Brigada Nise da Silveira e a experiência do Sim, eu posso em Alagoas
Por Jamile Araújo
Da Página do MST
Uma das experiências de alfabetização através do método cubano “Sim, eu posso” na região Nordeste, realizada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), foi no estado de Alagoas. Com uma população estimada em 3.351.543 pessoas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2020, a taxa de analfabetismo no estado em 2019 era de 17,1% para pessoas com 15 anos ou mais, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Anual – 2º trimestre de 2019.
A educação de jovens e adultos (EJA) é um desafio para o MST desde os primeiros acampamentos e assentamentos. Marcela Nunes, do Setor de Educação do MST Alagoas, conta que foi identificada a necessidade de contribuir para que os companheiros que tiveram este direito negado pudessem estudar. “Desde então, desenvolvemos diversas experiências no campo da EJA e, em especial, na alfabetização. As primeiras experiências especificamente com o ‘Sim, eu posso’ em Alagoas aconteceram entre 2008 e 2010, com a vinda das brigadas de assessores cubanos, que tinham como missão acompanhar a implementação do método em cerca de 13 estados”.
A educadora explica que no estado de Alagoas foram realizadas turmas na maior parte das regiões nos assentamentos e acampamentos. “Nos últimos anos, contribuímos de forma solidária através da utilização do método cubano para alfabetizar também brasileiros e brasileiras que não fazem parte dos nossos acampamentos e assentamentos, com a experiência de brigadas de alfabetizadores e coordenadores/as que se deslocam de seus estados para o local da ação”, relata.
Marcela diz que a inspiração para a formação da brigada de alfabetização no estado veio com o aprendizado das ações realizadas no Ceará e no Maranhão. “Foi justamente essa experiência acumulada ao longo da última década no trabalho com a EJA e com o ‘Sim, eu Posso’ que nos motivou à convocação da Brigada de Alfabetização em Alagoas, para a qual foi realizada uma convocação especial à juventude a se somar a essa grandiosa tarefa”.
“A Brigada Nacional de Alfabetização em Alagoas em 2017 foi uma ação conduzida pelo MST, que diante da inoperância do Estado, tomou a decisão política de constituir uma ação composta pelos educadores e educadoras que vieram de diferentes estados e regiões do Brasil, com a tarefa de, inseridos numa comunidade, seja do campo ou da cidade, alfabetizar um grupo de jovens e adultos. Para isso, moraram e conviveram durante o período de três meses, vivenciando o dia a dia das comunidades, num processo de formação pessoal e com a missão da alfabetização”, conta a Sem Terra.
Brigada de Alfabetização Nise da Silveira
Segundo Marcela, a Brigada de Alfabetização Nise da Silveira foi composta por jovens brigadistas educadores e educadoras dos estados de Alagoas, Bahia, Ceará, Distrito Federal, Paraná, Pernambuco, Rio Grande do Sul e São Paulo. O perfil dos brigadistas era de jovens: dos 57 educadores, 42 tinham entre 15 e 29 anos.
“Significa que a nossa juventude atendeu ao chamado e se dispôs a participar da missão, essa característica da brigada nos convocou a trabalhar também de acordo com as necessidades da juventude, bem como potencializar a criação e as diferentes linguagens que a juventude domina.
O pertencimento à organização construído através da história de cada um trouxe elementos que caracterizaram a brigada também. Dentre os educadores, 18 foram para o assentamento ou acampamento quando tinham menos de doze anos, ou seja, muitos cresceram no assentamento ou eram bem pequenos quando foram para lá, filhos e filhas de famílias assentadas/acampadas”, pontua.
Onde a campanha atuou
A Brigada Nise da Silveira atuou em três municípios do alto sertão alagoano: Delmiro Gouveia, com uma população analfabeta de 8.232 pessoas, o equivalente a taxa de 29,2% do município; Piranhas, com uma população de 4.289 pessoas, taxa de 37%, e Olho d’água do Casado, com 1.732 pessoas, o que equivale a 42,7% da população. Juntando os três municípios são em torno de 14 mil pessoas, sendo uma em cada três pessoas em situação de analfabetismo nesse território.
Essa experiência de alfabetização contou com 57 turmas, distribuídas nos três municípios, em áreas de assentamentos e acampamentos (28), povoados da zona rural (8) e em bairros urbanos periféricos (21), totalizando 36 turmas na zona rural e 21 na zona urbana. E foram mais de 250 pessoas alfabetizadas.
A região do Sertão é singular também para o MST no estado. “É nessa região que aconteceram as primeiras ocupações do MST em Alagoas em 1987, na Fazenda Lameirão e na Fazenda Peba, no município de Delmiro Gouveia, culminando, posteriormente, em diversos processos de luta e consolidação de assentamentos na região. Atualmente, nos três municípios, são dezenas de assentamentos e acampamentos que compõem as Brigadas José Elenilson e Brigada Patativa do Assaré. E, mais recentemente, há a conquista da Agroindústria para o beneficiamento e processamento do caju, cultura típica da região, assim como outras frutíferas”, argumenta Marcela.
A experiência enquanto educador
Cadu Souza, militante do MST na Bahia, foi um dos jovens que atenderam ao chamado para contribuir com a Brigada Nise da Silveira. Ele conta que as primeiras semanas foram de formação para compreender o método, para entender o território e para consolidar a brigada que ficou conhecida como Brigada de Alfabetização Nise da Silveira.
“Para a gente foi muito importante ter a Nise da Silveira como a nossa referência da brigada, porque ela sempre trabalhou com essa questão da arte e da cultura como um processo transformador. Eu sentia muito toda a companheirada com esse entendimento da arte e da cultura também, como uma forma de organização, e isso relacionado com a mística nos fortaleceu para enfrentar os conflitos ali do sertão de Alagoas. Esses territórios são dominados pelas oligarquias dali da região, são territórios que têm um processo de pobreza muito forte”, apresenta.
O educador diz que ficou responsável com outros companheiros da brigada para atuar na periferia de Delmiro Gouveia. “A gente foi para um bairro de periferia e de ocupação que se chamava Bairro das Casinhas, ali essa ocupação já existia há mais de três ou quatro anos e tinha uma escola. A primeira coisa que a gente fez foi fazer o trabalho de base. Na primeira semana, batendo de casa em casa. Eram mais de 120 famílias que moravam nesse bairro e a gente batia de casa em casa para poder convidar. Primeiro a gente estava fazendo um levantamento se haviam pessoas alfabetizadas, e tinham pessoas que não sabiam ler e escrever e que tinham vontade de aprender. E aí a gente fazia o convite”, completa.
Cadu conta que foi chocante ver principalmente mulheres que não sabiam ler e escrever e que eram proibidas pelos maridos. “Elas sofriam esse processo de não ter conseguido estudar no período da infância e juventude, e mesmo casadas elas também não podiam estudar, não tinham estudo como algo que fosse determinante”.
“Eu lembro de passar em casa onde a gente perguntava: ‘aqui quem não sabe ler escrever?’, e era só a mulher que levantava a mão, os filhos sabiam escrever, o marido sabia ler e escrever. E a mulher não sabia. A gente perguntava: ‘você quer aprender?’, ela falava: ‘eu quero’. E aí o marido já fazia algo para proibir”.
Foram três turmas de alfabetização no bairro das Casinhas, com três educadores para atuar nesse bairro e turmas de até 15 pessoas, entre homens e mulheres, de idades variadas. “Tinha jovens de seus 25 anos a idosos de seus 60 e poucos anos, e até mais de 60 anos. Era uma diversidade de pessoas e o que unia essas pessoas era essa vontade de descobrir as palavras e aprender a ler e escrever. Poder assinar o próprio nome, poder tirar um RG onde ele assinasse seu próprio nome”, descreve Cadu.
Nos três meses do processo de alfabetização do “Sim, eu posso”, os educadores utilizavam a televisão como um suporte para as vídeo aulas. Cadu menciona que no primeiro momento durante a aula era um acolhimento, liam um poema. Depois assistiam à vídeo aula de até 20 minutos, e em seguida fazer as intervenções, atividades e formas para que os educandos e as educandas pudessem compreender o conteúdo das aulas.
Entre as dificuldades, o Sem Terra diz que muitas pessoas tinham problemas nas vistas. “Eu lembro da gente comprar lupa para duas das alunas que estavam com a gente, das educandas que estavam na minha turma. Sentávamos em círculo, mas colocando essas pessoas mais próximas da lousa para poder conseguir enxergar. E mesmo assim tinham dificuldade para ler a cartilha. A gente fez uma vaquinha e compramos duas lupas, isso foi uma mudança. Eram estratégias que a gente ia usando para poder facilitar”, expõe.
Construção de hortas na escola como contrapartida
Além das aulas de alfabetização, a experiência no bairro das Casinhas contou com trabalhos com a comunidade. “Nessa escola que a gente ficou, fizemos um trabalho de construção de uma horta coletiva junto com os alunos. As aulas eram a noite, não tinha aula nesse período, então a diretora disponibilizou a escola para que a gente pudesse fazer as aulas. Em contrapartida, durante o dia, a gente fazia atividades com os alunos para a construção de uma horta na escola. Construímos três leiras de hortas de mais de três metros para poder plantar alface, tomate e outros legumes e verduras para que eles pudessem consumir na escola. Isso foi muito legal. A gente fez um processo de entender o espaço, pensar essa horta, pensar a construção, o terreno e pensar esse solo. E ali no sertão de Alagoas era muito quente. Então pensar na questão da própria água, quais seriam as melhores frutas, legumes ou verduras para poder plantar. Foi muito legal essa interação”.
Balanço
Marcela fala que a brigada teve o objetivo de denunciar a situação educacional e enfrentar o desafio de alfabetizar os jovens e adultos, e, além de se configurar como uma grande escola de projeção de militantes, é também uma ação de agitação e propaganda fazendo o chamamento do conjunto da sociedade à necessidade de superar e desnaturalizar essa realidade de exclusão.
“Para nós, foi também uma das ações para homenagear o legado do Educador Paulo Freire, que lutou para alfabetizar o povo trabalhador. Também queremos homenagear os 50 anos da ausência presente de Che Guevara. E, para nós, a Campanha de Alfabetização se propõe a ser uma ação revolucionária de solidariedade e confronto ao analfabetismo, por um Brasil e uma Alagoas sem analfabetos”.
De acordo com a Sem Terra, foi uma ação de denúncia, de luta e de exercício da solidariedade, ao mesmo tempo em que significou um grande aprendizado para educandos e educandas, mas também um profundo aprendizado aos educadores e educadoras que vieram de outros estados.
“A marca da Brigada foi a formação e a disposição da Juventude Sem Terra em se desafiar a sair de sua zona de conforto, em contribuir nas comunidades e territórios muitas vezes bastante longínquos de suas residências, conviver coletivamente e incidir na história de tantos outros sujeitos”, conclui.
O MST percebeu que os sujeitos da EJA não se restringe àqueles que na visão clássica de que o analfabeto é uma pessoa idosa que se encontra apenas na zona rural, são estes também, mas os educandos também eram jovens e estavam nas periferias das cidades. O movimento foi surpreendido pelo desejo e pela vontade que estes sujeitos têm de estudar e de seguir estudando.
“Poder escrever sua história e poder ler as histórias de outras pessoas”
Cadu acredita ainda que a experiência foi bem marcante, pois os brigadistas estavam com seus sonhos e vontade de transformar a realidade das comunidades em que trabalhavam, com alegria e beleza, contribuindo com o pouco que sabiam e aprendendo com os educandos.
Ele cita que no momento final da formação, cada educando escreve uma carta para alguém. “Isso foi bem marcante também porque muitas pessoas queriam escrever cartas para os filhos e filhas que moravam em outra cidade, em outro lugar e que não tinham acesso”, reitera.
“Fico lembrando e fico até emocionado, porque foi muito forte. Primeiro vivenciar uma experiência no sertão de Alagoas, que é uma outra realidade. E segundo que poder contribuir com a classe trabalhadora, e poder estar ali junto com aquele povo e com eles fazer com que eles pudessem escrever e contar a sua própria história. É isso que a gente sempre fala, que a eles que foram negado esse acesso à escrita, esse acesso à leitura. A nossa ideia era poder romper com isso e fazer com que essas pessoas, que não tiveram esse acesso, que naquele momento eles pudessem contar com as palavras da sua própria história e poder escrever também essa história, poder ler as histórias de outras pessoas”, finaliza.
*Editado por Fernanda Alcântara