Além da pandemia, povos indígenas do MT e MS enfrentam a omissão do governo federal
Por Redação da Região Centro-Oeste/ MST
Da Página do MST
Monitoramento da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) aponta que já são mais de 29 mil indígenas infectados com a Covid-19. Os dados, disponíveis no site Emergência Indígena, apresentam um panorama geral da pandemia nos povos indígenas. Até o dia 1 de setembro, o quadro mostrava que 760 indígenas foram mortos pela Covid-19 e há registros de infectados em 156 povos indígenas do país.
O levantamento da Apib representa o total de dados informados pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e apurados pelo Comitê Nacional de Vida e Memória Indígena, criado na Assembleia Nacional de Resistência Indígena, realizada em maio deste ano, para articular estratégias de contenção dos danos causados pela Covid-19 sobre os povos indígenas.
Os números elevados escancaram o descaso do Governo Federal com a saúde dos povos indígenas. Se inexiste um plano de contingenciamento da pandemia em nível nacional, como a ausência de um ministro da Saúde há mais de 3 meses, para os povos indígenas a situação só se agravou, vide o sucateamento de órgãos como a Fundação Nacional do Índio (Funai), por exemplo.
Entre os seis estados com o maior número de indígenas mortos pela Covid-19 estão Amazonas, Mato Grosso, Pará, Roraima, Maranhão e Mato Grosso do Sul. Os dois estados da região Centro-Oeste somam 169 mortos pela Covid-19. Em Mato Grosso, estado com 42 povos indígenas, já são 119 mortos pela Covid-19, e entre os povos mais afetados estão os Xavante. Crisanto Xavante, presidente da Federação dos Povos Indígenas do Mato Grosso (Fepoimt), é um dos sobreviventes da Covid-19. “Passei pela experiência brava de ter tido Covid, no dia 19 de junho fui internado com 90% dos pulmões comprometidos, fiquei 8 dias na UTI”, contou durante live realizada pela Apib no dia 28 de agosto, reforçando ainda as ações de luta indígena contra a pandemia.
Para Eliane Xunakalu, do povo Kurâ-Bakairi e coordenadora da Fepoimt, a situação da pandemia nas terras indígenas não tem sido diferente do restante do país. “A Covid-19 avança com uma rapidez enorme nos territórios indígenas. Todas as regiões tem indígenas contaminados”, aponta.
Eliane fala ainda sobre o racismo que os indígenas sofrem ao procurar atendimento na cidade. “Os não-indígenas acreditam que somos nós que levamos a doença, mas é o inverso. As pessoas vão à cidade em busca de atendimento e infelizmente voltam em um caixão. Enfrentamos um inimigo invisível”.
Não são números, são vidas
No estado do Mato Grosso do Sul, até o último levantamento divulgado pela Apib, são 55 indígenas mortos, a maioria da etnia Terena, que é a terceira com o maior número de óbitos do Brasil. Até o dia 21 de agosto, segundo boletim divulgado pelo Conselho Terena, eram 1.439 terenas infectados com a covid-19. Somente na Terra Indígena Taunay/Ipegue, que fica no município de Aquidauana, são 646 casos confirmados, em um território com cerca de 5 mil indígenas. É neste território que se concentra o maior número de óbitos de indígenas no Mato Grosso do Sul: 20.
Apesar do alto índice de mortos e de contaminados com a Covid-19, os números ainda não expressam a total realidade, tendo em vista a subnotificação. Segundo Eriki Paiva Terena, da aldeia Taunay/Ipegue, membro do Conselho Terena e assessor técnico da Apib, indígenas que estão no contexto da cidade não são atendidos como indígenas e, portanto, não entram nos números disponibilizados pela Sesai. “A gente sabe que são mais indígenas mortos, mas não temos controle sobre esses números”.
Entre os fatores para esses números elevados, Eriki Paiva Terena aponta a vida comunitária como um facilitador. “Muito fácil para uma pessoa branca falar sobre isolamento social e não ter contato, sendo que no nosso povo a gente divide quintal, divide alimento, divide o convívio. Então é muito dificultoso pra gente obedecer esse isolamento social e é muito utópico essa mesma população branca falar em higienização, em limpeza, quando nós temos, por exemplo, o povo Guarani e Kaiowá, que vive às margens das estradas, em áreas de retomada, que não tem acesso à água potável para beber e muito menos para lavar as mãos. E essa situação não atinge só a eles, é uma realidade também do povo Terena”.
Para Eriki Paiva Terena o alto número de mortes é fruto de um processo histórico. “Não é de hoje essa fragilidade, esse sucateamento da saúde indígena é um processo que foi construído. Não somos um povo fragilizado, fomos e somos colocados, historicamente, em fragilidade, em vulnerabilidade. Não somos vulneráveis, somos postos em vulnerabilidade pelas amarras do Governo, pelas mazelas da colonização”.
O acesso a um atendimento de saúde com qualidade é uma demanda histórica dos povos indígenas e se intensificou no período da pandemia. Segundo Eriki a pandemia escancarou a falta de estrutura da Sesai para atender as necessidades dos povos indígenas do país, fruto de cortes orçamentários e falta de investimento do Governo Federal. “Vivemos uma situação muito decadente em termos de saúde. Qualquer outra pandemia que viesse escancararia esse problema que é histórico e visível que está na nossa aldeia todos os dias, que é falta de atendimento básico de saúde. A gente não tá morrendo só hoje de Covid, a gente tá pedindo socorro há muito tempo”, destaca.
Desmonte da saúde indígena é uma pandemia à parte
Em nota divulgada em 24 de agosto, o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) aponta para os problemas históricos e atuais da política de saúde indígena no país e denuncia a omissão do governo Bolsonaro diante da pandemia. “Se o histórico da política de saúde indígena demonstra ter havido desvios, a partir da eleição do governo de Jair Bolsonaro o caos se instalou tal qual um vírus devastador. Os povos indígenas passaram a enfrentar duas pandemias: a política e a da covid-19”, aponta trecho. Leia a nota completa aqui.
Falta de orçamento = falta de prioridade
A omissão do governo federal em relação à saúde indígena é reflexo também do baixo orçamento disponibilizado para a Fundação Nacional do Índio (Funai). No dia 1º de julho, a Indigenistas Associados (INA), associação que congrega servidores da Funai, divulgou uma carta pública destacando ser imprescindível para a atuação do órgão a informação de plano para enfrentamento da covid-19, bem como a contratação em caráter de emergência de funcionários para realização das atividades de competência do órgão.
Na carta, a INA observa que o orçamento destinado à Funai para o enfrentamento à Covid reflete a falta de prioridade dada aos indígenas pelo Governo Federal. “A Medida Provisória 942/20 destinou R$ 199.824.649,00 para o enfrentamento à Covid. Destes, apenas 5 % (R$ 10.800.000,00) foi destinado à Funai. Já a Medida Provisória 956/20 destinou R$ 408.869.802,00 para o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), e só 1,8 % (R$ 7.500.000,00) para a Funai. Ou seja, de R$ 608.694.451,00, apenas R$ 18.300.000,00 – equivalentes a 3% – foram destinados à Funai, valor insuficiente para que esta realize toda a coordenação da política indigenista na pandemia, incluindo tanto a execução da proteção territorial e de povos indígenas isolados, quanto o acompanhamento das políticas sociais”, observa trecho da carta. A imagem ilustra o percentual do recursos global com as MP’s e o que foi destinado para a Funai.
Emergência Indígena
Diante da grave omissão do governo federal, as próprias organizações indígenas têm se mobilizado nacionalmente para enfrentar este momento. Logo após o anúncio da Organização Mundial de Saúde sobre a gravidade da pandemia, a Apib enviou ofícios, no dia 1º de abril, para todos os governadores afim de alertar, solicitar providências e recomendações para amenizar os impactos da pandemia nos povos indígenas.
Ao considerar que os povos indígenas estão expostos não apenas ao novo coronavírus, “mas também à acentuada vulnerabilidade social que dificulta o enfrentamento do processo epidêmico, assim como a sustentabilidade alimentar”, os ofícios indicavam dez medidas a serem tomadas pelos governos estaduais, entre elas a articulação entre as secretaria estaduais e municipais com os Distritos Sanitários Especiais Indígenas, afim de garantir “acesso à informação da situação epidemiológica e das ações que estão sendo realizadas em cada local, terras e aldeias indígenas, inclusive da população indígena em área urbana”.
No final de junho, a Apib também lançou o Plano de Enfrentamento da Covid-19 e está em campanha para promover ações de combate à pandemia nos territórios, com o apoio de parceiros. Cada etnia também tem realizado ações de controle de acordo com suas especificidades, como, por exemplo, as barreiras sanitárias, que tem função de combater a entrada da covid-19 nas aldeias. “A primeira barreira sanitária no MT foi na Terra Indígena Taunay/Ipegue, que começou no dia 15 de março, com o objetivo de diminuir o fluxo de pessoas que não moravam na TI. Fizemos isso assim que começamos a entender a gravidade da doença”, relata Eriki Paiva Terena.
Vetos de Bolsonaro
Em um aspecto o Governo Bolsonaro tem sido eficiente neste período de pandemia: os ataques aos povos indígenas, principalmente nas ações que impedem a implementação de uma ação de enfrentamento à Covid-19 entre os povos indígenas. Bolsonaro vetou 22 medidas ao Projeto de Lei 1142/2020, que dispõe sobre medidas urgentíssimas de apoio aos povos indígenas em razão do novo coronavírus. Aprovado pela Câmara e Senado, nos meses de maio e junho, o Governo Federal sancionou o PL no dia 7 de julho, com 22 vetos, entre eles, a garantia de acesso a água potável, materiais de higiene e desinfecção, leitos e equipamentos em UTI’s, comunicação e informação, dotação orçamentária emergencial e outros. Os vetos de Bolsonaro confirmaram a política anti-indígena do governo.
No dia 19 de agosto, o Congresso Nacional derrubou 16 dos 22 vetos de Bolsonaro. Uma vitória parcial dos povos indígenas e de povos e comunidades tradicionais do país, que seguem em alerta para que o PL seja de fato implementado. Leia mais sobre a medida no site da Apib.
Ataques violentos
Embora, os povos indígenas estejam voltados para o enfrentamento à pandemia, os ataques institucionais e violências não cessaram. No dia 24 de agosto, a barreira dos Mebêngôkre Kayapó da aldeia Piaraçu, Terra Indígena Capoto/Jarina (MT), foi alvo de um atentado. Segundo nota do Instituto Raoni, “indivíduos armados invadiram a aldeia em uma caminhonete Hilux preta, por volta das 19 horas, depois de destruírem a barreira montada pelos indígenas. Já na aldeia, realizaram cerca de 30 disparos. Na sequência, os criminosos seguiram no rumo de São José do Xingu. Apesar do susto e apreensão, nenhum indígena foi ferido”.
No Mato Grosso do Sul, a situação de violência também tem se repetido. No dia 25 de agosto, a Força Nacional chegou apontando armas para indígenas do Tekoha Yvy Rovy Poty, retomada Guarani e Kaiowá, localizada na zona limítrofe à Reserva Indígena de Dourados (MS). A área está em disputa judicial e a proprietária incitou a ação policial para um despejo forçado e ilegal, conforme noticiou o CIMI no dia 28 de agosto.
Os povos indígenas do MS, principalmente os Guarani e Kaiowá, que vivem em áreas de retomadas, sofrem constantes ataques violentos de fazendeiros e grileiros de terras. Alguns desses números são evidentes no Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – dados de 2018, sistematizado anualmente pelo Cimi e lançado em 2019. O Relatório aponta que houve aumento no número de assassinatos de indígenas em comparação a 2017. “Em 2018 foram registrados 135 casos de assassinato de indígenas, 25 a mais que os registrados em 2017. Os dois estados que tiveram o maior número de assassinatos registrados foram Roraima (62) e Mato Grosso do Sul (38)”.
Ações de solidariedade
Em maio, os Guarani e Kaiowá divulgaram uma carta com um pedido de ajuda pela sua sobrevivência. “Somos aproximadamente 51 mil Guarani e Kaiowá, a segunda maior população indígena do Brasil, localizados no estado de Mato Grosso do Sul e nos encontramos em Estado de Emergência”, observa trecho da carta. A situação de fome se agravou na pandemia e é um dos reflexos da situação de violência imposta contra a etnia, principalmente em razão da luta pela demarcação de seus territórios.
Com uma parcela da população vivendo em áreas de retomadas, sem acesso à água, energia e alimentos, contar com a solidariedade se apresenta como uma necessidade para os povos Guarani e Kaiowá. Desde o início da pandemia, o MST no Mato Grosso do Sul doou 30 toneladas de alimentos, alcançando sete aldeias e beneficiando cerca de 750 famílias com alimentos saudáveis da reforma agrária, em parceria com outras organizações.
“Existe um descaso com os Guarani e Kaiowá e ficamos muito felizes em poder contribuir com essa ação de levar os alimentos porque são um povo aguerrido, um povo de luta, ”, ressalta Dinho Lopes, da Direção Nacional do MST no MS, que destaca ainda a organização interna dos indígenas. “Conseguiram fazer barreira sanitária em todo o território deles, eles estão fazendo a própria segurança, proteção para não entrar pessoas estranhas à comunidade”. Além dos alimentos, o MST também está contribuindo com a produção de fitoterápicos para os Guarani e Kaiowá.
“A reforma agrária popular tem sido fundamental nesse processo e temos mostrado isso para a sociedade brasileira, de que a saída não é o agronegócio. A saída é produzir comida saudável, limpa de veneno, estamos nessa luta”, destaca Dinho Lopes.
No Mato Grosso, as ações de solidariedade do MST, em parceria com outras organizações, também tem acontecido e já foram doados mais de três toneladas de alimentos durante a pandemia. As ações de doação de alimentos e kits de higiene fazem parte da campanha nacional do MST em solidariedade às famílias que enfrentam a fome como uma das consequências da pandemia do novo coronavírus.
*Editado por Fernanda Alcântara