“Negar o acesso à terra é negar o direito de existência dos povos”
Ludmilla Balduino
Da Página do MST
Ouça a entrevista:
Depois de notificar o Estado brasileiro no último dia 30 de novembro, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH/OEA) realizará uma audiência com o MST nesta quarta (9), às 11h, para discutir a paralisação da reforma agrária no Brasil.
O tema principal da audiência será a violação de direitos promovida pelo governo Bolsonaro nestes dois anos contra o MST. Serão mencionados os casos recentes – e violentos – de despejos no acampamento Quilombo Campo Grande, em Minas Gerais, e no assentamento Jaci Rocha, na Bahia.
O MST conversou com Diego Vedovatto, advogado do Coletivo de Direitos Humanos do Movimento. Diego falou sobre a projeção internacional que esses casos de extrema violência ganharam, e sobre como os desdobramentos da audiência poderão impactar na garantia dos direitos humanos por parte das instituições públicas brasileiras.
Confira a entrevista:
MST — Qual será a principal denúncia apresentada na audiência com a OEA?
Diego Vedovatto — Será apresentado um conjunto de denúncias. Especialmente a realização de despejos em período de pandemia, como foram os casos que ocorreram no Quilombo Campo Grande, em Minas Gerais, e no assentamento Jaci Rocha, na Bahia, onde houve o envio de tropas da força nacional para uma área da reforma agrária.
Além disso, [vamos denunciar] a paralisação da reforma agrária de um modo geral no governo Bolsonaro: a falta de garantia ao acesso à terra para mais de 80 mil famílias acampadas e também o autoritarismo do governo Bolsonaro, que ao invés de dialogar com movimentos sociais, organizações políticas, sindicais, sobre os problemas do Brasil, tem tentado criminalizar os movimentos que justamente realizam as denúncias das violações.
— Haverá alguma requisição, um pedido de encaminhamento à OEA? Se sim, qual?
Sim. Além de apresentar denúncias e questões jurídicas atinentes aos pedidos, serão formulados quatro pedidos à Comissão. O primeiro, para que a OEA recomende expressamente ao Brasil o fim dos despejos e a adoção aos protocolos internacionais em relação à saúde. O segundo, que recomende expressamente ao estado brasileiro a adoção de medidas efetivas para garantir o acesso à terra, ao trabalho, à moradia, e portanto, à vida digna, de todos os camponeses do Brasil. O terceiro pedido é para que se realize uma missão específica da Comissão Interamericana de Direitos Humanos no Brasil, para verificação in loco das violações sofridas. E o quarto pedido, para que a Comissão de Direitos Humanos esteja atenta, abra investigações, promova relatórios sobre as violações de direitos humanos causadas pela mineração, e sobretudo, pelo uso abusivo de agrotóxicos no Brasil.
— O que pode acontecer se o terceiro pedido for atendido e venha uma missão especial da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA para verificar as violações de direitos no Brasil?
Em 2018 a CIDH realizou uma visita em missão ao Brasil. Os comissionados visitaram diversos estados e recomendaram a adoção de um conjunto de políticas pelo estado brasileiro. A nossa expectativa com uma eventual e oportuna vinda dos comissionados para verificação das condições de vida nos assentamentos, nos acampamentos, nas comunidades quilombolas e indígenas, além de dar evidência internacional a essas comunidades e à causa agrária e ambiental aqui no Brasil, permitirá que a gente avance perante as cortes internacionais na construção e formulação de protocolos que vinculem o estado brasileiro a proteger o direito dessas populações. Acho que se isso acontecer, vai ser algo bastante importante para o nosso país.
— Que violações de direitos humanos acontecem quando a Reforma Agrária é paralisada pelo governo?
Quando a reforma agrária é paralisada, a primeira consequência é o aumento dos conflitos agrários, dos conflitos rurais. Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), em 2019, houveram, pelo menos, 1833 conflitos no campo, o que representa o índice mais alto dos últimos cinco anos. O número de pessoas envolvidas nos conflitos aumentou 23% em relação a 2018, tendo alcançado 144.742 famílias. Foram constatadas 1254 ocorrências, 12% a mais que em 2018. Em 2020, esses números seguem aumentando. Há um conjunto de pessoas que foram assassinadas, que foram ameaçadas de morte, além de toda a violação no que diz respeito ao acesso à moradia, ao trabalho, à saúde, as condições de vida digna. Os conflitos se agravaram rapidamente nesses últimos meses aqui no Brasil.
— E qual o agravante dessas violações nesse contexto de pandemia em que vivemos?
No contexto de pandemia, todas essas violações são radicalmente potencializadas. As pessoas que vivem em assentamentos e acampamentos rurais já vivem num certo contexto de vulnerabilidade social. Perder as suas casas, perder os seus lares, perder o seu trabalho, num contexto de pandemia, sem haver qualquer tipo de plano de reassentamento, de realocação, é extremamente grave. Sem falar, inclusive, na exposição dos agentes estatais, de policiais militares, de oficiais de justiça, que são mobilizados para cumprir essas ordens. Ao invés do governo federal adotar medidas para proteger essas pessoas em condição de vulnerabilidade, a expulsão das famílias no contexto agrava a saúde, a integridade física e psicológica dessas famílias, sem falar obviamente no aspecto econômico. Num contexto de grave crise econômica, são pessoas que estão sendo expulsas dos seus trabalhos. A reforma agrária poderia servir para aumentar o número de empregos e a produção de alimentos no Brasil, mas o governo Bolsonaro insiste numa postura negacionista. Ou seja, de negar aos trabalhadores os seus direitos.
— A audiência vai contar com nomes de peso na defesa dos direitos humanos no Brasil e no mundo. Qual é o impacto da presença dessas pessoas na audiência do MST com a OEA?
A presença dessas pessoas demonstra sobretudo a grande solidariedade que o MST recebe das diversas organizações e personalidades que atuam na defesa dos direitos humanos. Não é apenas o MST que está reivindicando, denunciando, violações de direitos humanos no mundo rural brasileiro. Mas um conjunto de organizações e autoridades com expertise e reconhecimento nacional e internacional, que estão atentos às essas violações e seguem junto com o Movimento na luta para que essas violações acabem.
— Como as notificações da CIDH ao estado brasileiro podem contribuir para que o estado pare de violar os direitos dos trabalhadores do MST e cumpra o seu dever de fazer a reforma agrária? Qual a visibilidade do MST perante esse fato?
A admissibilidade desse pedido de audiência é um reconhecimento da legitimidade no Movimento Sem Terra e da causa da reforma agrária pela OEA e pelas cortes internacionais. A gente entende que o simples fato de acontecer a audiência gera uma espécie de constrangimento em nível internacional ao governo brasileiro, e aumenta com isso a visibilidade e a pressão internacional para que as autoridades públicas brasileiras – não apenas o governo federal, mas também o poder judiciário, o congresso nacional, os governadores, os prefeitos -, adotem medidas para que essas violações cessem.
— Durante a ação violenta da Polícia Militar (PM) a mando de Romeu Zema, a Escola Popular Eduardo Galeano, no acampamento Quilombo Campo Grande, foi demolida. Qual o significado simbólico dessa ação da PM?
Essa ação gravíssima que ocorreu em agosto aqui no Brasil, que foi o despejo de 14 famílias, e a destruição de uma escola no assentamento, representa a postura e uma espécie de compromisso do estado brasileiro na defesa de interesses particulares dos ruralistas que pretendem a expulsão dos Sem Terra naquela região. Sequer os direitos das crianças, jovens e adultos, que eram alfabetizados naquela escola, foram respeitados. Fica evidente, no nosso entendimento, que ao invés de buscar uma solução pacífica, proteger o interesse das crianças, dos idosos, naquele local, de resguardar o acesso à educação, o governo de Minas Gerais preferiu expulsar as famílias e destruir essa escola que era tão importante para aquela comunidade.
— Durante a ação de despejo no Quilombo Campo Grande, como as famílias reagiram à violência dos policiais?
As famílias exerceram um legítimo direito de resistência pacífica. Foram mais de 50 horas de tentativa de negociação, de denúncias na imprensa nacional e internacional, na tentativa de interromper a agressividade que o governo de Minas Gerais estava promovendo naquele local. [As famílias] receberam uma enorme solidariedade, tanto em nível nacional como em nível internacional. A gente viu diversos artistas, personalidades, intelectuais, se manifestando em favor das famílias, o que revela também que tinham razão. Como sempre nos ensinou o profeta Dom Tomás Balduino, bispo tão importante na luta pelos direitos humanos aqui no Brasil, “direitos humanos não é algo que se pede de joelhos, as pessoas têm o direito de exigir de pé o respeito aos seus direitos.”
— Você pode listar os tipos de violência e violações de direitos humanos que o MST vem sofrendo desde a sua criação?
O acesso à terra é uma condição indispensável, primeira, para a vida dos camponeses. Negar o acesso à terra é negar moradia, trabalho, saúde, educação. Eu diria que é negar o direito de existência desses povos, dessas comunidades rurais. Sejam elas sem terras, quilombolas, indígenas, ribeirinhos, e assim por diante. A luta pela reforma agrária, e não apenas a do MST, desde sempre sofreu uma enorme tentativa de criminalização por parte dos ruralistas. Da escravidão até os dias de hoje, o método e os argumentos são os mesmos. Mas a resistência, a força, a luta dos movimentos, revelam a atualidade e a importância da reforma agrária especialmente no Brasil, que é uma sociedade tão desigual, que possui uma das maiores concentrações fundiárias do mundo. A luta revela que a reforma agrária é o legítimo e necessário instrumento de promoção da justiça e da paz no campo, tão sonhada e tão desejada por todos nós.
*Editado por Wesley Lima