Argélia, 01 de novembro de 1954
Por Marcelo Buzetto
Da Página do MST
Na madrugada do dia 01 de novembro de 1954 a Frente de Libertação Nacional (FLN) dava início a uma poderosa ofensiva contra as tropas colonialistas francesas na Argélia. A Argélia é um país do Norte da África, que faz fronteira com Líbia, Tunísia, Marrocos, República Árabe Saharauí Democrática (RASD – Saara Ocidental), Níger, Mali e Mauritânia, além de estar próxima da Espanha e França, separada pelo Mar Mediterrâneo. A França iniciou a colonização do país em 1830.
Após a Segunda Guerra Mundial cresceu, no mundo, o apoio às lutas de libertação nacional na África e na Ásia. Foi um período efetivamente revolucionário da história, que teve início em 1917, com a Revolução Russa e a criação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), mas se consolida com a derrota do nazi-fascismo e as mobilizações anticolonialistas/anti-imperialistas dos anos 40 aos anos 70. Entre 1917 e 1987 vivemos um período de intensas e múltiplas revoluções populares, anti-imperialistas e anticapitalistas.
É nesse contexto de expansão dos movimentos de libertação nacional que tem início a Guerra Popular Revolucionária pela independência da Argélia. A França, supostamente o país da “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”, praticava contra o povo argelino as piores torturas e violações de direitos humanos. A opressão colonial francesa na Argélia não se distinguia em nada dos métodos utilizados pelos nazistas durante a ocupação do país durante a Segunda Guerra Mundial. Como denunciou Karl Marx em 1848, “a burguesia substituiu as palavras de ordem liberdade, igualdade e fraternidade por artilharia, infantaria, cavalaria”.
Entre 1947 e 1954 crescem as manifestações anticolonialistas na Argélia, que são duramente reprimidas pela polícia e forças armadas. Cresce o número de presos políticos, de torturados, desaparecidos políticos, assassinados. Em 1952, um movimento cívico-militar toma o poder no Egito, e tem início a “Revolução Árabe”, liderada pelo Coronel Gamal Abdel Nasser, que faz parte do governo provisório do Movimento dos Oficiais Livres, e depois funda o partido União Socialista Árabe (USA).
A “Revolução Árabe”
Nasser vai desenvolver um novo modelo econômico, buscando industrializar o país, fazer uma reforma agrária e garantir alguma justiça social aliada à defesa intransigente da soberania nacional. Também vai buscar encontrar as mediações necessárias para o desenvolvimento de um projeto nacional e regional de caráter anti-imperialista, e incorporando ideias, tradições e uma cultura muito influenciada pelo islamismo, a religião predominante no Egito, no Mundo Árabe e no Oriente Médio.
Diante da proposta de Nasser de unir os povos árabes para derrotar o imperialismo e seus aliados regionais, como o Estado de Israel, vários grupos nacionalistas e revolucionários argelinos decidem aproveitar o momento e se unir numa ação conjunta e coordenada, com operações simultâneas, contra quartéis e outros alvos do colonialismo francês na Argélia, ofensiva que começou em 01 de novembro de 1954, e foi terminar com a independência dessa nação árabe, em julho de 1962.
A Revolução Argelina é, também, produto do nacionalismo árabe em expansão durante o governo de Nasser, no Egito, entre 1952 e 1970. Nasser dedicou especial atenção à Argélia e à causa palestina, e quando a Frente de Libertação Nacional (FLN) decide que o único caminho para enfrentar o colonialismo é a luta armada e a mobilização popular o presidente egípcio vai prontamente defender o direito dos povos de se rebelarem contra a dominação estrangeira.
Parte da liderança da FLN, a vanguarda da revolução argelina, vai se organizar a partir do Cairo (Egito), de Rabat (Marrocos) e de Túnis (Tunísia). Marrocos e Tunísia, por outros caminhos, chegaram à independência em 1956, o que fortaleceu no povo argelino o desejo de ter o controle do seu próprio destino. A Argélia sob o domínio colonial francês era um país marcado pelo preconceito, pela discriminação e pelo racismo estrutural, presente nas ações da esmagadora maioria ou quase totalidade das autoridades governamentais e dos cidadãos franceses. Não havia liberdade de expressão ou opinião, não havia liberdade de imprensa ou de organização de sindicatos e partidos que fossem anticolonialistas.
Os argelinos sofriam até críticas de liberais, de membros do Partido Socialista Francês (PSF) e do Partido Comunista Francês (PCF), cujas direções eram contrárias à independência da colônia, sugerindo que seria importante manter a Argélia próxima à França. Dirigentes desses partidos chegaram a reclamar do “recurso ao terrorismo e à luta armada”, usada pela FLN. Membros da FLN logo lembraram do uso das armas pela Resistência Francesa diante da ocupação de sua pátria pelos nazistas. Na França, Jean Paul Sartre, filósofo existencialista e marxista, criticava tais posições e divulgava a luta do povo argelino nas páginas da revista Tempos Modernos.
O povo em armas
A FLN tornou-se, de fato, o povo em armas. Criou o braço armado da organização política: o Exército de Libertação Nacional (ELN). Nove combatentes formaram a primeira direção político-militar da FLN: Ahmed Bem Bella, Ait Ahmed, Mohamed Kidder, Mustafa Bem Boulaid, Murad Didouche, Larbi Bem M’Hidi, Mohamed Boudiaf, Rabah Bitat e Belkacem Krim. Em 1954 o ELN contava com 500 combatentes, mas em 1962 já eram mais de 100 mil. A FLN buscou também fundir princípios, valores e ideias do nacionalismo árabe, do islamismo e do marxismo, especialmente as teses comunistas sobre o papel dos movimentos antiimperialistas, por isso estudavam as obras de Lenin e Mao Tsé Tung.
Algumas das principais lições que podem explicar a vitória da FLN são:
1. Construíram uma organização política de vanguarda com profundos vínculos com as massas populares;
2. Construíram um verdadeiro exército popular, a partir da incorporação de proletários, semi-proletários e, principalmente, de camponeses;
3. Construíram uma organização com vínculos fortes com os povos vizinhos e suas lutas por justiça e soberania nacional, particularmente o povo árabe;
4. Nunca fizeram concessões ao inimigo, nem traíram suas convicções e princípios, tornando-se, para além de uma força política e militar, uma força moral e cultural entre as massas populares, que confiavam plenamente na FLN;
5. Construíram uma rede internacional de solidariedade à Revolução Argelina, fato também decisivo para o reconhecimento da legitimidade dessa luta.
A FLN recebeu a solidariedade da China Popular, da URSS e países do Bloco Socialista, de Cuba, do Egito e do Movimento dos Países Não-Alinhados, criado na Conferência de Bandung, na Indonésia, um encontro de chefes de Estado que contou com dois representantes da FLN como observadores. Esses países levaram para o interior da Organização das Nações Unidas (ONU) a questão argelina. No interior da França surgem personalidades e grupos que vão às ruas exigir a independência das colônias francesas e denunciar as torturas praticas contra os povos coloniais.
Franz Fanon, psiquiatra negro de Martinica, vai empolgar os revolucionários africanos, asiáticos e latino-americanos terceiro-mundistas com seu livro “Os Condenados da Terra”, onde justifica a violência do colonizado contra a violência do colonizador, demonstrando que “a descolonização é um processo violento”, único caminho para uma efetiva libertação nacional e para a “restituição da nação ao povo”. O prefácio, de Jean Paul Sartre, acirra a contradição entre os membros da esquerda francesa que, ainda em 1961, qualificavam a FLN de “terroristas”. Nessa Guerra Popular de Libertação Nacional contra o colonialismo morreram entre 400 mil e 1 milhão de argelinos, cerca de 28.500 mil soldados franceses e aproximadamente 3 mil cidadãos franceses na Argélia.
Nessa bela história de resistência anti-imperialista se destacaram muitas mulheres, que foram a base de apoio e sustentação do movimento de libertação nacional, e muitas se tornaram lideranças e guerrilheiras conhecidas pelas massas populares. Zohra Drif Bitat, Djamila Bouhired e Hassiba Bem Bouali são mulheres que marcaram a história da Revolução Argelina. Se juntam à FLN e realizam operações contra militares franceses e apoiadores do colonialismo. Djamila foi presa e torturada, condenada à morte pela guilhotina. Sensibilizado com sua história, o advogado francês Jacques Vergés assume sua defesa.
Independência e reformas
Após a vitória da Revolução Argelina, Ahmed Ben Bella é eleito, em 1963, o primeiro governante pós-independência. Estimula nacionalizações de empresas estrangeiras e de terras, dá início a uma reforma agrária e várias políticas sociais progressistas. Fortalece a solidariedade com os povos em luta, oferecendo um contingente de voluntários para lutar em Angola e cedendo o território argelino para treinar revolucionários do Congresso Nacional Africano (CNA), que combatiam o regime racista do Apartheid, na África do Sul.
Em 1965 surge a primeira grande cisão na FLN e um golpe de Estado, liderado pelo Coronel Houari Boumédiène, que retira Ben Bella do governo. O líder revolucionário será preso de 1965 a 1980. Quando fica livre, vai para um exílio de dez anos. Uma triste história, não a única, de uma revolução popular sequestrada por uma cúpula militar-burocrática que, aos poucos, foi interrompendo a continuidade do processo e se afastando ainda mais de qualquer perspectiva de transição para o socialismo.
Ben Bella retorna ao país em 1990, e reúne vários grupos dentro e fora da FLN, num país bem diferente daquele de 1965. Desde 1984, por exemplo, com a instituição do “Código Familiar”, as mulheres vão perder muitos direitos conquistados e setores conservadores, influenciados por uma equivocada interpretação das leis islâmicas, vão proibir o estabelecimento da igualdade entre homens e mulheres. Mesmo com a intensa luta interna na FLN, a Argélia continuou sendo uma nação solidária às lutas anti-imperialistas na África, Ásia e América Latina, recebendo, inclusive, muitos brasileiros perseguidos pela ditadura militar-empresarial (1964-1985), entre eles o ex-governador de Pernambuco, Miguel Arraes, que viveu 14 anos de exílio nessa nação árabe. Em 1976 a Argélia se declara um “Estado Socialista”.
Nas eleições presidenciais de 1991, a FLN forma uma coalizão com 6 partidos, mas mesmo assim será derrotada, período de ascensão do nacionalismo islâmico na região. O partido vencedor é a Frente Islâmica de Salvação (FIS). A FIS foi criada em 1989, venceu as eleições municipais em 1990, elegeu a maioria do parlamento nas eleições gerais em 1991, mas foi impedida de formar um governo devido a um golpe de Estado.
Explode assim uma guerra civil, que dura de 1992 até 1999. Com o Acordo de Paz e a “reconciliação nacional”, novos partidos surgem, e outros conquistam sua legalização. Entre 1991 e 1997 a FLN perde bastante de seu prestígio e apoio entre as massas populares, cresce o desemprego e o subemprego e uma política neoliberal vai aprofundar a desigualdade social no país.
A FLN ressurge como uma força política-eleitoral em 1999, com a eleição do antigo Ministro das Relações Exteriores de Ben Bella e de Boumédiene, Abdelaziz Bouteflika. Em meio a protestos, renuncia em 2019, durante seu quarto mandato. Nesses últimos vinte anos o governo de coalizão liderado pela FLN viveu muitas contradições, reprimiu manifestações populares, prendeu lideranças importantes da oposição de esquerda, como a deputada e liderança do Partido dos Trabalhadores (PT) Louisa Hanoune, e aplicou uma política neoliberal. Ela foi a primeira mulher a se candidatar à presidência da República, em 2004. Uma campanha internacional de solidariedade e pela sua libertação foi organizada pelo Acordo Internacional dos Trabalhadores e Povos.
Nesse 01 de novembro lembramos dessa data heroica, comemorada por todos os povos que lutaram e que lutam contra o imperialismo. A Revolução Argelina, e sua principal organização política de vanguarda, a FLN, construíram uma belíssima história de resistência, contra um dos mais poderosos exércitos do mundo. Provaram que é possível derrotar o imperialismo, mesmo em condições muito difíceis. A Argélia derrotou, o Irã, o Líbano e a Síria também. O caminho da libertação nacional exige paciência e persistência, mas a vitória é certa, uma questão de organização e de tempo. Viva a Revolução Argelina!
*Marcelo Buzetto é professor universitário, Mestre e Doutor em Ciências Sociais PUC SP, com Pós-Doutorado em Ciências Sociais UNESP Marília. É membro da Direção Estadual MST SP, pelo Coletivo de Relações Internacionais.
**Editado por Fernanda Alcântara