Nota sobre uma demolição: O caso da Cinemateca Brasileira
Por ABD-SP
Desde que se encerrou o contrato de gestão da Cinemateca Brasileira com a Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp), pelo então ministro da Educação, Abraham Weintraub, o maior acervo audiovisual da América Latina está sob sério risco de desaparecimento. No local, são mais de 100 anos de história do audiovisual brasileiro, com mais de 250 mil rolos de filmes, que sem manutenção técnica corre risco de pegar fogo.
A instituição, que ficou sem receber recursos e hoje acumula dívida de R$ 13 milhões, teve as chaves tomadas no último dia 07 pela Secretaria Especial de Cultura, por meio de uma operação com homens fortemente armados da Polícia Federal. Dias depois, foram anunciadas as demissões do pessoal técnico.
É neste contexto que a Diretoria Colegiada da Associação Brasileira de Documentaristas e Curta-metragistas de São Paulo (ABD-SP) emitiu nota em repúdio ao descaso com a instituição e em apelo à essa memória brasileira.
Segue nota na íntegra:
A Cinemateca Brasileira foi fechada com viaturas da PM. O arbítrio se fez valer pela brutalidade da força policial. Esse episódio que testemunhamos é o esforço de demolição à marretadas de uma ideia de país possível, pois a Cinemateca foi concebida e construída segundo a demanda de rememoração do passado para a construção do futuro.
Esta instituição organiza e preserva imagens que nos constituem como brasileiras e brasileiros, sintetizando os esforços de gerações para ver, pensar, conhecer e elaborar um país. A Cinemateca Brasileira é uma construção coletiva de décadas que gestou não somente uma instituição articuladora entre os poderes públicos e quadros técnicos, mas nos forneceu uma ética na relação com o passado e estipulou um sentido histórico mais amplo para a construção de uma consciência e uma ação institucional eficaz em torno do cinema brasileiro do passado, presente e futuro.
Foi nesse espírito que Paulo Emílio Sales Gomes a fundou – e é tudo isso que vem sendo incendiado por uma articulação perversa entre elites econômicas e o que temos de pior na oligarquia política nacional. A meta: começar a história do país do zero para melhor controlar e oprimir uma massa de sequelados sem passado e sem pés no presente. Sem a possibilidade de participar da construção do futuro?
A partir do entra e sai dos governos recentes, o trabalho e o sentido da Cinemateca Brasileira nos lembrava constantemente e de maneira vigilante que o cinema brasileiro é um organismo demasiadamente frágil (ainda que poderoso), com uma mentalidade de curto prazo, um valor simbólico (ou mercantil) que não conseguiu ser visto como patrimônio de um país emergente. Ou seja: a ideologia do nosso esboço de sistema cinematográfico pensava (e pensa) com a cabeça e o estômago da nossas elites: mercado acima de tudo – e o passado que fique para depois, ou nunca.
A Cinemateca foi uma construção formidável do cinema e da memória
audiovisual brasileiros porque é onde essa mentalidade de curto prazo não teria como funcionar. Sua missão anda na contramão das perspectivas turvas do imediatismo de um mercado que não conseguimos superar (de nossa “situação colonial 2.0”, ou de nossa turbulenta situação “pós-colonial”).
O que hoje assistimos é a destruição de nossa história para que se comece outra coisa (não outro país) do zero. Isso não somos nós quem falamos, foi o próprio Jair Bolsonaro em jantar nos Estados Unidos com uma escumalha encabeçada por Steve Bannon e o “aflitivo” boquirroto Olavo de Carvalho. “Destruir tudo, não deixar nada de pé”, disse. O jogo é claro. Não é “falta de conhecimento” dos problemas reais do audiovisual brasileiro por parte desses aventureiros (ou bandoleiros) que ocupam o poder público, ainda que haja ignorância. É um projeto de terra arrasada elaborado no conchavo. Portanto, não se trata de “querem acabar com o cinema brasileiro”. Eles se empenham em acabar com o Brasil e estão tomando providência para acabar com sua imaginação e criatividade.
E este é um dos pontos estratégicos da atual investida contra a cultura e o passado de nosso país, pois decorre disto a anulação do seu sentido coletivo, dos seus valores legítimos, de suas belezas, de sua história possível construída com sofrimento mas também alegria. Tal como Dr. Amnésio, personagem interpretado por Otávio Terceiro em O Signo do Caos (2005), de Rogério Sganzerla: “Não é esse o Brasil que queremos, não é essa a imagem. Destrua! (…) Pra quê filmar ‘crioulos sambando?”. Amnésio, censor do DIP, falava das imagens de It’s All True , que Orson Welles filmou no Brasil.
Amnésio é o arquétipo-síntese da estupidez, da asneira boçal, da falta de discernimento, do ressentimento e da ausência de imaginação. Sganzerla sempre atacou de forma muito criativa essa cultura política que celebra e ostenta a própria ignorância com orgulho, com o argumento de que essa postura, essa concepção de mundo, é a única possível – é como funciona nas
gringas. O Signo do Caos aponta para a vocação de um poder no Brasil que odeia seu próprio povo e sua imagem.
A Cinemateca Brasileira foi inventada para nos lembrar que nossa história está em risco e se nosso passado desaparecer, não haverá um futuro. É nessa elaboração fina, em fio de navalha, que se fez a Cinemateca Brasileira. É essa aflição ativa, essa consciência, que precisa nos animar. É o desejo de construir um país coletivamente e de forma autônoma. Tristeza, sim, mas também alegria e fúria. É hora de ação direta.
Diretoria Colegiada da Associação Brasileira de Documentaristas e
Curta-metragistas – São Paulo (ABD-SP)
*Editado por Luciana G. Console