teatro teve um papel de importância inigualável.
Várias formas novas de teatro foram elaboradas partindo das tradições da cultura popular. Surgiram formas como o teatro de agitação e propaganda (agitprop), teatro jornal, teatro tribunal, teatro invisível, entre outras. A experiência mais massiva foi a dos grupos conhecidos como Blusa Azul (nome adotado em função dos uniformes usados pelos trabalhadores).
A experiência metodológica do Blusa Azul foi compartilhada por cerca de sete mil grupos na URSS e mais de dez milhões de pessoas assistiram suas apresentações. A Blusa Azul também teve influência sobre Brecht e Piscator, algumas das principais referências do teatro político alemão.
O Exército Vermelho, como parte de suas atividades de formação e diálogo com a população, criou 472 grupos de teatro. A Tomada do Palácio de Inverno, em outubro de 1917, foi o acontecimento que desencadeou o processo da primeira revolução socialista vitoriosa.
Em 1920, para a comemoração da Revolução, foi realizada uma encenação daquele acontecimento por mais de oito mil pessoas. Essa apresentação foi um dos maiores símbolos da democratização e popularização do teatro, das concepções que norteariam o teatro soviético e todas as experiências seguintes de teatro em contexto de lutas sociais. Mais de cem mil pessoas presenciaram a encenação.
No Brasil e na América Latina também encontramos dezenas de exemplos de experiências teatrais ligadas aos movimentos sociais e aos processos de lutas populares. Uma das referências mais simbólicas em nosso continente foi realizada por Augusto Boal.
Tendo participado do Teatro de Arena, das iniciativas dos Centros Populares de Cultura (CPC), das experiências de alfabetização de Paulo Freire, da atuação das Ligas Camponesas, dos movimentos estudantis e sindicais, além da resistência empreendida contra a ditadura, Boal desenvolveu uma das maiores experiências de socialização dos meios de produção teatral, sintetizada nas diversas formas do Teatro do Oprimido. Para Boal, todos podem fazer teatro.
Em 2001, Augusto Boal iniciou um processo de formação teatral com militantes do MST, que resultou na formação de dezenas de grupos em todo o país, organizados na Brigada Nacional de Teatro do MST – Patativa do Assaré, trabalhando com várias técnicas do Teatro do Oprimido e outras formas teatrais.
Uma ampla produção dramatúrgica foi realizada pelos militantes do movimento, com peças abordando nossa formação colonial, as lutas camponesas, negras e indígenas, questões de gênero e raciais, problemáticas ambientais e do agronegócio, os impactos destrutivos do capitalismo e do imperialismo.
A intervenção teatral mais significativa do MST foi realizada na Marcha Nacional de 2005, quando 270 militantes de todo o país participaram de uma encenação do que chamamos de teatro procissão e dezenas de peças foram apresentadas nos mais de vinte dias de marcha para os 12 mil marchantes.
O trabalho teatral do MST se expandiu em articulações com outros movimentos e com dezenas de pesquisadores, artistas e grupos de teatro por todo o país e também de outros países.
Tomando como referências às experiências que Boal encabeçou no início dos anos setenta, com a organização da Frente de Trabalhadores da Cultura de Nuestra América, o MST e outros movimentos sociais vem articulando diversos grupos, movimentos e artistas e organizando uma série de Escolas de Teatro e Vídeo Popular.
Atualmente existem escolas em SC, SP, RJ, DF e experiências na Argentina e no Uruguai, formando centenas de militantes na arte teatral e de vídeos e aprofundando os desafios no campo da luta ideológica e estética.
O teatro é uma forma de intervenção humana, um forma de luta social e política, uma das várias formas de ação criada pela classe trabalhadora na luta pela sua emancipação.
*Douglas Estevan é do setor de cultura do MST