Semana Tocantinense de Agroecologia semeia saberes no combate ao Covid-19

Programação trouxe para a centralidade do debate o direito humano à alimentação saudável e à soberania alimentar em meio à pandemia, além da defesa dos territórios na Amazônia contra os ataques do governo Bolsonaro
Foto: Ana Carolina Ramos Azevedo/ MST

Por Ana Carolina Ramos Azevedo
Da Página do MST

Este ano a programação da Semana Agroecológica Tocantinense, organizada pela Articulação Tocantinense de Agroecologia entre os dias 17 e 21 de agosto, foi diferente em meio à pandemia de Covid-19 – maior crise sanitária do século. Nada de abraços calorosos, trocas de sorrisos e apertos de mão. Neste ano, o compartilhamento de saberes e acúmulos dos povos indígenas, camponeses, quilombolas, quebradeiras de coco babaçu, assentados, acampados, e todo o povo da terra, das águas e das florestas acerca da agroecologia em nossos territórios se deu a partir de campanhas de solidariedade durante essa semana e uma Live de encerramento no Canal do YouTube Resistência Contemporânea, mídia alternativa local, com o tema “Os Saberes Agroecológicos no Combate à Pandemia”.

Este foi o caminho da Semana Tocantinense de Agroecologia, o direito humano à alimentação saudável e à soberania alimentar. A reza, o canto, a cura do saber popular, que é o saber da relação com a natureza, com a terra, com a água, do cuidado com o bem comum, das práticas alimentares, das práticas de cultivo dos alimentos, das plantas medicinais, da colheita, da caça, da pesca. Uma infinidade de conhecimentos e saberes agroecológicos, de saberes populares que fazem parte do modo de vida dos sujeitos que constroem o seus territórios. Nessa semana, a solidariedade brotou desses povos e de seus saberes trazendo esperança, força e coragem para resistirmos no enfrentamento à pandemia. Foram doadas cestas básicas de alimentos saudáveis e kit’s de higiene em diversas regiões do estado.

Foto: Ana Carolina Ramos Azevedo/ MST

Antônio Marcos, dirigente estadual do MST no Tocantins, reforçou a expressão da luta camponesa, indígena, quilombola e ribeirinha e desses diversos povos na defesa dos seus territórios. “É importante nós reafirmarmos a importância da luta camponesa das entidades da Amazônia, que historicamente tem feito o enfrentamento ao latifúndio, ao agronegócio e ao capital. E que tem construindo experiências de resistência e de luta a partir dessa forte expressão do movimento agroecológico na região, que é organizado por uma frente ampla de organizações, movimentos, pastorais e grupos. E essas organizações camponesas como a própria ATA, que organizou a Semana Agroecológica, que trouxe para o centro do debate os saberes agroecológicos, debatendo sobre esses acúmulos, sobre a construção, a reafirmação e resistência do saber popular tradicional, é parte fundante do que é verdadeiramente esse campesinato. E esses saberes populares têm garantido inclusive a resistência e a luta dessas comunidades, desses povos principalmente agora no enfrentamento à pandemia, pautado pincipalmente na produção saudável de alimentos”.

Antônio denunciou o governo Bolsonaro e defendeu que as articulações entre as comunidades tradicionais é uma das principais alternativas para resistir a esse período. “Essa tem sido a quarentena dos povos do campo que produzem, dos povos que tem a agricultura como uma dimensão cultural em suas vidas. As trocas de sementes, de mudas e saberes tem sido parte do enfrentamento não só à pandemia, mas também no enfrentamento a outras pandemias que oprimem e pressionam nossos territórios e a vida do povo na Amazônia há muito tempo”.

Nesse último período temos sofrido ataques estimulados e impulsionados pelo próprio governo federal, no seu entreguismo ao agronegócio, aos fazendeiros, aos grandes empresários e ao grande capital, que não respeitam os povos que são donos e filhos desse território, que resistem e organizam a luta historicamente, e que seguirão firmes defendendo seus territórios, defendendo o bem comum, a natureza, a terra, a água, semeando seus saberes”.

Marcos defendeu ainda que a agroecologia é a defesa da vida, da soberania alimentar e popular, e, sobretudo, forjada na solidariedade. “A ATA demonstrou toda essa semana a partir da doação de alimentos saudáveis produzidos pelas comunidades tradicionais que a solidariedade é um valor importante dentro do movimento agroecológico. E seguimos construindo e fortalecendo a agroecologia nas suas dimensões múltiplas que perpassam a técnica, a defesa da terra, do território, do alimento saudável, e também à luta pela soberania alimentar e soberania popular na Amazônia, que rompe com todas as formas de violência e preconceito e com as relações conservadoras da sociedade capitalista. A agroecologia pra nós é a defender os direitos humanos, dos camponeses e camponeses à vida. Viva à agroecologia!”

Foto: Ana Carolina Ramos Azevedo/ MST

Antônio Veríssimo, liderança do povo Apinajé da Aldeia Cocalinho em São Bento no Tocantins, na região do Bico do Papagaio, denunciou o enfrentamento de mais de 10 anos contra o desmatamento na região e o quanto se intensificou com no Governo Bolsonaro. “Enfrentamos nos últimos 10 anos uma grande dificuldade quanto ao desmatamento no entorno da terra Apinajé, sobretudo com o avanço das transnacionais de produção de celulose sobre nosso território. Nessa perspectiva do crescente desmatamento criamos uma casa de sementes na aldeia, com o objetivo de fazer a discussão sobre a agricultura camponesa, indígena, os modos tradicionais de produção de alimentos e sistemas agroflorestais, para fortalecer nossa agricultura tradicional”, contou.

E falou ainda sobre a importância da organização e articulação dos povos e comunidades “A Semana Agroecológica é importante para nos organizarmos contra os inimigos do meio ambiente, que no Governo genocida de Jair Bolsonaro ganharam reforço. Os danos do desmatamento ao meio ambiente e principalmente aos recursos hídricos, rios e nascentes, são danos incalculáveis e irreparáveis, porque não estamos falando apenas do desmatamento, mas também dos agrotóxicos, que são venenos usados nessa dinâmica de agricultura do agronegócio, que nos impacta diariamente, no solo e nas águas. Mesmo em meio ao horror que é esse governo e com o avanço da pandemia no nosso estado, a solidariedade organizada pelos movimentos sociais e organizações parceiras da luta tem sido uma importante ferramenta de resistência a esse período”.

Foto: Ana Carolina Ramos Azevedo/ MST

Matopiba

O Plano de Desenvolvimento Agrário Matopiba, criado via Decreto Nº 8447, em maio de 2015, na gestão da senadora ruralista Kátia Abreu que no período estava à frente do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, compreende hoje a região considerada a grande fronteira agrícola nacional, que abrange as regiões do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, totalizando 143 milhões de hectares e mais de 25 milhões de habitantes envolvidos. O território engloba três biomas, Cerrado, Amazônia e Caatinga e possui as nascentes das três maiores bacias hidrográficas da América do Sul: Tocantins, São Francisco e Prata, o que resulta em um elevado potencial aquífero.

Paralelo a um discurso propagado de desenvolvimento econômico da região, que se baseia em investimentos agrícolas, o Matopiba esconde na realidade outro projeto de desenvolvimento, como denuncia Maria do Socorro Teixeira, integrante do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco de Babaçu (MIQCB), moradora do Assentamento Camarão II, no Município de Praia Norte, Tocantins. “Eles querem nos vender o discurso que o projeto é um grande investimento, traz desenvolvimento, mas pra nós, quebradeiras de coco, nossa renda familiar e autonomia não vêm do Matopiba. Nossa vida está na floresta, está no babaçu e se não tem floresta, água saudável, babaçu, não tem mata, não tem vida! Esse projeto representa uma grande ameaça para nós do Tocantins, mas também dos outros estados que ele abrange! Além dos venenos que eles jogam no ar, no solo e poluem tudo! O Matopiba mata tudo!”

A região do Matopiba está ocupada, em sua maioria, por comunidades quilombolas, povos indígenas, comunidades tradicionais e camponesas que não tem seus territórios regularizados. A partir dessa ultima fronteira agrícola, o cerrado que ainda existe na região (é importante lembrar que a fronteira compreende a maior área de cerrado contínuo do país) corre risco de extinção. Uma das causas é a expansão do modelo agrário baseado na monocultura, plantio de grãos como milho e principalmente soja. Além da destruição do Cerrado, o Matopiba também empreenderá graves impactos sociais como o agravamento da pobreza e insegurança alimentar dessas comunidades afetadas. “O governo vendeu o todo estado e ficamos nos nossos territórios pressionadas pelo avanço do agronegócio pra produzir a partir do babaçu. Com isso, decidimos trabalhar a agroecologia pra sanar a situação, eu sou uma agricultora agroecológica do Bico do Papagaio, integrante do MIQCB, quando eu preservo meu lote, minha fonte de recursos naturais, eu contribuo com a agroecologia! Quando se mata a floresta, junto acabam os recursos hídricos e a biodiversidade, e sem esses recursos, não há sobrevivência!” denunciou Maria do Socorro.

Os saberes agroecológicos na disputa de narrativa

As comunidades tradicionais, povos indígenas e quilombolas, camponeses, assentados, acampados, povos da terra, das águas e das florestas, quebradeiras de coco de babaçu defendem a agroecologia como uma alternativa para a financeirização da terra, dos alimentos e da vida que é o agronegócio. A agroecologia é a agricultura que considera todos os elementos envolvidos na produção, não apenas uma forma de cultivo, de semeadura.

Agroecologia é plantar respeitando desde o micro-organismo da terra, ao território, às águas, à biodiversidade, as culturas e tradição dos povos. A agroecologia abarca dinâmicas de relações sociais, a luta contra o machismo, contra o racismo, contra a LGBTfobia, a luta contra as desigualdades sociais, soberania alimentar, reforma agrária popular e defesa dos territórios. Luta por soberania nacional e pela democracia. É produzir alimento limpo, sem veneno, comida de verdade, para alimentar o povo que semeia a terra.

O Tocantins é um dos maiores produtores de soja e milho do Brasil. A alta produção colocou o estado como destaque entre os estados que mais produzirá grãos em 2020. O portal Aegro mostra que as expectativas para este ano em relação ao setor no país é de que faturamento do agronegócio deve aumentar 9,8% em comparação a 2019. Nossa agricultura é financeirizada pelas transnacionais do agronegócio de produção de grãos, do extrativismo vegetal, garimpo e da produção de celulose.

Segunda dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) nos últimos 10 anos, o estado cresceu 101% em armazenamento de grãos, saindo de 1,16 milhão de toneladas de grãos para cerca de 2,33 milhões de toneladas. E esse crescimento se deu, sobretudo, com os incentivos tanto do Estado do Tocantins, como a lei estadual 3.519/2020 que reconhece e convalida títulos paroquiais de imóveis rurais, dando aos produtores do agrobisness a segurança jurídica necessária para a propriedade, além de incentivos como o crédito rural.

Além do governo estadual, o Governo de Jair Bolsonaro tem operado para a destruição do Cerrado e da Amazônia, incentivando o avanço do agronegócio sobre os territórios e organizando essa política no Ministério do Meio Ambiente, sucateando o órgão e coibindo a fiscalização nos territórios indígenas, como denuncia Antônio Apinajé. “Eles estão do lado do poder econômico e político, e nós estamos do lado da vida. O Governo Bolsonaro se aliou à pandemia para matar os povos indígenas, quilombolas, camponeses e trabalhadores, é mais que urgente seu impeachment, pela vida dos povos originários e do povo brasileiro! Não podemos mais viver em meio ao medo e à incerteza que é a viver em essa negligencia nesse governo, que quer abrir nossos territórios para o garimpo, para a mineração e para o agronegócio!” denunciou. Em 2019 foi aprovada pelo Senado a MP 881/2019, proposta pelo Governo Federal, que terá reflexos nas relações agrárias contratuais privadas, tirando do estado o papel de interferirá nessa relação. No começo deste ano o governo também promulgou o decreto presidencial 10.198/2020, que dispõe sobre as infrações e sanções administrativas ao meio ambiente, alterando o tramite dos processos administrativos relativos a multas ambientais, facilitando a conversão das multas ambientais em serviços de recomposição, o que contribui com desembargo de áreas antes impossibilitadas de produção, e que agora estão abertas para o agronegócio.