Regularização de áreas fronteiriças vulnerabiliza povos tradicionais
A comunidade pantaneira de Porto Limão, localizada no município de Cáceres (MT), assiste cotidianamente seu território ser expropriado pelo avanço das águas privatizadas e das cercas de fazendeiros vizinhos. Além do forte impacto na vida do rio Jauru pela instalação – sem consulta prévia às famílias e correta medição de impactos – de uma Usina Hidrelétrica (UH) e quatro Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) no curso de um pequeno rio, mas essencial à vida local, as 53 famílias residentes na comunidade veem a redução da extensão do seu território por mais intervenções.
Uma linha de asfalto corta a comunidade de endereço centenário e a liga à Bolívia, fronteira distante em apenas 50 quilômetros das famílias. A BR-070 que tem sua origem na capital Brasília (DF) e se encerra em Cáceres dividiu a comunidade tradicional em duas fracções: de um lado uma parte violada pelas centrais hidrelétricas e a de outro pela movimentação das cercas de latifúndios para criação de bois, principal atividade econômica do município.
O asfalto ainda trouxe a exposição da comunidade aos fios de alta tensão, à alta movimentação de veículos e ao tráfico característico de áreas fronteiriças. Mesmo com um conjunto de recomendações feitas aos órgãos públicos das diferentes esferas de governo pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), em visita à localidade em 2018, as famílias ainda não receberam indenizações pela mudança da dinâmica de vida pela quase morte do Jauru e pelas construções da rodovia e hidrelétricas.
“Estas intervenções são formas de expulsar a comunidade de lá, não só ao não respeitar seus direitos, mas por colocar as famílias em vulnerabilidade”, destaca a integrante da Rede de Comunidades Tradicionais Pantaneira e do Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, Cláudia Sala de Pinho. Mesmo instaladas no curto espaço de raio de 150 metros de distância de um dos lados da rodovia, as famílias sentem o avanço das cercas. “Faz dois anos que as famílias estão lidando com isso, o fazendeiro puxou a cerca um pouco mais pra dentro dos 150 metros tentando fazer que eles [os moradores] saiam dali”, sublinha Cláudia.
A posse definitiva do território tradicional pelas famílias e o enfrentamento às ameaças tem como desfavorável não apenas a não regulamentação da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Instituída em 2007, o marco legal não foi regulamentado com a criação de uma legislação específica de demarcação ou que assegure o seu uso do território pelos pantaneiros.
Outra legislação que está em desfavor da comunidade é a Lei 13.178/2015. De autoria do então deputado federal à época da aprovação e atual senador, Luiz Carlos Heinze (PP-RS), a origem da lei evidencia a quais interesses a norma atende. Com assentos estratégicos na articulação legislativa do agronegócio – a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), o atual vice-presidente da FPA acumula um conjunto de ações de não reconhecimento dos direitos de povos tradicionais e em benefício de ruralistas. Em manifestação pública o parlamentar já declarou que “índios e quilombolas não prestam” e defendeu a contratação de seguranças privados e uso da violência contra indígenas. “Hoje, se tu fizeres um grande evento, tu não contratas segurança privada? Contrata. São seguranças, pronto. E fazem o que tem de fazer”, declarou Heinze em entrevista para um jornal.
Uma lei inconstitucional
Estabelecida pela Instrução Normativa nº 2/2018 como área da União, as faixas de fronteira compreendem o raio de 150 quilômetros, a contar da divisa entre o Brasil e demais países para a área interna do país. Com um estímulo histórico à ocupação das terras fronteiriças sob o argumento de defesa da segurança nacional, as faixas de fronteira que respondem por 27% do território nacional congregam uma variedade de usos por diferentes atores, de minifúndios a grandes propriedades, de povos e comunidades tradicionais a objeto de interesse de corporações e grandes ruralistas.
Antes, para validar um registro imobiliário de posse de imóveis dentro desta faixa com extensão maior do que 15 módulos fiscais era exigido uma vistoria pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Caso o título não atendesse a critérios técnicos estabelecidos no Manual de Obtenção de Terras e Perícias Judiciais, o título de domínio era considerado nulo e a área era reincorporada ao patrimônio da União.
Com a Lei 13.178/2015 há simplificação na validação de registro e título de imóveis alienados ou concedidos pelos Estados de terras devolutas. Com a norma, para imóveis de até quinze módulos fiscais a certificação é automática. Para áreas acima de 15 módulos fiscais é necessário apenas apresentar uma “certidão de georreferenciamento do imóvel” e da atualização de inscrição no Sistema Nacional de Cadastro Rural.
Ocorre que, ao deixar a cargo do próprio interessado a condução da validação do registro e abster-se de fiscalizar os imóveis e as práticas neles desenvolvidas, o Estado brasileiro fere determinações estabelecidas pela Constituição Federal sobre domínio e uso de terras públicas. Sem fiscalizar, o governo pode validar registros de áreas que lancem mão de trabalho escravo, poluam o meio ambiente e não sirvam, de fato, à produção de alimentos, entre outros. O registro automático ainda fere outro dispositivo da Constituição. Inscrito no Artigo 188, a norma aponta que “a destinação de terras públicas e devolutas será compatibilizada com a política agrícola e com o Plano Nacional de Reforma Agrária”. A Lei, no entanto, não faz menção nenhuma à exigência constitucional.
Em razão disso, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) ajuizou, ao final de 2016, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (STF). “O pedido da Contag é claro, a Lei nº 13.178/15 que dispõe sobre a ratificação de registros imobiliários decorrentes de alienações e concessões de terras públicas situadas nas faixas de fronteira, deve estar em consonância com a Constituição Federal”, aponta o secretário de Política Agrária da Contag, Elias D’Angelo Borges.
Com atual relatoria da ministra Carmem Lúcia, a ADI 5623 não obteve avanços significativos nos três anos desde o ajuizamento.
Ônus da morosidade
A morosidade de julgamento da Ação gera, na avaliação da Contag, prejuízos aos agricultores, povos e comunidades tradicionais, ao meio ambiente e ao erário público. “O prejuízo é sempre grande quando a regularização de terras públicas é realizada sem observância da política agrícola e agrária disciplinada pela Constituição Federal de 1988, sem diálogo com a sociedade, principalmente àqueles que fazem jus a regularização de suas posses”, sublinha Elias.
“As consequências são claras: conflitos agrários, regularização de terras griladas e/ou desmatadas, sobreposição de áreas, privatização de patrimônio público, entre outras”, complementa.
De acordo com a assessora jurídica da Terra de Direitos, Maíra Moreira, a lentidão no julgamento da ADI diz sobre um posicionamento da Corte frente ao tema e gera efeitos diretos nas decisões do sistema de justiça e na execução de políticas públicas para grupos afetados pela norma, como a comunidade pantaneira de Porto Limão. “O atraso significa primeiro um alinhamento do judiciário com esse conjunto de políticas que vem fragilizando o direito constitucional sobre a reforma agrária”, destaca.
Enquanto a Lei 13.178/15 produz efeitos concretos nas realidades nos territórios, com a ratificação automática de imóveis, políticas públicas como, por exemplo, a instalação de serviços essenciais à vida das comunidades e a assistência técnica ao pequeno produtor são paralisadas na medida em que a norma, na sua constitucionalidade, não é julgada.
A assessora rememora o longo tempo entre o ajuizamento, em 2004, da ADI 3239, pelo antigo Partido da Frente Liberal (PFL), atual Democratas (DEM), tendo por objeto o Decreto 4887/2003, que regulamenta o procedimento de titulação de territórios quilombolas no Brasil, e a decisão da Corte apenas em 2018. “Se formos fazer uma leitura do significado de 14 anos de questionamento da constitucionalidade do Decreto quilombola, foram 14 anos de juízes suspendendo ações de desapropriação para fins de regularização de territórios quilombolas nos estados, de desinvestimento na política quilombola, de dúvida dos profissionais do Incra sobre investimento de energia e de trabalho em uma política ou outra, considerando a instabilidade que pairava sobre o regramento. Quando se trata de proteger as comunidades e povos tradicionais a demora em declarar constitucional ou inconstitucional normas que servem seja para protegê-los, seja para fragilizá-los, é nefasta e produz efeitos diretos sobre as possibilidades de existência dessas comunidades”, destaca.
Impactos para comunidades e povos tradicionais
Outro importante prejuízo gerado pela Lei é que ela não reafirma o direito de posse das comunidades e povos tradicionais sobre seus territórios diante do interesse da referida área por outro. “Na hipótese de haver sobreposição entre a área correspondente ao registro ratificado e a área correspondente a título de domínio de outro particular, a ratificação não produzirá efeitos na definição de qual direito prevalecerá”, aponta um trecho da norma.
A não reafirmação dos direitos de povos e comunidades acima de interesses de particulares ganha contornos preocupantes na medida em que boa parte da posse dos territórios tradicionais não é ainda reconhecida pelo Estado brasileiro. A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) aponta, por exemplo, que dos 6.330 quilombos no Brasil distribuídos em 24 estados da federação apenas 134 territórios possuem titulação definitiva.
O próprio governo já alertou sobre a precariedade dos instrumentos do do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para verificação da sobreposição de áreas tradicionais e de interesses de terceiros . Ainda que o Acórdão 727/2020 tenha em conta a realidade do Programa Terra Legal, a fragilidade da capacidade fiscalizatória da autarquia agrária também está presente para demais realidades, já que tratam-se dos mesmos instrumentos.
Sem garantias legais e de instrumentos de reconhecimento de seus territórios, os pequenos agricultores, comunidades quilombolas, indígenas e outros povos tem com a Lei 13.178/15 suas áreas amplamente expostas a pretensões de posse por terceiros.
A assessora jurídica da Terra de Direitos, Ceci Martins, destaca também que a legislação fere também o direito à Consulta Prévia, Livre e Informada previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Estado Brasileiro é signatário. A norma exige que povos e comunidades sejam consultados anteriormente sobre qualquer intervenção, seja legislativa, administrativa ou jurídica que afete os modos de vida destas populações. Como a Lei de faixa de fronteiras impacta diretamente no domínio das terras, Lei 13.178/2015 deveria necessariamente ser avaliada previamente por estes grupos.
“A Lei 13.178/2015 valida registros de alienação de terras públicas devolutas pelos Estados, criando uma situação de insegurança territorial para os povos tradicionais ao sequer apresentar alternativas para o caso de conflitos fundiários advindos de sobreposições. Fere o direito à consulta prévia exatamente por legislar sobre tema que afeta direitos territoriais dos povos quilombolas, tradicionais e indígenas”, reforça a assessora.
Organizações sociais e movimentos sociais ainda denunciam que os instrumentos recentes criados pelo estado brasileiro como o Cadastro Ambiental Rural (CAR) e o Sistema de Gestão Fundiária (Sigef) revestem com uma fumaça de legalidade os imóveis que são utilizados por grileiros, já que a norma torna legal a autodeclaração.
Intensiva legal sobre terras públicas
Diante da necessidade do mercado de terras avançar para novas fronteiras agrícolas e aumento do preço das commodities, como soja e milho, o agronegócio tem consolidado – especialmente nos últimos anos – suas forças de incidência nos diferentes poderes.
Articulado com a “frente da bala”, a Frente Parlamentar da Agropecuária é a mais numerosa e totaliza 257 signatários, entre deputados federais e senadores na atual legislatura, 17 a mais em comparação a 2018.
Ruralistas e aderentes ao lobby do agronegócio ocupam também assentos estratégicos no Executivo federal. Opositores à reforma agrária e a política para povos tradicionais, a ruralista Teresa Cristina está à frente do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e o ex-presidente da União Democrática Ruralista (UDR), Nabhan Garcia, responde pela Secretaria de Assuntos da Terra, pasta lotada no Mapa. Pelo novo desenho administrativo pela Medida Provisória n° 870/2019 o Incra foi realocado da Casa Civil da Presidência da República para o Ministério da Agricultura. Alinhados, o Executivo e Legislativo têm dedicado esforço intenso para aprovação de normativas que versam sobre domínio de terras públicas nos últimos anos.
Com o uso do argumento na necessidade de regulamentar e atualizar leis para combater a “insegurança jurídica”, o Brasil aprovou nos últimos anos um conjunto de leis de intenso impacto nos territórios, principalmente aqueles ocupados por povos tradicionais e pequenos agricultores. Essa máxima é contestada pelo presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA), Acácio Briozo. “Insegurança jurídica para investimento do capital. Não é uma preocupação com povos e comunidades que ocupam suas terras de forma secular, nem para agricultores familiares e assentados da reforma agrária”, diz ele.
“A ideia que perpassa essa noção de segurança jurídica.é a de que uma pessoa só compra uma terra se tiver mínimo de segurança de que ninguém vai tomá-la após ser paga. Algumas fronteiras agrícolas se esgotaram porque já foram exploradas, regularizadas ou dominadas e mercantilizadas e você precisa construir novas fronteiras. É ciclo que se realimenta”, complementa a assessora Maíra Moreira.
Outro argumento recorrente para aprovação das leis foi o de ganho pelo conjunto dos sujeitos, questão contestada pelas organizações e comunidades. “Nos últimos anos eclode esse noção de segurança jurídica e isso captura tanto setores da agenda financeira como ruralistas. Essa noção parece que é totalizante, mas busca atender os interesses dos grandes, ainda que se mascare como ação que atende os interesses dos pequenos. Enquanto estes não recebem crédito ou qualquer apoio, a maioria das terras vai para grandes grileiros”, sublinha ainda Acácio .
Neste quadro de novas normativas de mercantilização das terras públicas constam, além da Lei sobre faixas de fronteiras, a Lei nº 13.465 (resultado da conversão da Medida Provisória 759). De autoria da Presidência da República, ainda sob comando de Michel Temer (MDB), a Lei que estabelece novas diretrizes legais sobre a regularização de terras urbanas e rurais no país possibilita a reconcentração fundiária e regularização fundiária de megalatifúndios.
Como evidência de que o mercado de terras ainda segue aquecido, o senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) apresentou a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 80 na metade do último ano. Em tramitação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, a Proposta altera a definição e alonga os caminhos para a aplicação da função social da propriedade, base conceitual e jurídica das reformas agrária e urbana.
“O que a gente vê é que os ataques a agenda da terra não param. A gama de avanço é sistemática e acontece todos os dias. No âmbito Legislativo tem uma série de ataques acontecendo. No âmbito Judiciário o que a gente vê é uma série de despejos previstos para acontecer, ao mesmo tempo uma lentidão nas ações de desapropriação para fins de reforma agrária, que demoram anos para tramitar. No campo no Executivo a gente vê uma diminuição do orçamento e morte da políticas públicas por inanição”, analisa Acácio..
Além da PEC 80, ele ainda pontua que outras medidas ainda tramitam para desregulamentação da terra e bens da natureza, como propostas que incidem sobre a questão da mineração, da água, e outros.
Debate com a sociedade
Com a finalidade de contribuir na reflexão sobre a inconstitucionalidade da Lei 13.178/2015, a Terra de Direitos foi admitida no processo, na condição de amicus curiae. Com papel de ampliar o debate sobre a inconstitucionalidade da Lei, a organização também almeja tecer um cruzamento entre a lei em análise e mais legislações que vulnerabilizam comunidades e povos tradicionais.
A ADI 6523 está prevista na pauta do STF do dia 19 de junho. Apesar da urgência do debate, a assessoria da Terra de Direitos questiona o julgamento da Ação em contexto de pandemia. Com realização de sessões virtuais, a participação popular em tema de grande importância é altamente prejudicada.
“A realização de julgamento virtual em caso tão importante, cujo julgamento afeta a realidade fundiária de diversos estados, pequenos agricultores, povos tradicionais não pode ser feito aquém do debate público, pois fere o princípio democrático da participação social”, finaliza Ceci.