A pandemia da fome aumenta no Brasil sem auxílio para a Agricultura Familiar
Por Lays Furtado/MST
Da Página do MST
Após pressão dos movimentos de pequenas/os agricultoras/es, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), reafirmou compromisso com as comunidades do campo pela derrubada dos vetos do Governo Federal aos subsídios emergenciais para a Agricultura Familiar durante a pandemia. Os movimentos pedem que sejam restituídas as medidas consideradas essenciais para o socorro ao setor em pacote de medidas emergenciais durante a pandemia, que foram vetadas durante a sanção presidencial da Lei Assis Carvalho (Lei 14.048/20).
O acordo foi firmado em audiência com dirigentes da Confederação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar do Brasil (Contraf-Brasil), onde Alcolumbre confirmou que o tema deve voltar a ser debatido no Congresso Nacional nesta quarta-feira (14).
Enquanto isso, as/os representantes da classe de trabalhadoras/es rurais alertam que, sem auxílio à agricultura familiar, o ressoar das panelas vazias aumentarão atingindo a quem produz e a quem consome. Essas/es pequenas/os produtoras/es estimam que com os impactos e agravamentos das crises, após a pandemia em conjunto a ausência de subsídios, as populações do campo perderam mais de 50% de sua renda.
“Em breve vai faltar ainda mais alimentos na mesa do povo”, declara Marcos Rochinski, coordenador da Contraf, durante o encontro em que representantes das/os trabalhadoras/es do rurais entregaram um documento construído e assinado em conjunto por 50 organizações e movimentos sociais do campo, das águas e das florestas para apreciação das autoridades. Na ocasião, foi expressa a relação dos impactos referentes ao novo coronavírus no setor, além de deter sobre a importância econômica e da soberania alimentar construída pela classe, que vem sofrendo com a desestruturação das políticas públicas pelo governo.
“O presidente Jair Bolsonaro, quando enviou ao Congresso o Decreto que criava o Auxílio Emergencial, excluiu os agricultores e as agricultoras familiares de acessar esse recurso emergencial para o enfrentamento da Covid-19”, aponta Alexandre Pires, coordenador geral do Centro Sabiá e representante da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA).
Ainda em agosto, o projeto de Lei Assis Carvalho já havia sido aprovado às pressas no Senado, dado a necessidade urgente demandada por trabalhadoras/es rurais, bem como pela urgência em garantir a produção de alimentos desde o início da quarentena.
“O PL 735, que depois foi denominado como Lei Assis Carvalho, trazia no seu bojo essencialmente aporte de recursos por parte do Governo Federal para a pequena agricultura em forma de um auxílio emergencial em meio à pandemia, para aqueles e aquelas agricultoras/es familiares que não tiveram acesso ao auxílio emergencial do governo federal”, explica Débora Nunes, pequena agricultora e dirigente nacional do MST.
Porém, após encaminhamento para sanção presidencial, 14 dos 17 artigos da PL 735/20 que deu origem à Lei Assis Carvalho foram vetadas pelo governo federal ao que incluía uma série de medidas de amparo, como a concessão de auxílio emergencial. Débora Nunes fala sobre os principais subsídios de socorro financeiro vetados para a agricultura familiar:
“Posso dizer que as duas principais medidas da proposta de Lei seria o auxílio emergencial no valor de 3 mil reais, sendo em cinco parcelas de R$600. E também o fomento, justamente para poder estimular e fortalecer a inclusão produtiva no meio rural através do valor de um fomento R$2500 por unidade familiar. E caso, a unidade familiar fosse comandada por mulher a parcela seria de 3 mil reais.”
O projeto de Lei vetado também trata de prorrogação de dívidas e da criação de linha de crédito específicas de subsídios. O que beneficiaria as/os agricultoras/es e empreendedoras/es familiares, pescadoras/es, extrativistas, silvicultoras/es e aquicultoras/es que tiveram sua produção de alimentos afetada durante a pandemia.
A resposta do Governo atribuída ao veto do auxílio para a Agricultura Familiar diz respeito há restrições orçamentárias para tal feito. Ao tempo em que o mesmo destina bilhões para pagamento de dívidas a fazendeiras/os.
Segundo as premissas legislativas vigentes:
“O veto é a discordância do Presidente da República com determinado projeto de lei aprovado pelas Casas Legislativas do Congresso Nacional (Câmara dos Deputados e Senado Federal). A Constituição determina que ele seja apreciado pelos parlamentares em sessão conjunta, sendo necessária a maioria absoluta dos votos de Deputadas/os e Senadoras/es para sua rejeição. O veto não apreciado, após 30 dias do seu recebimento, é incluído automaticamente na pauta do Congresso Nacional, sobrestando as demais deliberações até que seja ultimada sua votação.”
Ainda quanto a concessão de amparo ao setor, Débora Nunes afirma que a mesma beneficiaria as populações do campo e das cidades.
“Nós não temos dúvida que esses recursos seriam revertidos no estímulo no fortalecimento e na ampliação da diversidade da produção, no fortalecimento da agroecologia. Garantindo melhores condições para quem está no campo e para os camponeses e pequenos agricultores poderem ampliar diversificar e fortalecer sua produção. Mas ela teria um retorno essencialmente importante para o conjunto da sociedade, porque nós hoje percebemos que quem abastece feiras nos municípios, quem efetivamente produz alimento para chegar à mesa do trabalhador são as/os pequenas/os, somos nós assentadas/os da Reforma Agrária, são as/os pequenas/os agricultoras/es. Enfim o povo brasileiro de forma geral seria beneficiado.”
Vírus: safra recorde e soberania alimentar zero
Em discurso na ONU (Organização das Nações Unidas), o atual presidente Jair Bolsonaro se gaba pelo Brasil produzir alimentos para 1 bilhão de pessoas no mundo. Porém não cita que a fome se alastra pelo país, gerando insegurança alimentar para 84,9 milhões de brasileiras/os (IBGE), com base em estudos entre 2017-2018.
Enquanto a safra agrícola bate recorde de produção prevendo 247 milhões de toneladas em 2020, estudos apontam que a prevalência de segurança alimentar atingiu seu patamar mais baixo (63,3%) desde que começou a ser analisada em 2004 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Com a pandemia, os indicativos à nível global são ainda piores. A OXFAM estima que até o final do ano morrerrão mais pessoas no mundo devido à fome do que por conta do contágio ao Covid-19, somando uma média de 12 mil mortes por dia.
Considerando isso, não podemos esquecer que em todo o mundo a agricultura familiar produz 70% dos alimentos consumidos pela população, como aponta a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Dessa forma, o debate da alimentação e sua produção deve ser encarado de modo relacionado para uma análise conjuntural.
Para além das estatísticas em escala mundial, é importante destacar o papel fundamental que as/os pequenas/os produtoras/es têm na cadeia de segurança alimentar nacional. Tanto satisfazendo suas próprias necessidades, enquanto famílias produtoras, quanto em relação a porcentagem de alimentos produzidos por elas e que vão pra mesa do povo brasileiro do campo à cidade.
Segundo o caderno de Agricultura Familiar do Censo Agropecuário 2006, pequenas/os agricultoras/es correspondem por 87% da produção de mandioca, 70% do feijão, 46% do milho, 38% do café e arroz e 21% do trigo. Também advém das pequenas propriedades da agricultura familiar, 67% da produção do leite de cabra, 58% do leite de vaca, 59% do rebanho suíno e 50% do plantel de aves.
Brasil volta ao Mapa da Fome
Em 2014, o Brasil havia saído do Mapa da Fome, divulgado em informe da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação, a FAO. Segundo o documento, o número de brasileiras/os subalimentadas/os caiu 82% entre 2002 e 2013. O relatório aponta que o país investiu cerca de 35 bilhões de reais no combate à fome e atribui o sucesso aos Programas Fome Zero e Bolsa Família, que reduziram a fome e a extrema pobreza no Brasil.
Outro fator imprescindível para a construção da segurança alimentar foram os programas e as políticas públicas para a agricultura familiar, para garantir tanto a subsistência das famílias produtoras, quanto para suprir as necessidades das famílias na cidade, alimentando economias locais.
Entre tais medidas, em 2003 tivemos a implementação do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), cujo objetivo é promover o acesso à alimentação e incentivar a agricultura familiar. Operado em conjunto a Conab nos municípios e estados a partir dos desdobramento do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), criado em 2009.
Em contraste aos anos em que tivemos avanços no combate à fome. Nos últimos anos, podemos observar a pressão nacional de uma política ruralista que vem extinguindo medidas consideradas um avanço.
É o caso da extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), do Plano Safra específico para a Agricultura Familiar. Assim como ocorreu com o projeto Terra Sol, de fomento à agroindustrialização, ele privilegiava investimentos para mostrar a viabilidade comercial da reforma agrária. Entre outros diversos programas voltados para assentadas/os, quilombolas e comunidades extrativistas e de agricultores familiares.
Aumento dos preços e a falta de subsídios
Com o agravante da pandemia, e a falta de incentivos para pequenas/os agricultoras/es a produção de alimentos que vai pra mesa do povo brasileiro encontra-se afetada em todo o país. Ao tempo em que os preços dos alimentos da cesta básica aumentam de forma exorbitante.
Infelizmente, até o momento nem o aumento dos preços de itens básicos da cesta básica, nem o apelo das/os trabalhadoras/es rurais têm mobilizado o governo para atender a demanda urgente de uma política pela soberania alimentar para o Brasil, que inclua a solução de fortalecer a agricultura familiar. Porém, o mantenimento da elevação dos preços de alimentos prioritários devem gerar impopularidade ao governo e acabar deixando-o sem saída em incluir o setor em medidas emergências de fomento para conter os desdobramentos da crise.
Por essas e outras no cenário atual, não será por “patriotismo” por parte de comerciantes – como pediu em discurso o atual presidente – que os preço dos produtos se ajustarão ao bolso da classe trabalhadora. Quem tem determinado o preço dos alimentos tem sido as flutuações do mercado financeiro, considerando sua oferta e demanda, entre outros fatores apontados por economistas sobre a elevação de preços de itens alimentícios básicos que fazem parte da dieta do povo brasileiro.
Com tudo, o mantenimento da elevação dos preços desses alimentos prioritários devem gerar impopularidade ao governo, o que o fez realizar pedidos de maior patriotismo entre comerciantes que abastecem o mercado de alimentos para que não continuassem com a subida de preços regulado pela demanda do mercado de exportação das commodities.
O caso do arroz
Um dos sintomas dessa crise alimentar tem preocupado a população de consumidoras/es. E tem se mostrado principalmente embutido no preço do arroz, que ficou 20% mais caro desde o início do ano, o feijão mulatinho que subiu 32,6%, assim como da abobrinha 46,8%, e da cebola 50,4%.
Se em alguns casos o aumento do preço de alimentos está relacionado com menor proporção de safra, por outra parte, o aumento está relacionado com a concentração desses produtos ligados ao setor de companhias privadas de alimentos, que retêm grande parte dos estoques para obter o controle dos preços de compra e venda.
A situação é ainda mais grave após a medida tomada no final de 2019, com o fechamento de 27 dos 92 armazéns da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) de alimentos. Com a simples alegação de que a medida fazia parte de uma política de reestruturação do setor, o governo seguiu sem estabelecer nenhum debate sobre políticas públicas voltadas ao setor.
O aumento do valor do arroz, por exemplo, está relacionado diretamente com a retenção de 1/3 de seu estoque nacional nas mãos do setor privado, que dita os preços desse alimento consideração os valores de commodities do mercado financeiro. Por isso, nem mesmo a redução de impostos sobre a importação do produto, tomada o mês de setembro pelo governo, poderá trazer mudanças significativas sobre a subida de valores do produto, avaliam especialistas do Instituto de Pesquisa de Economia Aplicada (IPEA), que especulam o comportamento do mercado de alimentos.
Para tal diagnóstico, os dados consideraram relevantes a desvalorização do real como moeda internacional, estagnação da proporção e diversidade produtiva das safras, e sua consequente falta de estoques de produtos, entre outros fatores socioeconômicos agravantes da constante falta de alimentos e seus acessos.
Quando o governo não institui uma política e gestão de alimentos que garanta seu abastecimento, ele perde o controle sobre as flutuações que emplacam o valor desse itens no mercado. E poucos meses depois, agravado em circunstâncias pandêmicas, a crise do acesso à alimentação e aumento da fome constrange frente aos discursos de uma potência agrícola, anunciada com entusiasmo pelo atual governo e seus ministérios, sabendo que 4 em cada 10 brasileiras/os vivem em domicílio vulnerabilizados por algum nível de insegurança alimentar no que se refere a escassez do direito à alimentação plena (IBGE).
“Então lamentavelmente a gente percebe com isso que o governo brasileiro, o governo Bolsonaro, ele é um governo que não tem um projeto nem tem interesse de apoiar a agricultura familiar e camponesa. Ele é um governo que está deliberadamente construindo as condições para a extinção e o massacre da população camponesa dos agricultores e agricultoras familiares da luta em defesa da reforma agrária. Ele se coloca contra aqueles e aquelas que mantêm as condições de preservação das nossas fontes hídricas, da nossa biodiversidade, dos nossos solos, das nossas florestas”, repudia Alexandre Pires.
As/os mais pobres pagam a conta da crise
Apesar de todo mundo ter que pagar à mais com a subida do preço dos alimentos, o valor da cesta básica e seus impactos variam de acordo com a classe econômica de cada lar. O aumento dos preços desses itens implicam no aumento à restrição aos mesmos, onde as/os mais pobres sofrem mais o peso dessa subida.
Segundo o IBGE (2017-2018), em mais da metade dos lares que apresentam insegurança alimentar moram crianças menores de 5 anos. A vulnerabilidade também é maior em famílias chefiadas por mulheres e pardas/os. As regiões Nordeste e Norte aparecem como as mais prejudicadas com relação à insegurança alimentar. Menos da metade dos domicílios do Norte (43,0%) e Nordeste (49,7%) tinham acesso pleno e regular aos alimentos. Além disso, dos 3,1 milhões de domicílios com insegurança alimentar grave no Brasil, 1,3 milhão estão no Nordeste.
Os dados também consideram que a fome atinge mais o campo, 44% das famílias rurais sofrem com insegurança alimentar. Nessas localidades, a insegurança alimentar grave foi de 7,1%, enquanto os percentuais acima observados na área urbana corresponde a 4,1%.
Com tudo, a não concessão de auxílio para pequenas/os agricultoras/es, e a redução do auxílio emergencial em 50% do valor de R$600 impactam diretamente sobre a segurança alimentar da população mais pobre.
Pelo menos 53% de beneficiárias/os usam o auxílio para comprar alimentos e 44% possuem essa como única fonte de renda. No Nordeste 65% utilizam o recurso para compra de alimentos – divulgou o DataFolha.
Enquanto os alimentos estiverem à mercê de uma política agrária ditada pelo agronegócio que privilegia a exportação e o lucro, sem abranger uma política de gestão pela tomada de medidas que garantam a soberania alimentar nacional e apoio a agricultura familiar; estaremos expostas/os a um mercado onde o alimento não é nada menos que um produto.
*Editado por Fernanda Alcântara