A comida é o primeiro remédio

Saúde de qualidade e alimentação saudável estão conectados à luta de classe dos camponeses e camponesas

Por Antony Corrêa e Jade Azevedo
Da Página do MST

Nos aproximamos do final do ano de 2020 e seguimos em meio a pandemia sanitária do COVID-19, causada pelo Sars-Cov-2. Além das mais de 134 mil mortes, a pandemia está intensificando a desigualdade social do Brasil e evidenciando que as populações mais desfavorecidas são as principais vítimas do vírus e do genocídio do atual governo. No Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a discussão da saúde sempre esteve presente e está ligada ao desenvolvimento da militância.

Na região sul do país, o Setor de Saúde tem feito ações de enfrentamento a atual realidade por meio das práticas de saúde popular e de autocuidado realizadas no Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

Maria Natividade, de 66 anos, é assentada no Assentamento Contestado, Lapa, Paraná. Ela é uma das responsáveis pelo Setor de Saúde no estado, nasceu e cresceu no campo e foi com sua avó benzedeira que iniciou seu aprendizado sobre a fitoterapia. Fez outros cursos na área de saúde e segue se especializando nas técnicas de bioenergia e fitoterapia.

Dona Maria Natividade, assentada no Paraná.
Foto: Wellington Lenon

“O remédio está na nossa horta, está na nossa floresta. Você tem tudo na mata, só tem que conhecer, porque tem a hora certa para colher, tem o jeito certo de secar, mas para ter uma boa saúde tem que comer. E comer bem. Não é só para encher a barriga”, conta.

Dona Maria ressalta que tudo está conectado: fitoterapia, agroecologia e o bem estar. “Na saúde popular o indivíduo é tratado como pessoa e não como paciente”, e explica que o importante é o cuidado por inteiro, do meio ambiente e de nós mesmos. “O corpo da gente é virado em pontos, então é preciso a gente conhecer nosso corpo, que é um templo, mas a gente não tira esse tempo se conhecer, se respeitar”. E acrescenta, “a pandemia deixou a gente recluso e não estávamos acostumando a ficar tanto tempo em casa. Mexe com o psicológico, mexe com a emoção, mexe com tudo, mas dá para aliviar isso com chás, escalda pés”.

Irma Brunetto, assentada no Assentamento Conquista da Fronteira, em Dionísio Cerqueira (SC), um espaço coletivo, onde estão organizados também, como cooperativa, a COOPERUNIÃO. É Coordenadora Estadual do MST no estado de Santa Catarina e responsável pelo Coletivo de Gênero e Setor de Saúde. Ela conta que quando o Movimento começou um diálogo com a Estação Experimental de Lages (EEL) e a Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) em 2011, se iniciou um projeto de cursos de homeopatia na região. “Eu ficava com aquela angústia de querer ajudar as pessoas nesse lado da saúde e me interessei, porque eu via na homeopatia um passo a mais no sentido de poder ajudar na cura das pessoas e fiz o curso”, conta.

Irma explica que a homeopatia, tem como princípio, a cura pelo semelhante, “em outras palavras, o que causa a sua enfermidade é também o que a cura”. Esse ano, devido a pandemia do novo coronavírus, ela buscou na homeopatia preparados homeopáticos que aumentassem a imunidade, ou como ela explica, a energia vital de cada um – termo usado na homeopatia. “A gente não vai combater propriamente o coronavírus, mas a gente pode fortalecer a energia vital para caso for infectado, poder se fortalecer. Dar a volta por cima”.

Prática homeopata em Santa Catarina. Foto: Comunicação MST-SC

Ela lembra que cada homeopata trabalha de uma forma olhando a pessoa como um conjunto, “a gente tem que cuidar do lado físico e do lado emocional do indivíduo, o que às vezes para um faz bem pra outro não faz”. Pensando nisso, ela, o coletivo de saúde, e os professores do curso resolveram trabalhar o preparado a partir do germe epidêmico, “que é um medicamento que funciona para todas as pessoas”, explica. “A gente trabalhou orientado pelos nossos professores, e mandou fazer as matrizes nas farmácias que manipulam homeopatia, e a partir da matriz nós fomos reproduzido para todos os assentamentos [do estado]. Nós, praticamente conseguimos levar para todas as regiões, ainda não atingimos todas as famílias, mas a gente está nesse processo de multiplicação do preparado homeopático”, ressalta Irma.

No Rio Grande do Sul, Sérgio Reis Marques, mais conhecido como Chocolate é coordenador do Setor de Saúde do estado, assentado no Assentamento Tarumã, em Jóia (RS), é um dos responsáveis pelo Horto Plantas para Vida que fica no Assentamento Rondinha, no mesmo município. Ele conta que no horto tem, na parte fechada, cerca de 220 plantas catalogadas e explica que o local faz parte do Assentamento, Dona Maria Almeida e seu Roque Almeida são os responsáveis, “a iniciativa foi deles que têm um engajamento de longa data neste trabalho. Toda a propriedade hoje está voltada a plantação de plantas medicinais”, explica.

Horto Plantas para Vida, no Assentamento Tarumã. Foto: Otelo de Almeida

Chocolate se casou com Leila, filha do casal, e foi aprendendo com a família a trabalhar com as plantas. Ele conta que o horto é a base de tudo o que desenvolve no Movimento e explica que o espaço funciona como multiplicador de conhecimento através de oficinas direcionadas aos acampamentos, assentamentos e espaços externos. “As pessoas vêm para cá, passam uma semana de imersão onde aprendem sobre as plantas, as técnicas e a partir daí vão reproduzindo em seus espaços de convívio as práticas e cuidados com base na fitoterapia”. Ele acrescenta ainda que esse intercâmbio de conhecimento e a prática de diálogo tem sido as estratégias de articulação para incentivar camponeses e camponesas a criarem hortas medicinais em seus espaços individuais e coletivos.

Por conta da pandemia, esse ano as oficinas não aconteceram, mas Chocolate ressalta que a multiplicação do conhecimento se deu de outra forma, “trabalhamos mais com consultas para desenvolvimento de fórmulas, como por exemplo, as práticas do uso do própolis e da tintura de alho, que são as mais indicadas para doenças bacterianas e síndromes respiratórias”.

As três experiências de saúde popular, além de compartilharem conhecimentos sobre fitoterápicos, homeopáticos, bioenergia, agroecologia, alimentação saudável e conhecimento popular, comungam de um mesmo cerne que está na visão de mundo, que entende a relação mútua entre ser humano e natureza, e que fundamenta o projeto de sociedade popular da classe trabalhadora campesina.

DOAÇÕES

No Paraná foram distribuídos 2 mil preparados de mel com açafrão junto a Ação Marmitas da Terra, que leva comida saudável às pessoas em situação de vulnerabilidade social, famílias e trabalhadores nas praças do Centro de Curitiba e comunidades carentes das regiões metropolitanas.

O composto de mel e açafrão foi produzido no Assentamento Contestado, pelo Setor de Saúde do Paraná, como ação de prevenção ao novo coronavírus que visa aumentar a imunidade dessas pessoas em situação vulnerável na cidade. Segundo dona Maria, o mel e o açafrão são antibióticos e os dois são alimentos, “é fácil, não é caro e é bom pra imunidade e aí fizemos o composto e juntamos esses dois antibióticos”.

Composto foi doado nas ações de solidariedade do MST. Foto: Wellington Lenon

Na região de Santa Catarina, Irma conta que além do preparado homeopático que está sendo manipulado e distribuído nos assentamentos e acampamentos do estado de Santa Catarina, o Setor de Saúde da região também explora outras possibilidades, “trabalhamos muito com a tintura do alho, própolis, gengibre, açafrão, no sentido de todo mundo estar se ajudando para aumentar a imunidade. Cada região descobrindo formas e plantas, fitoterápicos e homeopáticos que pudessem ajudar”.

No Rio Grande do Sul, Chocolate ressaltou que a forma de atuação que encontraram para trabalhar durante a pandemia foi ajudar na identificação de diagnósticos, distribuição e venda solidária de ervas medicinais para chás. “Estamos sempre disponíveis para quem vem nos buscar”.

FORMAÇÃO DE SAÚDE POPULAR NO MOVIMENTO

O Setor de Saúde do Movimento também trabalha oferecendo cursos de formação no campo e nas cidades como incentivo para que a comunidade crie espaços comuns com horta nos Centros Comunitários, mas também que lutem pelos direitos à saúde pública de qualidade, “onde tem UBS [Unidade Básica de Saúde do SUS] vamos usar a UBS, vamos fazer uma briga interna com o prefeito, igual fizemos aqui na Lapa, pra ter ao menos uma sala de terapias naturais no postinho. A salinha de bioenergia, da auriculoterapia, das massagens, do reiki, do benzimento, vamos fazendo também o resgate das benzedeiras. É sempre um incentivo que se trabalha nos acampamentos e assentamentos, tem muito, mas precisa fazer muito mais”, defende.

Agora em setembro no Paraná, a Escola Latinoamericana de Agroecologia (ELAA) iniciou uma horta agroecológica que está sendo trabalhada por voluntários da Ação Marmitas da Terra e no dia 26 deste mês também se inicia o curso de Agente de Saúde Comunitário que terá sua primeira turma na Associação Vila das Torres, bairro periférico de Curitiba.

*Editado por Gustavo Marinho