Combate à violência contra as mulheres: uma luta de todas e todos
Por Jamile Araújo
Da Página do MST
De acordo com levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), houve aumento nos números relacionados à violência doméstica no Brasil durante a pandemia do novo coronavírus no Brasil. O estudo do fórum apontou que houve aumento de 22% dos casos de feminicídio em 12 estados; além do crescimento das chamadas para o disk denúncia para os casos de violência doméstica.
A nota técnica foi publicada no fim de maio, e traz, entre os dados, que ao mesmo tempo que houve aumento das chamadas para a polícia militar no 190, houve uma maior dificuldade em denunciar as violências nas delegacias a partir da redução dos registros presenciais.
No mês de julho, foi sancionada a Lei 14.022/20, de autoria da deputada Maria do Rosário (PT-RS), apoiada pela bancada feminina no Congresso, que contou com coautoria de 30 deputadas federais, tendo como objetivo a intensificação do combate à violência doméstica durante a pandemia.
A lei indica medidas de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra as mulheres, crianças, adolescentes, pessoas idosas e portadoras de deficiência. Além disso, torna essencial o serviço público de atendimento à violência doméstica, assegurando que o registro da ocorrência de violência doméstica e familiar possa ser feito por telefone, meio eletrônico, e a garantia de atendimento presencial.
Segundo Sintia Gonçalves, do setor de gênero e da Direção Estadual do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST no Ceará, as mulheres do campo são historicamente invisibilizadas e a violência muitas vezes chega a ser naturalizada.
“O patriarcado ainda é enraizado em nosso território e a violência acontece de diversas formas: violência física, psicológica e patrimonial. Isso acaba se naturalizando, por essas companheiras não entenderem que é crime, ou às vezes, por dependerem dos seus parceiros, para o seu sustento e de seus filhos”, pontua.
As mulheres Sem Terra estão construindo a campanha “Mulheres Sem Terra contra os vírus e as violências”, e todo mês, no dia oito, realizam diversas ações como doações de máscaras, plantio de árvores, debates e assembléia das mulheres.
Sintia explica que dentro do programa da Reforma Agrária Popular do MST, existe o debate da importância do combate a todas as formas de violência contra as mulheres e crianças, penalizando o seu praticante. “Nós precisamos construir um mundo sem desigualdade, com respeito e tolerância. Precisamos construir uma nova relação de igualdade, justiça, para o novo homem e nova mulher para nossa sociedade”, afirma a dirigente.
A formação política e campanha permanente “Basta de violência contra as mulheres” são formas pensadas pelo setor de gênero para serem trabalhados nos acampamentos e assentamentos, para combater toda forma de violência no campo com as mulheres Sem Terra. “Essa formação aborda desde os cursos importantes que nós temos, como o Feminismo e Marxismo; a formação com as mulheres do campo em áreas de acampamento e assentamento; mas também que nós possamos fortalecer nos nossos encontros estaduais e assembleia das mulheres o debate da violência”, declara.
Gonçalves ressalta que as formações também trazem o incentivo à denúncia, a importância do apoio entre as mulheres e a participação igualitária nas instâncias de definição políticas. “As mulheres devem estar em todos os espaços, não só estar, mas intervir, propor, construir a luta popular nos assentamentos e acampamentos”, assegura.
Barreiras enfrentadas pelas mulheres para denunciar a violência doméstica
São inúmeras as barreiras enfrentadas pelas mulheres para efetivar as denúncias. O racismo e o machismo institucionais, o baixo orçamento para o efetivo acolhimento e combate a violência, estruturas para o acolhimento das mulheres vítimas, naturalização da violência, dependência financeira dos parceiros, entre outros.
Para a advogada e militante da Consulta Popular em Pernambuco, Clarissa Nunes, “uma outra dificuldade também é a própria sociedade, porque existe uma concepção de que a mulher precisa ficar com agressor porque isso é como se fosse um defeito. Mas existem outros pontos em que esse agressor seria um bom marido, um homem romântico, um bom pai. A mulher acaba internalizando essa perspectiva e ficando nessas relações muito por medo de sair delas, por entender o amor como uma perspectiva de amor romântico, essa agressão como uma forma de virilidade do homem”, pontua.
Segundo Clarissa, isso faz parte de uma lógica patriarcal heteronormativa, que reforça uma masculinidade violenta, que não vê a mulher como sujeita de igualdade, e sim submissa ao homem. Uma masculinidade acaba sendo projetada tanto para as mulheres que são vítimas de violência, quanto para a sociedade e também para os homens.
A advogada acredita que a pandemia escancarou e reforçou as diversas violências sofridas pelas mulheres. “Principalmente porque muitas vezes as violências acabavam sendo denunciadas quando as mulheres conseguiam sair de casa ou então porque os familiares viam as mulheres com hematomas, então isso acabava fazendo com que as mulheres saíssem da situação de silêncio e denunciarem a violência.”
E complementa. “Mas não é só isso, existe também o fato de que estar dentro de casa com seu marido em isolamento social aumenta o controle em relação a vida dessa mulher, então há a violência que não é física, a violência psicológica e financeira no sentido de controlar o que essa mulher gasta, o que essa mulher tá assistindo, quais os perfis que essa mulher tá vendo no Instagram”.
Outros fatores para esse aumento são elevação do desemprego, crescimento do alcoolismo, perdas de direitos sociais e trabalhistas. “Essa ausência de ações por parte do Estado, no sentido de garantir emprego, de garantir uma perspectiva de futuro para essas famílias, fez com que muitos homens aumentassem a quantidade de álcool ingerido e isso também faz com que a violência contra a mulher aumente, porque a bebida é um fator importante e deve ser considerado quando a gente conversa sobre a violência doméstica”, reitera.
Lei Maria da Penha, Delegacias Especiais de Atendimento às Mulheres e medidas protetivas
“Legalmente falando da efetividade da aplicação da Lei Maria da Penha e também das Delegacias Especiais de Atendimento às Mulheres (DEAM), se dá muito nesse atendimento primeiro, em relação às medidas protetivas, por exemplo, para tentar impedir que essas violências continuem. Em muitos casos se tem sucesso, tanto que as mulheres conseguem ter acesso a esse instrumento, conseguem ter acesso uma delegacia e profissionais que têm uma perspectiva de cuidado e acolhimento”.
Clarissa chama atenção para o fato de que o racismo institucional impede muitas vezes que os profissionais da delegacia consigam ter uma uma visão humana, de acolhimento e de cuidado com as mulheres negras e periféricas. Muitas vezes essa mulher não é vista como sujeito, como uma pessoa direitos, e a polícia acaba afastando a forma de proteção dessas mulheres.
“No entanto, a delegacia especializada tem um preparo maior em relação a esse tipo de acolhimento, só que nem sempre fica nos bairros periféricos. São delegacias que ficam mais no centro da cidade, o que impede um pouco o acesso das mulheres periféricas, que em sua maioria são mulheres negras, a essas delegacias especializadas”, argumenta.
Por vezes, as mulheres em situação de violência precisam lidar também com a demora do Judiciário para efetivar medidas protetivas. Mas de acordo com a advogada pernambucana, houve “alterações legais que são consideradas importantes, como por exemplo o fato de que hoje em dia, se um homem desobedecer alguma medida protetiva que foi determinada, ele sofre um outro tipo de pena, outro tipo de crime, que é o crime de desobediência de medida protetiva”.
E esse crime tem a pena de até dois anos de prisão. “Embora a gente saiba que sistema penitenciário não corrige e nem educa ninguém, nessas situações, que a gente tá no momento de vida ou morte dessa mulher vítima de violência doméstica, esse tipo de penalidade faz o homem temer, em alguma medida, quebrar essa medida protetiva e ser preso”, alega.
A partir de estudos em vários países, entende-se que o endurecimento penal e penalização não modifica a realidade de violência que a sociedade vive, o que modifica é reeducação, o acolhimento, a existência das medidas protetivas, por exemplo, que não necessariamente chega a ser um processo criminal, pois é possível ter a medida protetiva e não denunciar, fazer a queixa crime contra o agressor.
“Então as medidas administrativas acabam surtindo mais efeito do que prender alguém numa penitenciária, e também do que fazer com que esse homem tenha um antecedente criminal acabe não conseguindo emprego, embora a gente entenda também que em algumas situações a prisão desse homem é uma forma de garantir que a mulher consiga viver, porque existem casos de violências que chegam ao feminicídio, que é um índice muito alto aqui no Brasil. Então muitas vezes a prisão acaba sendo a única medida que a gente tem para tentar salvar a vida dessa mulher”.
Clarissa afirma ainda que é preciso ir na raiz do problema e realizar modificações estruturais no sistema. “Se a gente se entender de onde vem essa violência doméstica, chegamos à lógica de hierarquização da perspectiva de que o homem é um sujeito superior à mulher, como foi criada a nossa estrutura de poder. Isso vem desde a política até certas profissões que são tomadas hegemonicamente por homens, além da diferença salarial diferença na própria divisão sexual do trabalho, que faz com que a mulher tenha obstáculos em sua vida profissional que o homem não tem”.
Ela defende que a forma que temos de acabar com esta desigualdade é garantir “uma educação libertadora para as pessoas, uma educação que mostre que homens e mulheres são sujeitos de direitos iguais, dentro das escolas isso é fundamental, estudando a constituição, entendendo o que são direitos, entendendo porque existe a violência doméstica”, complementa.
Para o combate a violência contra as mulheres, “é necessário existir políticas públicas também como cotas, garantias de igualdade em espaços de poder para essas mulheres; e também que a sociedade civil organizada debata sobre o tema, entenda o tema também como algo que não é superficial ao capitalismo, mas na verdade como algo que é necessário para que o capitalismo se sustente, e por isso tem que ser visto como inimigo de todos. Tem que existir uma unidade da luta, essa não é uma luta só das mulheres, é uma luta de todos e de todas”, conclui Clarissa.
*Editado por Fernanda Alcântara