Nossa luta e a crise: cuidar de nós, da vida das pessoas e da natureza!
Por Djacira Araújo*
Da Página do MST
O grande escritor Eduardo Galeano trata do direito à vida em um belíssimo conto sobre os dez mandamentos da tabua de Moises, exaltando a importância de amar a si próprio e amar ao próximo como a si mesmo. Mas para ele, como só isso não basta, propõe incluir um novo mandamento que teria se esquecido Deus de anunciar a Moisés: “Amarás a natureza de que tu formas parte, como amas a ti mesmo”.
A mensagem de Galeano é de que não é possível ter uma vida saudável se não cuidamos da natureza, da terra, das pessoas e de nós mesmos. Da mesma forma que é impossível curar as pessoas e suas enfermidades se não tratarmos as enfermidades e males que a sociedade tem praticado contra a terra, as pessoas e a natureza.
A sociedade tem maltratado a natureza e por isso a humanidade está enferma. O surgimento de um vírus como a COVID-19, que está afetando a saúde das pessoas no mundo inteiro, está relacionado com as mutações de vírus infecciosos que são transmitidas de animais para seres humanos. Esse vírus se reproduz rapidamente sofrendo mutações o tempo todo e se tornado sempre mais perigoso. As circunstâncias nas quais essas mutações ocorrem dependem das ações humanas e seus sistemas de organização social e de produção.
As mutações virais estão relacionadas à manipulação biogenética e/ou agressões e modificações ambientais decorrentes de um modelo de produção extrativista e capitalista que destrói a biodiversidade afetando as cadeias reprodutivas das espécies e o equilíbrio do ecossistema.
Assim, para combater as causas que fazem surgir pandemias e crises sanitárias, é necessário cuidar das pessoas e da natureza de quem somos parte, adotando sistemas produtivos ecologicamente corretos para que se reestabeleça a sustentabilidade entre sociedade, trabalho, natureza e saúde humana.
A monocultura capitalista, representada pelo agronegócio, se caracteriza pela manipulação genética de plantas, animais e pelo uso de agrotóxicos. Por isso, é um modo de produção extremamente nocivo à natureza, pois o mesmo contamina a terra, a água, o meio ambiente e os alimentos, criando doenças que atingem os trabalhadores agrícolas e os consumidores dos alimentos. No Brasil, consumimos através dos alimentos, o equivalente a 7,3 litros de agrotóxicos por pessoa anualmente.
Lições que podemos extrair da pandemia que já atinge mais de 160 países:
- A saúde do ser humano depende do equilíbrio sustentável e saudável entre as pessoas e sociedades na relação com a natureza, o meio ambiente e as relações entre as nações;
- A saúde é, antes de mais nada, um bem comum e público;
- Uma boa alimentação é condição elementar para fortalecer a imunidade das pessoas e garantir boas condições de saúde;
- A produção e o consumo de alimentos saudáveis livres de produtos químicos são parte da cura das enfermidades e doenças;
- A pandemia contribuirá para agravar a crise social, aumentando a fome, as desigualdades e a miséria no mundo;
- Estamos vivendo uma crise estrutural e profunda do sistema capitalista que revela a sua insustentabilidade e incapacidade de proteger a saúde e a vida das pessoas.
O MST e nossa luta: Lutar, construir Reforma Agrária Popular!
Neste cenário de crises e pandemia, é fundamental que adotemos os cuidados pessoais de higienização e isolamento social que estão sendo recomendados pela Organização Mundial da Saúde para controle e prevenção do novo coronavírus. Porém, sem descuidar da nossa base, dos nossos territórios e de manter a solidariedade entre a classe trabalhadora, lutando pela Reforma Agrária Popular e um novo projeto de Brasil. Neste sentido, temos por desafio
a. Produzir alimentos saudáveis, cuidar do meio ambiente e da natureza
“A boa alimentação é o remédio para todas as enfermidades”. Proverbio popular. Não existem medicamentos e nem vacina para combater a pandemia do novo coronavírus. A cura possível até agora, depende da capacidade imunológica das pessoas e isso tem a ver com as condições alimentares e os hábitos saudáveis de vida. Isso reforça a nossa responsabilidade de produzir alimentos sem veneno e contribuir para que as pessoas tenham uma dieta alimentar de maior qualidade.
Para nós, a principal tarefa de todos camponeses e trabalhadores Sem Terra e do MST, é produzir alimentos saudáveis e de baixo custo, para que não nos falte comida e para praticarmos a solidariedade, bem como para abastecer as feiras locais com produtos agroecológicos preservando as diversas culturas alimentares do nosso povo. Porém continuamos com o desafio de potencializar ainda mais essa produção e fazer com que o alimento sem veneno chegue nas mesas de todas as pessoas, uma vez que o agronegócio não produz alimentos e sim, commoditties para exportação.
b. Lutar pela reforma agrária, plantar árvores e defender nossos territórios
No Brasil, vem ocorrendo uma maior concentração de terras pelo agronegócio e com aumento dos despejos e a violência no campo, inviabilizando os assentamentos de reforma agrária e os territórios de quilombos e indígenas. O governo tem optado pelo agronegócio investindo em um sistema de produção altamente nocivo ao meio ambiente e a vida das pessoas.
A luta pela reforma agrária e por um novo projeto de produção com base na agroecologia e na cooperação é o centro da luta do MST e torna-se mais necessária nesta conjuntura de crise sanitária e de aumento dos conflitos no campo.
As organizações camponesas do mundo e do Brasil têm alertado sobre as agressões e desastres ambientais, enfermidades e doenças provocadas pelo modelo de produção do agro, hidro e minério negócio. Não podemos esquecer o incêndio da Amazônia, os crimes da Samarco em Mariana em 2015, os crimes da Vale em Brumadinho em 2019 e o vazamento de óleo nas praias brasileiras. As florestas nativas estão sendo substituídas por desertos verdes e o governo brasileiro ainda liberou o uso de mais de 500 novos agrotóxicos para uso nas lavouras.
O MST vem realizando a luta pela terra pautando um projeto de reforma agrária popular que preserva a natureza. Passamos a desenvolver a agroecologia e a cooperação agrícola e hoje já somos um dos maiores produtores de produtos agroecológicos no país, todavia necessitamos fazer muito mais.
Os nossos assentamentos do MST foram conquistados com muita luta e sacrifícios e a maior parte das terras dos assentamentos foram degradadas pelo monocultivo ou pela pecuária intensiva realizados pelos fazendeiros e latifundiários do agronegócio. Hoje, para produzirmos, temos necessitado eliminar pragas, recuperar o solo, as nascentes e as matas.
O MST desencadeou uma ampla campanha nacional de plantio de árvores em todos os nossos territórios. A meta é plantar 100 milhões de árvores nativas e frutíferas em 10 anos e com isso recuperar a capacidade de regeneração da terra e das matas, recuperar as nascentes, produzir com abundância alimentos saudáveis preservando a biodiversidade da fauna e da flora de cada bioma do qual faz parte os nossos assentamentos.
c. Defender o SUS e medidas de assistência aos trabalhadores
A sociedade capitalista não leva em conta a integração entre sociedade, trabalho, natureza e saúde humana. E agora a crise estrutural do capitalismo aparece também como uma crise sanitária biologicamente insustentável, pois as nações estão despreparadas para enfrentar a pandemia da COVID-19. Mesmo as potências econômicas capitalistas que investem bilhões de dólares em tecnologias e na produção de armamentos e guerras, revelam-se incapazes de assegurar a proteção à saúde das pessoas. Estes países não dispõem de serviço e infraestrutura de saúde pública capaz de responder com eficiência o combate a proliferação da Pandemia da COVID-19 e a cura das pessoas infectadas.
Os Estados Unidos, a maior potência capitalista do mundo, é um dos países mais afetados com a pandemia. Com o seu neoliberalismo e sua política privatista, se desmontou todo o sistema de saúde pública, mercantilizou-se os planos de saúde e agora faltam profissionais e hospitais públicos para tratar os doentes. As clínicas e corporações privadas não são capazes de cuidar da saúde das pessoas.
O Brasil também não está preparado para enfrentar a pandemia. O sistema de saúde, previdência e seguridade social foi estrangulado com as reformas, os cortes dos gastos públicos e a aprovação da PEC 95 pelas forças golpistas que agiram como se nada semelhante a uma pandemia devastadora pudesse afetar o país. Para piorar, o presidente minimiza os impactos da pandemia na saúde das pessoas, tratando uma grave doença viral, infectocontagiosa e de rápida propagação, como uma “gripezinha”.
Precisamos manter a luta em defesa do SUS e da valorização e apoio aos profissionais de saúde, pois a saúde é um bem comum e público. Mas devemos exigir a ação do Estado com uma política de saúde pública adequada com meios necessários e suficientes para responder a prevenção e combate as doenças e estar preparado para enfrentar a emergência de pandemias.
d. Cultivar agroecologia e a pesquisa cientifica independente do capital
A ciência e as tecnologias não podem ser manipuladas em função dos interesses do grande capital. É nossa prioridade lutar pela educação superior no campo e educar as novas gerações, cultivando conhecimentos, tecnologias, hábitos e novos valores que contribuam com o desenvolvimento humano.
Recentemente, pesquisadores da Universidade do Estado de São Paulo, criaram um respirador quinze vezes mais barato que os respiradores disponíveis hoje no mercado que, se produzidos pela indústria nacional, poderia salvar milhares de vítimas fatais. Entretanto, governo deixou de investir nas universidades públicas, na pesquisa e na produção de tecnologias nacionais, tornando o Brasil totalmente dependente das tecnologias importadas.
Para nós, o governo e o Estado devem investir recursos públicos no desenvolvimento da ciência e das tecnologias sustentáveis. E isso inclui desenvolver “a agroecologia”, enquanto ciência da vida, inseparável da luta pela soberania alimentar e da construção de novas relações entre as pessoas e a natureza, a sociedade e meio ambiente.
e. Praticar a solidariedade
Atualmente, 12 milhões de trabalhadores brasileiros estão desempregados e 38,3 milhões trabalham na informalidade e em trabalhos preconizados. E nesse contexto da crise sanitária, política e econômica que estamos vivendo, mais trabalhadores perderão os empregos, pessoas ficarão sem teto pela falta de condições de pagar aluguel, água, energia. No campo, a violência é crescente em decorrência da falta de uma política de reforma agrária e das investidas do agronegócio para se apropriar da terra e das riquezas naturais (água, petróleo, biodiversidade, etc.) para tentar se salvar da crise.
Neste contexto tão difícil para todos os brasileiros, devemos nos colocar ao lado do povo, lutando, nos organizando, prestando apoio e solidariedade para enfrentar a batalha contra a COVID-19. A prática da solidariedade é fundamental para salvar vidas, ela é valor e princípio da nossa luta e organização. A burguesia brasileira, seus representantes políticos e o presidente Jair Bolsonaro estão mais preocupados em preservar os “negócios” do que salvar a vida das pessoas.
O nosso setor de saúde e os médicos do MST tem acúmulo e prática em saúde popular e podemos organizar formas de orientar nossa base e as comunidades ao nosso redor sobre como se cuidar e se prevenir contra a proliferação do vírus. Mas não devemos deixar de denunciar a precarização da saúde pública e cobrar do Estado a estruturação deste sistema e a valorização e apoio aos profissionais, bem como a garantia de infraestrutura e Unidades Intensivas de Tratamento para os pacientes infectados. Também necessitamos estimular a organização de comitês de solidariedade nos municípios onde temos bases organizadas do MST, apoiar campanhas humanitárias e doar alimentos saudáveis à asilos, escolas, hospitais, moradores de ruas e famílias desempregadas.
Todavia, compreendemos que a solidariedade entre os trabalhadores é essencialmente a unidade na luta em defesa de projeto popular para o Brasil. Para nós do MST, significa reafirmar a nossa disposição de lutar e construir a Reforma Agrária Popular como possibilidade concreta de criar condições de trabalho, moradia para os trabalhadores e produzir de alimentos saudáveis para o povo brasileiro.
* Educadora da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) e dirigente do MST na Bahia
** Editado por Luciana Console