Artigo | Defender o Maria Rosa do Contestado é reafirmar nossa humanidade

"Nós estamos confiantes de que vamos ficar aqui dentro”, diz Vanderley Vieira da Rosa, acampado no Maria Rosa do Contestado, em Castro-PR
Irani Vieira dedica-se com alegria à cozinha comunitária. Foto Thea Tavares

Por Thea Tavares*
Da Página do MST

O caminhão se perde no rastro de poeira da estrada de chão.

Percorre várias comunidades, coletando alimentos produzidos por famílias que vivem nos assentamentos e acampamentos de reforma agrária do município de Castro, nos Campos Gerais do Paraná.

Outro veículo percorre comunidades de Ponta Grossa.

Um total de 12 toneladas de alimentos chega ao acampamento Maria Rosa do Contestado para a distribuição em cestas com produtos diversificados, montadas pelas mãos das famílias camponesas.

Na cozinha comunitária ao lado, as mulheres do Maria Rosa doam também seu dia de trabalho para preparar macarrão e pães caseiros que vão compor o kit a ser compartilhado com outras famílias, aquelas que se encontram em situação de vulnerabilidade nos bairros periféricos de Castro.

O pouco que essas trabalhadoras e trabalhadores da reforma agrária tiram da terra repartida aplaca a fome de muita gente, a começar pelas próprias famílias produtoras.

Gera renda e agrega valor na sua comercialização, no beneficiamento, além de espalhar saúde e qualidade de vida ao longo de toda essa cadeia produtiva por assim dizer.

Dá pra sentir no ar a energia da motivação que faz com que aquela gente lutadora, que sonha com uma terra repartida, se alegre em partilhar os alimentos cultivados nesse pedaço de chão.

Ações no acampamento Maria Rosa do Contestado. Fotos: Thea Tavares

A terra do Maria Rosa do Contestado, em cinco anos de ocupação, deixou de ser uma área que, embora de propriedade pública, da União, foi grilada por décadas por fazendeiros ligados à Fundação ABC, à frente das cooperativas de laticínios locais, como a Castrolanda, a Frísia, Copal, Coopagrícola e do Centro de Treinamento de Pecuaristas de Castro – CTP, intoxicada à exaustão pelos métodos empregados pelo trato tradicional dos holandeses na região, para se tornar um espaço da reforma agrária popular, certificado em toda a sua extensão pela Rede Ecovida por apresentar uma produção de alimentos 100% agroecológica.

Desde o início da ocupação, sob a orientação da direção estadual do MST, as famílias acampadas no Maria Rosa tomaram a decisão de produzir alimentos sem veneno para poderem se contrapor também ao modelo nocivo e concentrador que é aplicado no restante da área de 440 hectares da antiga fazenda Capão do Cipó.

Para isso, aprenderam e aprimoraram técnicas da produção agroecológica.

A felicidade de poder fazer essa comida saudável chegar a quem enfrenta dificuldades para se manter nas periferias das cidades nesse momento dramático da pandemia do novo coronavírus é quase palpável naquele ambiente de preparação das cestas.

Antes de partirem para serem doados no dia seguinte, os kits montados no Maria Rosa do Contestado ainda receberam as bênçãos do frei franciscano da Diocese de Ponta Grossa, Luiz Antônio Frigo.

Por vídeo, os alimentos partilhados nos Campos Gerais também foram abençoados pelo arcebispo de Ponta Grossa, Dom Sérgio Arthur Braschi.

Toda essa mística soma-se à carga emocional que carregam os produtos das atividades solidárias do MST desde a mensagem que veio diretamente do Vaticano, trazendo palavras de agradecimento do Papa Francisco pelo gesto de grandeza do movimento popular.

Uma verdadeira e variada cesta de bondades é preparada para mais uma ação de solidariedade da Quarentena Sem Terra, que já doou mais de 400 toneladas de alimentos no Paraná (além de 11.200 marmitas à população em situação de rua e 600 máscaras de pano) e 2.800 toneladas em todo o país.

A terra é generosa!

Uma das pessoas que não se continha em satisfação por poder dividir a comida produzida na horta ao lado de sua moradia era Irani Vieira, acampada no Maria Rosa do Contestado há quatro anos.

Ela conta, com brilho naqueles olhos redondos que tem, que mudou para lá com o marido quando a ocupação completava um ano e após sucessivos desgostos, sobrevivendo na periferia de Curitiba.

Trabalhou em restaurante por mais de duas décadas e sua dedicação à cozinha comunitária do acampamento agrega também esse conhecimento.

Os parentes não aceitaram muito bem a decisão do casal de voltar às raízes e cultivar a terra abraçando a bandeira do MST.

Doações em Castro. Foto Iara B. Falcade Pereira

Enfrentou reações que brotavam do senso preconceituoso comum e da visão estereotipada que se faz do movimento popular por aí.

Foram, aos poucos, ampliando a consciência no dia a dia e derrubando essas barreiras. Hoje, o casal conta com a compreensão, apoio e até a adesão da família. Na prática, eles foram desconstruindo aquela imagem distorcida e pejorativa.

Irani lembra a primeira vez em que foi à Curitiba para uma ocupação da sede da superintendência do Incra no Paraná, a fim de pressionar o governo para atender às reivindicações do povo na luta pela reforma agrária.

“Fechamos a rua toda e montamos as cozinhas comunitárias. Os ‘mendigos’ vinham ali e comiam com a gente. Um deles até comentou que gostava quando a gente vinha para a cidade porque ele tinha, assim, a garantia do prato de comida”, conta a camponesa.

“Um dia, apareceu um senhor que mora em um prédio ali perto, com uma vasilha de plástico na mão. Queria um pouco da nossa comida também. Disse que sentia um cheiro bom e criou coragem de ir lá pedir”, lembra Irani.

Não é de hoje que a comida dos trabalhadores Sem Terra dá pra alimentar todo mundo, sem fazer distinção.

O marido dela, Natalino Sanches, também se orgulha de repartir os alimentos produzidos no Maria Rosa do Contestado e não esquece o drama que já viveu, quando morava na periferia de Curitiba.

“Vejo as pessoas enfrentando muitas dificuldades nas favelas e não tem como não pensar: poderia ser nós, lá, recebendo a comida, precisando dessa comida”, comenta, intrigado.

Maria Rosa do Contestado é um nome que remete à liderança, força e história de luta de uma jovem adolescente, que viveu e marcou sua valorosa participação na Guerra do Contestado.

Esse espírito de garra transformadora está presente em cada camponês e camponesa do acampamento de Castro.

Cada história de vida é um legado de motivação e de resistência. Traz um conjunto de sonhos, de projeções e de caminhos decididos que os impele e anima a defender sua sobrevivência e a de muita gente sob a bandeira da organização popular e da justiça social.

Defende mais: o direito das pessoas viverem e trabalharem com dignidade, terem oportunidades de construir com liberdade suas histórias e de se alimentarem do produto de cada gota de suor que nutriu e adubou a terra sob seus pés.

Assentamento Conceição, em Castro. Foto: Thea Tavares

De cada cuidado depositado numa esperança que se renova natural e consequentemente a partir do trabalho árduo e paciente de semear, cultivar, cuidar, esperar e colher.

#DespejoZero

No final de agosto, acontecerá uma audiência em que o juízo da Comarca de Ponta Grossa tomará uma decisão que afetará o destino das 200 famílias que vivem nas comunidades do acampamento Maria Rosa do Contestado.

Ele vai julgar a legalidade ou não da cessão que a Secretaria do Patrimônio da União (SPU) que, no governo de Bolsonaro, foi realizada sorrateiramente.

Trata-se da cessão da área total da antiga fazenda Capão do Cipó para o município de Castro (incluindo aquela em que vivem as 200 famílias camponesas), destinando-a para a construção de um campus do Instituto Federal do Paraná (IFPR) no local.

O IFPR necessita, no máximo, no máximo, de 35 dos 440 hectares da fazenda.

Ao adotar tal expediente, a SPU atropelou todo um conjunto de tratativas e de processos que vinham sendo construídos para resolver a questão em um ambiente de convivência harmoniosa que contemplasse todos os envolvidos. E isso é totalmente possível!

É fato que a terra pública foi grilada em Castro. Em 2004, a própria SPU constatou a irregularidade da posse pela Fundação ABC e descobriu que atende, inclusive, interesses de empresas transnacionais.

A Advocacia Geral da União (AGU), por sua vez, pediu em juízo a reintegração dessa posse, que foi concedida em 2013 em caráter definitivo pelo Poder Judiciário.

Tendo em vista que as terras públicas ou devolutas se destinam prioritariamente à política agrícola e de reforma agrária (CF88), o Incra-PR solicitou o imóvel.

Apesar dos esforços de todos os organismos e poderes públicos envolvidos, a Federação não arredou pé da área. E o capítulo mais recente dessa novela foi protagonizado pela patacoada do governo miliciano.

É preciso um mínimo de bom senso, justiça e sensibilidade em uma sociedade que percebe, no exemplo das ações de solidariedade promovidas pelo MST, o sentido da reforma agrária e a importância desse gesto humanitário. Especialmente no recorte histórico das circunstâncias da Covid-19, quando o governo negacionista de plantão se exime de responsabilidades e desampara a população.

A confiança manifesta nas palavras do camponês Vanderley Vieira da Rosa, citadas no início deste artigo, embalará pelo menos uma noite de tranquilidade no descanso merecido das 200 famílias que só pedem o direito de trabalharem em paz, de sobreviverem e de colocarem a todos nós de volta no curso dos avanços civilizatórios da humanidade.

É justamente isso que está pendente de julgamento no próximo dia 25 de agosto nos Campos Gerais do Paraná.


*Thea Tavares é jornalista
**Editado por Fernanda Alcântara