Terras repartidas que geram alimentos agroecológicos e solidariedade

O MST desde o início da pandemia, realiza campanha de solidariedade a quem enfrenta a fome nesse período.

Por Carlos Marés, Thais Diniz Santos e Iara Sánchez Roman
Da Página do MST

Muitas famílias tiveram a situação de vulnerabilidade social agravada com a pandemia que assola nossa sociedade. Não é só a enfermidade propriamente dita, mas a falta de trabalho, de moradia, de condições para suprir as necessidades mais básicas. Nesses momentos de tragédia humana, onde a displicência e a especulação parecem dominar comportamentos e a realidade, felizmente também se manifesta a solidariedade.

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) desde o início da pandemia, realiza campanha de solidariedade em prol de quem enfrenta a fome nesse período. Até o momento, mais de 2.800 toneladas de alimentos já foram partilhados pela campanha. Nos dias 08 e 15 de agosto, as comunidades de Ponta Grossa e Castro, que vêm participando ativamente nesta campanha, estão organizando uma grande ação de doação, voltada à partilha com famílias em situação de vulnerabilidade no município de Castro-PR. Ao lado do Acampamento Maria Rosa do Contestado, que conquistou certificação 100% agroecológica em março de 2020, participam desta ação outras cinco comunidades de Castro e duas de Ponta Grossa.

Esta distribuição de alimentos somente é possível porque ainda há quem os produz para viver. As famílias que produzem alimentos resolveram doar parte àquelas que não têm como produzi-los por serem subordinadas a um sistema que entra em colapso nesses momentos de pandemia. E por que e como estas famílias têm condições de produzir? A razão é muito simples, por que dispõem de um pedaço de terra no qual, em harmonia com a natureza, podem produzir alimentos saudáveis e nutritivos.

Esta razão tão simples é, curiosamente, fruto de luta dura e de muita contestação e negação por autoridades, grandes empresas, investidores, proprietários de terras, a gente endinheirada da sociedade. Muitas vezes tem acontecido que estas famílias que produzem alimentos saudáveis e nutritivos e que por solidariedade em momentos de grandes dificuldades, podem doar para necessitados, são expulsas de terras ocupadas, vendo a produção destruída como aconteceu no acampamento Valdair Roque, de Quinta do Sol, no centro do Paraná, no dia 3 de julho. Parte daquela produção destruída seria doada nas mesmas condições das ações programadas para os dias 8 e 15. É inacreditável. Enquanto alguns doam parte de sua produção, seu trabalho, para os necessitados, outros destroem o produzido pelo trabalho alheio, negando-lhes até mesmo a alimentação.

A história dos acampamentos e assentamentos têm sido assim. Em geral uma terra que não produz alimentos, que emprega pouca ou nenhuma pessoa, que despreza a natureza e o meio ambiente, é ocupada por famílias necessitadas de terra para produzir. A terra ocupada rapidamente se transforma. As famílias produzem em primeiro lugar seu próprio alimento e, alimentadas, têm força para produzir mais, tanto que podem até  doar a quem necessite. A terra é generosa e o conhecimento das famílias grande. Esta soma faz com que em pouco tempo os frutos da terra se encham de verdor, vitaminas e carboidratos alimentares, saudáveis, nutritivos e saborosos. Todavia, a ameaça continua e o risco também, mas a única maneira de agradecer a generosidade da terra é repartir o pão. Então, mesmo sob ameaça, correndo riscos, as famílias preferem repartir o pouco que tem e fazer sua parte para que o mundo não seja tão injusto.

Esta é a história também do Acampamento Maria Rosa do Contestado que nasceu em 24 de agosto de 2015, no município de Castro-PR e que nos dias 8 e 15 irá distribuir alimentos. A terra que generosamente entrega seus frutos, chamada Fazenda Capão do Cipó, é propriedade da União, mas estava irregularmente sendo usada (com contrato gratuito e vencido) por atividades privadas da Fundação ABC ligada às ricas cooperativas Castrolanda, Frísia, Capal, Coopagricola e o Centro de Treinamento de Pecuaristas de Castro– CTP.

Em 2004, a Secretaria do Patrimônio da União (SPU), constatou que a posse da terra pela Fundação ABC era irregular. A entidade promovia na área, sem qualquer pagamento ou autorização válida, diversas experiências agrícolas para aumentar o lucro das cooperativas, produzindo adubos, venenos agrícolas e sementes transgênicas, beneficiando, inclusive, empresas transnacionais. Pedida para parar os experimentos e se retirar das terras públicas, a Fundação se negou a devolver o imóvel. A Advocacia Geral da União, AGU, pediu em Juízo a reintegração da posse, que em 2013 foi concedida definitivamente pelo Judiciário.

Além de destruir e contaminar a natureza, produzir venenos e transgênicos, a Fundação ocupava mínima mão de obra, de tal forma que as maldades com a terra não eram nem compensadas com um possível bem-estar das pessoas. Ao contrário.

Apesar de todos os esforços da Advocacia Geral da União, do INCRA e do Juízo, a Fundação se negava arrogantemente a sair. O INCRA do Paraná solicitou o imóvel, tendo em vista que as terras públicas se destinam preferencialmente para a Reforma Agrária.

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra aguardava a saída da Fundação para que o INCRA destinasse a terra para a produção de alimentos no Programa Nacional de Reforma Agrária. Depois de um ano e meio sem progressos na desocupação pela Fundação, o Movimento ocupou a área com 130 famílias, que passaram a ter um enorme trabalho para desintoxicar a terra, preparando-a para produção de alimentos orgânicos, recuperando a natureza maltratada. O acampamento cresceu e hoje é composto por 200 famílias vindas, grande parte, de Castro, mas também de Teixeira Soares, Telêmaco Borba, Curitiba, Imbituva, Ponta Grossa e Ipiranga.

As famílias acampadas estão organizadas em pequenos núcleos, de umas 10 famílias, por meios dos quais tomam decisões coletivas, organizam parte da produção e comercialização. Em julho de 2016, foi constituída uma Cooperativa para produção e comercialização da produção do acampamento.

Desde o início da ocupação, houve a decisão coletiva de produzir de forma agroecológica. Essa iniciativa foi deliberada coletivamente por saber que cada vez mais assim deve ser a produção de alimentos, seguindo uma orientação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Essa decisão em pouco tempo melhorou a saúde dos agricultores e dos consumidores, principalmente das crianças que recebiam os alimentos ali produzidos pela merenda escolar. Mas não é só, este sistema produtivo ajuda na conservação das plantas silvestres, da biodiversidade, das águas, do solo e do ar, melhorando e preservando o meio ambiente da região. Este modelo contrapõe-se à maior parte da produção regional baseada no latifúndio, que usa insumos químicos maléficos à saúde da população e ao meio ambiente para produzir grãos e leite. Por isso é possível oferecer alimentos de qualidade e, quando necessário, até doá-los.

Depois de um grande trabalho de desintoxicação da terra, em 2020, a área total do acampamento recebeu certificação de produção orgânica pela Organização Paranaense de Agricultura Orgânica e Agroecologia (OPA). A cada ano aumenta a qualidade e a quantidade de espécies plantadas. Além disso, há preservação e recuperação de sementes que chegam a diversos agricultores familiares do estado através de festas e feiras de sementes, incrementando a agrobiodiversidade.

Além do reviver daquelas terras, o Acampamento Maria Rosa do Contestado gerou significativa melhoria nas vidas pessoais das famílias que ali vivem e que naquele espaço criaram laços de fraternidade, em uma comunidade acolhedora, segura e pacífica. O aumento de espécies plantadas sem agrotóxicos e preservação melhorou a produção, que em harmonia com a natureza, incrementa a oferta de alimentos saudáveis e nutritivos para a população e ainda contribui para diminuir a poluição do ar e das águas.

A Superintendência do INCRA no Paraná já conta com várias experiências muito exitosas na região, por isso sempre demonstrou interesse em adquirir novas terras para reforma agrária em Castro-PR, principalmente se tratando de terras públicas cuja destinação legal é, preferencialmente, para fins de Reforma Agrária. Três projetos, especialmente, são de muito sucesso, os assentamentos Abapan, Três Lagos e Três Pinheiros, que garantiram que suas famílias se tornassem plenamente autossustentáveis, tendo como principais produções o leite e hortifrutigranjeiros.

O acampamento Maria Rosa do Contestado, mesmo antes de se tornar um assentamento definitivo, já é um modelo tão exitoso quanto os mais antigos, oferecendo alta produtividade de hortaliças, leguminosas, verduras em geral, bolachas, pães, geleias e outros alimentos, além de ter reconhecida sustentabilidade com a produção orgânica e agroecológica e organização pautada na paz social, educação, dignidade e nas decisões coletivas. Por isso, além de alimentar as famílias acampadas, produz para a merenda escolar e agora pode participar desta campanha solidária de distribuição de alimentos que ocorrerá nos dias 8 e 15 de agosto.

As famílias e a produção agroecológica da fazenda Capão do Cipó, porém está em grande risco. Através de um processo administrativo sem publicidade a SPU cedeu a área total da Fazenda Capão do Cipó para o Instituto Federal do Paraná IFPR criar um campus da Universidade. Embora houvesse uma solicitação do IFPR de uso de parte da área, a SPU entregou, sem licitação, toda área, inclusive a ocupada pelas 200 famílias e pela produção agroecológica. Certamente é intenção do Governo Federal dificultar a ocupação, porque a área é de 440 hectares e o IFPR necessita no máximo de 35. Quer dizer, há espaço para todos, aliás não será a primeira vez que uma Universidade Federal divide espaço com assentamento da Reforma Agrária em troca de experiência e conhecimento, a Universidade Federal da Fronteira Sul, em Laranjeiras da Sul, é um ótimo exemplo.

As negociações continuam, entretanto, ao Juízo de Direito de Ponta Grossa caberá uma decisão sobre a legalidade da cessão e a possibilidade de um acordo em que todos possam conviver, a Universidade, as famílias acampadas, a produção de alimentos, a natureza, em harmonia. Porque é por harmonia entre as pessoas e a natureza, justiça, alimentação como direito e o conhecimento e tecnologia para a vida que lutam e almejam as mulheres, homens e crianças do acampamento Maria Rosa do Contestado.

*Carlos Marés é Professor Titular de Direito Socioambiental da PUC-PR; Thais Diniz Santos é Advogada e Assessora da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Paraná; Iara Sánchez Roman é Advogada Popular e Mestranda pelo Programa de Pós Graduação em Direito da PUC-PR