Artigo | Saramago, um escritor da ficção real
Por Rosana Fernandes
Da Página do MST
José Saramago, de origem camponesa do interior de Portugal, viveu intensamente a sua infância pobre e de muito trabalho na juventude. Quando adulto, começou a escrever junto com um grupo de escritores que tinha como objetivo recontar a história do seu país por meio da literatura, sendo “Levantados do Chão” e o “Memorial do Convento” os seus primeiros livros nesse sentido. Fez jus às várias premiações e reconhecimentos públicos. Um comunista declarado, membro do Partido Comunista Português.
Ainda em vida, foi considerado o mais talentoso romancista português do século XX. Saramago escreveu dezenas de romances, crônicas, poesias, peças teatrais, contos e obras infantis. Aqui destacamos o Ensaio Sobre a Cegueira (1995) e o Ensaio Sobre a Lucidez (2004), que muito nos fazem pensar sobre os tempos que estamos vivenciando, do ponto de vista político, sanitário e humano.
O primeiro traz uma projeção de um futuro trágico para a humanidade, no qual toda a população de uma cidade fica cega, uma “cegueira branca”, com exceção de uma pessoa, uma mulher, a mulher do oftalmologista (quem deveria dar conta de curar a cegueira dos outros, mas também é afetado pela “doença”). No início, por acreditarem ser uma doença contagiosa as pessoas são levadas para um abrigo e lá ficam isolados, em quarentena. Desencadeiam-se nesse processo várias situações, dentre elas um conflito por causa da comida, pois se formam dois grupos nos quais cada um conta com uma pessoa com vantagens em relação aos demais, tendo em um grupo a mulher que enxerga e no outro um homem que já era cego antes e sabe a linguagem em braile.
A ideia aqui é não dar spoiler sobre a obra, mas trazer a reflexão sobre o que pode acontecer com aquela população. Na ficção, teve um desfecho. E na vida real, o que vai nos acontecer? Em nosso cotidiano, quais vantagens temos e em função do que as utilizamos? Como percebemos a essência do ser humano? Aos cegos aguçam os demais sentidos, se tornam mais apurados o tato, o paladar, o olfato e a audição, possibilitando maior sensibilidade para com o outro. E os “normais”, como sentimos a outra pessoa? Qual é a nossa cegueira?
Prevalecem os ditados populares “em terra de cego quem tem um olho é rei?” ou “o pior cego é aquele que não quer ver?”, ou ainda “enxerga um cisco no olho do outro, mas não enxerga a trave que está em seu próprio olho?”. Muitas perguntas para respostas que não parecem óbvias! A sabedoria de Saramago nos afirma que “Penso que não cegamos, penso que estamos cegos. Cegos que veem, cegos que, vendo, não vêem”.
A segunda obra é um contraste com a primeira, configura um dia de eleição. Nesse dia cai uma chuva torrencial, impedindo a maioria das pessoas de irem às urnas, apenas poucas pessoas comparecem no final da tarde quando a chuva dá uma trégua. Porém, os poucos que foram, votaram em branco. Sendo assim é convocada nova eleição, e o dia é de sol estridente, não tendo justificativas para não comparecerem às urnas. No entanto, a maioria dos votos seguiram sendo em branco. Diante disso, é feita uma “caçada” para saber os motivos desse resultado. Para isso, dezenas de pessoas foram submetidas a um interrogatório numa “máquina da verdade” que detectaria quem estivesse mentindo no interrogatório. Uma das primeiras pessoas a ser interrogada, uma mulher, disse que não votou em branco, mas a máquina afirmava que ela estava mentindo. A pessoa que estava interrogando-a pediu para ela confessar, pois a máquina já havia dito o resultado.
Então ocorre um amplo debate entre eles, a mulher questionando sobre a veracidade do resultado pela máquina e ele insistindo que não havia dúvida sobre o resultado. Ela pede para ele ficar no lugar dela e interroga sobre o voto em branco e ele afirma que não votou em branco, mas a máquina afirma que ele está mentindo. Ela considera a afirmação dele e reflete com ele o que significa a verdade, quem é que a determina? Um debate infindável. Não tendo uma resposta satisfatória, o governo decide suspender todos os serviços públicos daquela cidade, deixando a população à mercê das necessidades básicas. O que vai acontecer? O caos vai tomar conta ou haverá organização do povo? Sem spoiler!
O nosso homenageado também navegou pelo mar agrário, como na saga de uma família de camponeses pobres que tem que migrar e as muitas dificuldades que passam nessa travessia, descrita em sua obra Levantados do Chão (que serviu mais tarde de inspiração para a composição de Chico Buarque de Holanda). Saramago falou especialmente sobre o MST e a injustiça cometida contra milhares de famílias de trabalhadores sem-terra. Foi por ocasião da escritura do prefácio do livro Terra de Sebastião Salgado, em 1997. Enfatizou que:
[…] Povoando dramaticamente esta paisagem e esta realidade social e econômica, vagando entre o sonho e o desespero, existem 4.800.000 famílias de rurais sem terras. A terra está ali, diante dos olhos e dos braços, uma imensa metade de um país imenso, mas aquela gente (quantas pessoas ao todo? 15 milhões? mais ainda?) não pode lá entrar para trabalhar, para viver com a dignidade simples que só o trabalho pode conferir, porque os voracíssimos descendentes daqueles homens que primeiro haviam dito: “Esta terra é minha”, e encontraram semelhantes seus bastante ingênuos para acreditar que era suficiente tê-lo dito, esses rodearam a terra de leis que os protegem, de polícias que os guardam, de governos que os representam e defendem, de pistoleiros pagos para matar. Os 19 mortos de Eldorado dos Carajás e os 10 de Corumbiara foram apenas a última gota de sangue do longo calvário que tem sido a perseguição sofrida pelos trabalhadores do campo, uma perseguição contínua, sistemática, desapiedada, que, só entre 1964 e 1995, causou 1.635 vítimas mortais, cobrindo de luto a miséria dos camponeses de todos os estados do Brasil […]
José Saramago nos brindou com a sua valiosa contribuição ao escrever o prefácio do livro de fotos de Salgado que junto com o CD Terra de Chico Buarque possibilitaram uma grandiosa campanha nacional e internacional para a arrecadação de recursos financeiros que deu origem à construção da Escola Nacional Florestan Fernandes, localizada em Guararema-São Paulo. Escola esta que está completando 15 anos desde a sua inauguração oficial, uma escola da classe trabalhadora, uma escola que está em movimento no fazer político e pedagógico cotidiano.
Neste 18 de junho fazemos memória à Saramago que nos deixou fisicamente há 10 anos. As suas cinzas estão depositadas na terra, junto a um pé de oliveira, na cidade de Lisboa. O seu legado permanecerá conosco em cada livro lido, em cada árvore plantada, em cada alimento doado, em cada sorriso de um/a Sem Terrinha que mantém a esperança de um futuro próspero. Que a cegueira não impeça a lucidez das mudanças que estamos construindo. E como disse o escritor diante da possibilidade da retirada do Cristo Redentor do Rio de Janeiro, que escrevamos em letras garrafais para todos os lados do mundo: UM DIREITO QUE RESPEITE, UMA JUSTIÇA QUE CUMPRA.
*Editado por Fernanda Alcântara