Clóvis Moura: os 95 anos do pensador negro e comunista
Por Grupo de Estudos Terra, Raça e Classe
Da Página do MST
Há 17 anos nos deixou um gigante. Clóvis Steiger de Assis Moura foi um militante negro do PCB (posteriormente do PCdoB), nordestino e piauiense que tornou-se um dos cientistas sociais de mais destaque nos estudos sobre o negro na estratégia da luta de classes no Brasil. Foi um intelectual orgânico da classe trabalhadora no Brasil que refletiu sobre as diversas formas e imbricações do racismo com a luta de classes, resistências e experiências de luta dos negros e negras no Brasil. Nascido na cidade de Amarante (PI) em 10 de junho de 1925, tem entre seus antepassados um barão do império da Prússia (Ferdinando Von Steiger, seu bisavô materno) e, pelo lado paterno, a bisavó Carlota, uma mulher negra escravizada por um português – seu bisavô.
Clovis Moura principiou seus estudos militantes acerca da questão da resistência negra e escravista no Brasil na década de 1940, redigindo aos 34 anos “Rebeliões na Senzala”, obra que se tornaria um clássico da historiografia e análise sociológica marxista brasileira. Esta é a primeira de suas grandes obras, publicada em 1959, e declara guerra contra toda a interpretação simplista, rasteira e racista sobre a forma como os negros e negras enfrentaram o sistema de dominação escravista. O livro é o extremo oposto das teses contidas em “Casa Grande e Senzala” e, por sua profundidade crítica e analítica, encontrou grande resistência das organizações de esquerda e inclusive dentro do PCB na época e na chamada “Sociologia oficial” difundida pela academia. Considerado um autor importante para estudo das relações raciais no Brasil nos EUA, também foi traduzido em vários outros idiomas, tendo grande repercussão inclusive na China.
“Democracia racial”
A crítica radical a Gilberto Freyre e a tese da democracia racial são uma constante nas obras de Moura, direta e indiretamente ele a questiona e a considera ultrapassada, desfigurada e deformada. A tese Freyreana reforça a ótica “paternalista” e “filantrópica” de pesquisar, examinar e interpretar as lutas dos negros escravizados numa perspectiva de caridade, compaixão e piedade para com os oprimidos. É o oposto da dialética das lutas dos negros/as colocada em perspectiva já a partir de “Rebeliões na Senzala”.
Moura é estimado pelo antropólogo e professor congolês naturalizado brasileiro Kabengele Munanga, como “um dos maiores estudiosos, pensadores e intelectuais da questão negra no país” […] “foi realmente um intelectual orgânico do povo negro” (MUNANGA, 2004).
Além do Partido Comunista e contribuição em periódicos daquele período, Clóvis Moura se envolveu diretamente com as lutas do movimento negro brasileiro, tornando-se um colaborador da União de Negros Pela Igualdade (UNEGRO) e do Movimento Negro Unificado (MNU), sendo deste um dos principais ideólogos e orientador de seu programa político para a luta antirracista. Em 1980 recebeu o título de “Notório Saber” pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP como um gesto tardio de reconhecimento, mas que lhe deu a oportunidade de participar de bancas examinadoras da pós-graduação, pela qual participou em raros momentos.
Construiu uma visão radical sobre o papel das universidades e da sociologia e historiografia praticada na academia, por isso defendia uma práxis sociológica construída fora deste espaço de legitimação intelectual, de jargões cada vez mais indecifráveis, inacessíveis para leigos, que pesquisa detalhes cada vez mais reduzidos da realidade social, irrelevantes, sob a pretensa imparcialidade, empirista, com uma profunda falta de visão histórica que a coloca no sentido de impedir a radicalização das soluções dos problemas sociais, conforme escreveu em seu livro Sociologia de la Praxis, publicado no México em 1976, no Brasil foi publicada com o título “A Sociologia posta em questão” em 1978. Moura defendia uma sociologia feita por intelectuais ‘independentes’ no território livre em que o saber e a prática fundem-se na experiência. Sempre permaneceu viva sua visão crítica em relação à necessidade da práxis social de que “uma ideia só se transforma em força material quando ganha as massas” (Marx).
Sistema de dominação
De acordo com o pensamento de Moura nossa história tem três momentos que simbolizam os movimentos de ruptura radical com o sistema de dominação e conseguiu abalar a sua estrutura: Palmares no Brasil Colônia; a Cabanagem, no Brasil Império e Canudos na República. Esses três momentos nos quais os escravizados em um primeiro momento e o povo rebelde passaram a ser agentes sociais dinâmicos, mostra como somente através dessa radicalidade o Brasil poderá reformular os pólos de poder e articular politicamente um novo ordenamento social no qual os oprimidos e excluídos poderão ser os atores dinâmicos da História.
Para ele, o negro brasileiro, a partir das suas lutas na sociedade escravista contra a escravidão e posteriormente suas mobilizações após a abolição na luta pela igualdade racial incidem num fundamental instrumento para propor a superação do moderno quadro de desigualdade social que atinge milhões de brasileiros. Portanto, para entender a conjuntura das classes dominadas no Brasil, é necessário analisar as duas dimensões centrais da dominação: a classista e a racial.
Uma de suas teses mais fortes, bastante próxima da formulação de Jacob Gorender sobre o “Escravismo Colonial”, é de que no Brasil se estabeleceu um Modo de Produção Escravista, particular dentro do processo geral, mas subordinado estruturalmente ao modo de produção hegemônico global. Dentro desta concepção mais abrangente ele vai analisar dois momentos da escravidão, a fase de consolidação e o processo de decadência, conceituadas por ele como (I) o escravismo pleno de 1550 a 1850 e (II) o escravismo tardio de 1851 a 1888. De acordo com o professor Dennis de Oliveira no prefácio à obra “Dialética radical do Brasil Negro”, é justamente aqui que reside “a visão materialista dialética e histórica de Moura ao analisar as relações raciais”, ou seja, como algo produzido a partir da organização da produção material.
De acordo com Dennis, a análise que Moura faz da transição do escravismo tardio para o capitalismo é de suma importância, pois “aponta que no Brasil se criaram as condições objetivas para uma ‘modernização conservadora’, isto é, o desenvolvimento das relações capitalistas mantendo estruturas arcaicas”. Um exemplo neste sentido seria a Lei Eusébio de Queirós, de 1850, que proibiu o tráfico de africanos escravizados. Esta lei foi o marco da transição controlada, conduzida pela elite dominante, dentro de um processo de abolição gradual e redirecionando os investimentos no tráfico de pessoas para construir a infraestrutura necessária ao desenvolvimento das “modernas” relações capitalistas. Esta é a base de consolidação do capitalismo dependente, com a associação de forma subordinada da elite brasileira ao capitalismo global que já mostrava seu caráter imperialista no final do século XIX.
Esta via de ascender ao “moderno sistema capitalista” vai manter – e só vai ser possível desta forma -, a exclusão massiva da população negra como um gigantesco exército industrial de reserva, cumprindo papel de garantir a extrema exploração da força de trabalho e os baixíssimos salários pagos aos trabalhadores/as. Por conseguinte, somente uma política que inclua soluções para o problema do negro, da classe operária e dos marginalizados no geral, é capaz de nortear a luta por uma sociedade verdadeiramente democrática nas relações de produção.
Outra contribuição central no pensamento moureano é sobre o papel social e o projeto político estabelecido na República de Palmares, segundo ele, surpreendemente progressista para a época, pela organização com base na propriedade coletiva da terra, na diversidade de produção agrícola (policultura) e no fundamento desta produção primeiramente para autossustentação da própria comunidade. Havia fartura no quilombo enquanto a realidade da colônia era de grande escassez, isso, em si, já incomodava a elite dominante que não aceitava o território livre criado pelos palmarinos ex-escravizados.
Luta camponesa
Desde a publicação de Rebeliões na Senzala, Clóvia Moura já tinha em mente que as lutas camponesas eram continuidade histórica das lutas reivindicatórias travadas pelos escravizados. Logo após terminar “Rebeliões na Senzala” pode confirmar esta tese lendo o estudo de Pessoa Morais (no livro “Sociologia da Revolução Brasileira” de 1965), disse ele ao tomar conhecimento desta obra: “Aceita a tese de Pessoa de Morais ter-se-á de concordar com a existência de um segmento explosivo que vem da escravidão e se solda às lutas atuais dos homens do campo no Brasil que exigem reformas estruturais nas relações de produção no setor agrário.”
Por este caráter explosivo colocado pela luta dos negros e negras na sociedade brasileira, os inúmeros movimentos de rebeldes, de aquilombamento, motins e insurgências que ameaçavam a ordem, foram exemplarmente reprimidos e massacrados com direito a exposição em praça pública, banimento, prisão e/ou tortura. Nesta linha, o massacre de Eldorado dos Carajás, assim como o de Corumbiara, já não é um fato deslocado do lugar, mas obedecem a essa lógica diabólica da penetração do capitalismo no campo (MOURA, 2000, p.100).
Já na fase final de sua vida, Moura estava muito próximo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, época em que produziu um breve, mas instigante estudo sobre a Sociologia Política da Guerra camponesa de Canudos: Da destruição de Belo Monte ao aparecimento do MST, publicado pela Editora Expressão Popular em maio de 2000. Nesta obra, seguindo a mesma orientação política já defendida no “Rebeliões na Senzala”, Moura vai analisar os elos históricos entre as lutas camponesas como continuidade histórica da luta negra e os nexos que nos fazem entender a comunidade de Canudos e o surgimentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) como “parte de uma mesma cadeia de resistência ao monopólio da propriedade da terra em nosso país”, como bem disse Alípio Freire na apresentação do livro. Depositando esperanças e expectativas da mudança radical necessária no país, ao analisar o MST, escreveu Clóvis: A trajetória independente do MST certamente não será fácil. Mas poderá ser, de qualquer maneira, aquela força que poderá ser o eixo político capaz de unir e dinamizar os trabalhadores das cidades e do campo para iniciar uma nova etapa da sociedade brasileira em direção ao socialismo.
Clóvis Moura faleceria em 2003 aos 78 anos, após meses internado no Hospital Alberto Einstein, em São Paulo, devido a câncer na garganta. O MST encontrou nele um companheiro de luta, comunista incansável e um gigante intelectual, compromissado com o estudo dedicado e marxista da realidade brasileira. Clóvis Moura Presente, agora e sempre!
*Editado por Fernanda Alcântara