Na pandemia, Região sudeste avança na educação popular em saúde

Em meio ao desmonte da saúde e crise sanitária, MST reforça compromisso com formação de Agentes Populares de Saúde e parceria com a Escola Latino-americana de Medicina, na Venezuela

MST, Via Campesina Brasil e delegações da Palestina, Haiti e Zâmbia integram a terceira turma da ELAM, na Venezuela. (Foto: Arquivo Pessoal/Maria Eduarda)

Por Clívia Mesquita e Julia Gimenez
Da Redação MST Sudeste

Enquanto as últimas notícias indicam que o governo Bolsonaro quer avançar no plano montado pelo Ministro da Economia, Paulo Guedes que, em tempos de grave crise sanitária, tem a desfaçatez de aprofundar o desmonte do Sistema Único de Saúde (SUS), o MST avança na formação de médicos e Agentes Populares de Saúde para atuar no país.

Nos últimos 20 anos, o MST tem formado mais de cem médicos e médicas na Escola Latino-americana de Medicina (ELAM) de Cuba e na Venezuela. Além disso, o Setor de Saúde do Movimento se consolida na produção de fitoterápicos, terapias alternativas e, em meio a pandemia, investe esforços na educação popular em saúde formando agentes que atuam na prevenção ao coronavírus nas suas próprias comunidades.  

Segundo Ludmila Bandeira, da Coordenação Nacional do Setor de Saúde, ainda que alguns dados mostrem que vem caindo o número de contágios e mortes por COVID-19, o MST mantém a orientação do isolamento social preventivo, encarado pelo Movimento como “quarentena produtiva”. 

Além das ações de solidariedade e entrega de alimentos saudáveis às comunidades mais vulneráveis, foram desenvolvidas algumas experiências de doação de homeopáticos e ervas secas para chás, buscando contribuir na melhoria de imunidade das pessoas. Junto a isso, foram criadas diversas turmas de Agentes Populares de Saúde que contribuem na prevenção ao vírus nos próprios territórios de atuação. Já são mais de 30 turmas concluídas ou em andamento em todo o país, a partir do diálogo com outros movimentos sociais, universidades e as comunidades.  

Povo cuidando do povo

Inspirado na iniciativa que começou em Pernambuco, o curso de Agentes Populares de Saúde é uma estratégia de enfrentamento à pandemia, criada pela Campanha Periferia Viva e visa complementar o trabalho realizado pelos Agentes Comunitários de Saúde do SUS. Em diversos bairros, ocupações urbanas e assentamentos, voluntários e voluntárias estão construindo uma rede de solidariedade e organização popular que dissemina informação sobre o vírus, além de oficinas de autocuidado.

Inspirado em iniciativa que começou em Pernambuco, os Agentes Populares de Saúde são voluntários das próprias comunidades que atuam no enfrentamento da pandemia.
(Foto: Mãos Solidárias)

“O SUS tem um papel fundamental na pandemia. Mas na visão ultraliberal do atual governo isso não é considerado. A gente espera que os Agentes Populares de Saúde também sejam agentes de defesa do SUS e da saúde pública. É uma iniciativa popular porque origem nas políticas públicas e no engajamento das comunidades na promoção da saúde”, explica David Zamory, da Coordenação da Campanha Periferia Viva em São Paulo.

A primeira experiência de Agentes Populares de Saúde na região Sudeste foi realizada na capital paulista. Entre maio e junho deste ano, o curso formou quinze pessoas de uma ocupação na Zona Norte onde moram 300 famílias imigrantes, e não houve circulação do vírus no local. A formação foi realizada por militantes e profissionais de saúde da Rede de Médicas e Médicos Populares. 

Outra turma atendeu dois bairros da Zona Sul de SP, locais onde a Campanha já fazia Marmitas Solidárias, doações de cestas básicas, máscaras, álcool em gel e livros. A formação de 19 Agentes Populares de Saúde aconteceu na Escola Nacional Paulo Freire em agosto. Para David, os agente atuam não só na prevenção da saúde, mas também integram “iniciativas de solidariedade, acesso à direitos e políticas públicas nos territórios.”

Já no interior de SP, a proposta dos Agentes Populares de Saúde está em processo de mobilização de uma turma para atuar nos Assentamentos, visitar as famílias, verificar as condições de saúde e higiene, além de fornecer álcool em gel e máscaras. A expectativa é que os agentes se incorporem ao Setor de Saúde do MST, no sentido da auto-organização nas próprias comunidades em relação à promoção da saúde.

Formação e atuação

O curso de Agentes Populares de Saúde é composto por módulos por uma metodologia teórica e prática, que abordam desde a higienização correta do ambiente e das mãos com oficinas até como cuidar da comunidade e estratégias de mobilização e solidariedade. Uma turma piloto de 15 educandos está em processo de formação na comunidade do Cerro Corá, na Zona Sul do Rio de Janeiro. 

As etapas ocorrem presencialmente aos domingos, respeitando todos os cuidados em relação ao coronavírus. Durante uma etapa do curso, os participantes circulam pela região identificados com colete, em que procuram reproduzir os aprendizados das oficinas e oferecer orientações sobre o que é o vírus, como é a transmissão, sinais e sintomas. No Rio, a segunda turma de Agentes Populares de Saúde será realizada em Manguinhos, na Zona Norte.

Para a estudante Letícia Gonçalves, de 20 anos, o curso é uma oportunidade de repassar o conhecimento adiante para outras famílias. “Conhecemos a realidade das famílias. Como é o acesso a água, alimentos. Procuramos saber sobre os cuidados contra os vírus, se usam máscara, respeitam o distanciamento social, utilizam algum serviço de saúde, e também quem faz parte do grupo de risco”, relata a jovem que se graduou na área da saúde do Assentamento Pratinha no município de São Mateus, no Espírito Santo.

No Espírito Santo, quatro turmas de Agentes Populares de Saúde estão em formação no campo, na cidade e comunidades quilombolas capixabas. (Foto: Arquivo Pessoal)

“Muitas pessoas se sentiram acolhidas por nós educandos, que passamos informações sobre como lidar com o vírus”, completa Letícia. Estão em andamento quatro turmas no estado do Espírito Santos, com previsão de conclusão até o final deste mês de novembro, envolvendo cerca de 80 pessoas, entre voluntários e voluntárias de comunidades do campo, quilombolas ou da cidade. No estado, a articulação dos Agentes Populares de Saúde teve início a partir da necessidade de construir ações de formação e atuação em saúde. 

Segundo Mercedes Zuliani, do Setor de Saúde do MST no Espírito Santo, a experiência integra diversas dimensões da luta. 

“O objetivo também é de organização comunitária e política, compreendendo nosso lado da história. Estamos passando por instâncias na Universidade para que seja reconhecido como projeto de extensão. Nossa perspectiva é continuar o processo educativo nesse momento de pandemia, mas também no contexto de diversas crises do capitalismo que tem piorado muito as condições de vida e trabalho.”

Internacionalismo

Além da formação de Agentes Populares de Saúde, há duas décadas o MST assumiu o compromisso de formar médicos e médicas populares. Primeiro na ELAM em Cuba, e depois na Venezuela, o processo contínuo de formação já rendeu mais de cem médicos com atuação no Brasil, sobretudo na atenção básica.

Segundo Ednaldo Correia, dirigente nacional do Setor de Saúde do MST, a formação na ELAM tem a ver com o projeto político-pedagógico da escola e dos princípios revolucionários. “Formar médicos de ciência e consciência, como dizia Fidel Castro”. Atualmente há duas turmas em andamento na ELAM Venezuela. 

“Desde criança participo do MST, e eu sempre falava para minha mãe que ia fazer medicina em Cuba”, diz Maria Eduarda de Souza Ramos, de 19 anos, hoje estudante do primeiro ano de medicina na ELAM. 

Duda, como é carinhosamente apelidada, mora com a família no Assentamento Zumbi dos Palmares na Regional de Iaras, estado de São Paulo. Ela e outros 57 companheiros e companheiras do MST, da Via Campesina Brasil e de delegações da Palestina, Haiti e Zâmbia fazem parte da terceira turma de medicina na escola, situada em Caracas.

“É um processo muito rico. Desde a preparação na Escola Nacional Florestan Fernandes, participamos de espaços de formação sobre os cuidados com outras pessoas e com nós mesmo. Precisamos superar o preconceito que a gente sofre, mesmo na saúde. As nossas bases estão muito longe das cidades e muitas vezes não temos a assistência à saúde que deveríamos ter. Então, se não se tem saúde, como se vai pra luta?”, comentou Maria Eduarda. 

“Para nós, estudamos da MIC [Medicina Integral Comunitária], o ponto primordial é a prevenção e atenção dentro das comunidades, dialogar com os pacientes, a partir do eixo indivíduo-comunidade”, completa.

Histórico

Criada em 2007 pelo então presidente venezuelano Hugo Chávez, a ELAM é coordenada por um corpo de docente venezuelanos e cubanos e busca formar médicos de diversos países, com carência nessa área. 

Após um processo de nivelação de conteúdo, os e as estudantes têm a carga de disciplinas teóricas e, de forma paralela, começam a atuar nos Centros de Diagnósticos Integrais (CDIs), o equivalente às Unidades de Pronto Atendimento (UPA) no Brasil, onde entram em contato com as comunidades a partir dos princípios da prevenção e atenção. 

“A metodologia sofreu algumas mudanças por conta da pandemia, o que mais me chama a atenção nesse processo é a atuação dos médicos que trabalham com a gente, que nos dão aula, e que estão conosco nos CIDs. Alguns deles não são professores, mas estão dispostos a ensinar e compartir com a gente”, relatou Duda.

*Editado por Solange Engelmann