Enquanto Bolsonaro minimiza COVID-19, assentados alimentam pobres e ajudam doentes
Por Rebecca Tarlau*
Do The Conversation
O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, vem há meses insistindoque o novo coronavírus não é uma ameaça séria. Apesar das medidas de isolamento instituídas em meados de março, seu governo deixou grande parte dos 209 milhões de brasileiros sem nenhuma ajuda federal durante a pandemia.
O Brasil tem o maior número de casos de COVID-19 na América Latina. São 101.826 casos confirmados e 7.051 mortes registradas até o dia 4 de maio. Apesar disso, Bolsonaro continua com atos de imprudência ao cumprimentar normalmente as pessoas, abraçar apoiadores e incentivar a reabertura do país.
Alguns governadores estão desafiando o presidente direitista e seus pedidos para reabrir a economia e em abril, Bolsonaro demitiu Henrique Mandetta, até então Ministro da Saúde, por promover o distanciamento social.
Apesar de o Congresso ter aprovado um pagamento mensal de R$ 600 para ajudar 54 milhões de recém-desempregados, a dificuldade e a burocracia para o cidadão conseguir receber o auxílio é um relato frequente pelo país. Neste contexto, com a quase inexistente ajuda federal, associações de bairros, igrejas, grupos comunitários e sindicatos estão auxiliando os brasileiros que passam por necessidades.
Uma das iniciativas da sociedade civil se destaca pelas suas atividades de apoio à população. Contando com uma vasta rede de assentamentos, médicos, escolas e restaurantes, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra está providenciando comida, cuidados médicos e outros tipos de suporte para centenas de milhares de brasileiros em todo país durante a pandemia.
Trabalhadores Sem Terra mudam o Brasil
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra nasceu em 1984, depois de um grupo de famílias sem-terra ocuparem terras rurais abandonadas e improdutivas. O Brasil tem uma distribuição de propriedade agrária extremamente desigual. Um por cento da população é dona de 50% da terra produtiva.
De acordo com a lei brasileira, a terra fértil deve cumprir um “propósito social”. As ocupações fazem então um papel de forçar o governo a comprar as fazendas improdutivas, permitindo que os sem-terra as utilizem e se tornem assentados, não por direito de posse, mas por “direito de uso”. Desde seu surgimento, o Movimento Sem Terra já ajudou 1,5 milhões de trabalhadores rurais a terem acesso ao plantio.
Minha pesquisa sobre este movimento rural brasileiro se dedica ao estudo do que acontece com os assentados depois que ganham o direito à terra. Esses novos trabalhadores rurais precisam de mais do que áreas de cultivo – precisam de casa, escolas para seus filhos, saúde, fertilizantes e em muitos casos, treinamento.
Sendo um movimento militante, o MST organiza encontros e protestos pedindo que o governo brasileiro ajude as comunidades agrícolas. Em menor escala, ele também conta com uma rede de instituições dedicadas aos assentamentos rurais.
Em parceria com governos de estados e municípios em 23 dos 26 estados do Brasil, o Movimento Sem Terra ajuda a coordenar 170 clínicas de saúde comunitárias, 100 cooperativas agrícolas, 66 cooperativas de produção de alimentos e 1.900 associações de trabalhadores rurais, de acordo com os dados da própria organização. Essas atividades de operação conjunta, desenvolvidas ao longo dos últimos 35 anos, são financiadas parcialmente pelo governo, mas mantidos e administrados pelo MST.
Como documentei em 2019 em meu livro sobre iniciativas educacionais do Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra, a organização também gerencia dois mil programas em 80 universidades, além de participar da gestão de alguns. O sistema educacional do MST já contribuiu para a formação de mais de 400.000 alunos desde 1984.
A solidariedade na prática
Neste momento, todos esses recursos estão sendo redirecionados ao combate da pandemia do novo coronavírus. O Movimento já doou mais de 500 toneladas de produtos, como melancia e mandioca, para hospitais e bairros e transformou seis restaurantes urbanos em refeitórios para a população de rua.
Além disso, centros educativos foram transformados em hospitais provisórios onde trabalham parte dos 130 médicos organizados do Movimento. O MST também está fazendo uma campanha de doação de sangue e produzindo álcool em gel, sabão e máscaras para clínicas locais.
Cerca de 10 mil professores que integram o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra estão ajudando escolas públicas do país a se adaptarem ao ensino a distância.
Para um público imerso no ceticismo do presidente Jair Bolsonaro sobre o novo coronavírus, a rede de comunicação do Movimento, que inclui jornais, estações de rádio, redes sociais e lives – geralmente utilizadas para compartilhar notícias da organização – agora está divulgando informações sobre saúde.
Apesar do MST ser uma inciativa rural, a sua resposta à pandemia abrange as cidades também. Para alimentar famílias que passam fome em Santa Maria da Boa Vista, um município pobre na região do Nordeste, o militante Ronaldo Rodriguez pediu doações aos seus companheiros Sem Terra.
Em apenas um dia, sua equipe arrecadou três toneladas de produtos de assentamentos cujos trabalhadores adquiriram suas terras com ajuda do governo. “Estamos praticando o distanciamento social, mas também a solidariedade comunitária”, afirmou Rodriguez, supervisor de uma escola rural, que se formou na faculdade com a ajuda do MST.
“Fique em casa, mas não em silêncio”
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra do Brasil é uma exceção à regra em relação à ideia de que movimentos populares devem evitar parcerias com o governo. Militantes geralmente veem seu papel como sendo o de pressionar os governantes por fora, temendo que trabalhar com eles permita que políticos coajam e manipulem suas causas. Mas críticas ao governo são centrais para o trabalho do MST.
Junto a outros movimentos, os Sem Terra estão exigindo do gabinete de Bolsonaro que o presidente coloque seus esforços na quarentena, em investimentos na saúde pública e na ajuda financeira e alimentar para os brasileiros. “O atual governo não tem feito nada para ajudar,” diz Indiane Witcel, economista que trabalha como contadora na COOPAN, uma das cooperativas agrícolas do Movimento.
Witcel nasceu na cooperativa, que fica no estado do Rio Grande do Sul, perto da fronteira com o Uruguai, quando a área ainda era um acampamento. Sua mãe ajudou a ocupar e cultivar a terra utilizando os métodos de plantio sustentáveis do MST.
Desde o início da pandemia do novo coronavírus, a COOPAN já doou 12 toneladas da produção do seu arroz orgânico para bairros urbanos pobres na região de Porto Alegre. “A solidariedade deve ser parte de nossa prática diária e agora mais do que nunca, quando tantos estão em situações difíceis”, disse ela.
Com hospitais já superlotados com pacientes da COVID-19 e o contágio da doença aumentando, a situação difícil em que o Brasil se encontra só tende a piorar, mas o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra tem uma mensagem para os brasileiros durante essa crise.
Promovida no Twitter e em outras redes de comunicação, como uma de suas medidas contra o novo coronavírus, a hashtag e a palavra de ordem combinam a assistência no contexto da pandemia com uma crítica implícita ao presidente do Brasil: #FiqueEmCasaMasNãoEmSilêncio.
* Rebecca é professora assistente de Educação e Relações de Trabalho e Emprego na Universidade Estadual da Pensilvânia
** Traduzido por Italo Piva do Brasil de Fato
*** Editado por Luciana Console