A corrida global por terra é o meio para a superação da crise do capital
Por Claudinei dos Santos*
Nos últimos anos e em especial após o colapso financeiro que chegou ao seu ápice com a crise econômica de 2008, a corrida global por terra tomou novas dimensões no cenário internacional. A crise de 2008 demonstrou que o mundo tinha uma economia dos trilhões, mas que esta não tinha o chamado lastro. Ou seja, não tinha base na produção real, sendo esta pautada na especulação e no rentismo, cujos impactos sobre os mercados financeiros levaram o capital transnacional a enxergar a necessidade de diversificar seu portfólio de investimentos visando ativos fisicamente lastreados – e, portanto, de menor risco relativo no tempo. Neste sentido, encontraram na agricultura e nos bens da natureza o lugar perfeito para tal realização. Estima-se que, entre 2006 e 2011, foi adquirido ao redor do mundo, mais de 200 milhões de hectares de terra, com predominância na África, Ásia e América Latina (SASSEN, 2016), o que justifica o fenômeno que se convencionou a chamar de corrida global por terra, ou land grabbing = apropriação de terras. No Brasil só em 2010, foram adquiridos, cerca de 4.349.074 milhões de hectares, equivalentes a 0,79% das terras cultivadas, território do tamanho da Dinamarca (WILKINSON, REYDON e DI SABBATO, 2012). E para o capital avançar neste processo, é preciso se adequar as legislações nacionais conforme a sua demanda. É dentro deste contexto que se encontra o PL 2963 aprovado no Senado no último dia 15 de dezembro.
A Lei 5. 709 de 1971 que regulamenta e disciplina a compra de terras por estrangeiros, vigente em nosso ordenamento jurídico brasileiro, produzida durante o período da ditadura militar, veio em resposta ao escândalo dos anos 60 que por meio de uma CPI constatou a transferência de forma irregular de 20 milhões de hectares de terras a pessoas físicas e jurídicas estrangeira, compilado no que ficou conhecido como relatório Velloso publicado em 1968. Por tanto, o debate sobre o processo de estrangeirização de terras no Brasil, não é novo, e ao longo do tempo foi sendo tencionado por interesses externos, vindo a demandar intervenções por meio de medidas infraconstitucionais. O primeiro foi o parecer AGU/LA04/94que trouxe como entendimento, que o §1º do art. 1º da Lei nº 5.709/1971 não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988. O referido parecer, entendeu que a Constituição tratou sobre o conceito de empresa brasileira em seu Art. 171, I, entendendo que são empreses brasileiras aquelas constituídas sob leis brasileiras e que tenham sede e administração no país, vindo ser revogado por meio da Emenda Constitucional nº 06/1995, que buscou padronizar o entendimento sobre a constituição de pessoas jurídicas sem distinguir sua origem. O segundo foi o parecer nº GQ-181/1997 que reafirmou o espirito da EC nº 06, destacando que somente em casos específicos e expressos na Constituição, poderia se estabelecer alguma restrição sobre à participação de estrangeiros na compra de terras, como por exemplo a propriedade de empresa jornalística e radiodifusão, na assistência à saúde e ao sistema financeiro. Em 2008 já dentro do conceito de land grabbing, fruto de uma série de audiências públicas, resultou na aprovação do Parecer AGU LA-01/2010, que recolocou o debate da constitucionalidade do o artigo 1º da Lei nº 5.709/71. Em recente trabalho monográfico, SANTOS, (2018) sistematiza que o debate sobre a compra de terras por estrangeiros também gerou disputas no âmbito do Legislativo. Entre os anos de 2007 a 2015, sete Projetos de Lei foram apresentados para discutir a matéria. Seis foram apresentados na Câmara dos Deputados e um no Senado Federal. Cinco tem o objetivo de limitar a compra de terras, e dois tem o objetivo de flexibilizar e até ampliar a quantidade permitida. E foi dentro deste pacote de alterações jurídicas, que se encontra o PL 2963 aprovado no Senado no último dia 15 de dezembro. E quais são as principais proposições? (a) retira as restrições para pessoas jurídicas brasileiras ainda que controladas majoritariamente por capital estrangeiro, resolvendo assim uma das formas de como se vem se burlando a legislação atual, (b) em nome da “segurança jurídica” convalida todas as transações, seja elas de compra ou arrendamento, constituindo o que temos chamado de grilagem institucional; (c) autoriza o executivo a aprovar a compra de áreas maior do que o previsto em lei, estando alinhada ao desenvolvimento do Brasil, constituindo uma anomalia jurídica; (d) visa captar investimentos que tenha como destinação o desenvolvimento do agronegócio, mantendo a agricultura brasileira apenas como produtora de commodities.
É importante destacar ainda, o perfil e a versatilidade dos grupos econômicos que vão diversificando suas aplicações como forma de alcançar as melhores transações e consequentemente um extraordinário lucro. Grosso modo, estes investimentos estão divididos da seguinte forma: (a) joint ventures = empreendimentos conjuntos, formadas por empresas que atuam na comercialização de grãos, fabricação de sementes e insumos químicos; (b) private equity, hedge funds = fundos de patrimônio privado, são formados por fundos soberanos, fundos de pensão, bancos privados que agem com o objetivo de financiar a operacionalização de fazendas; (c) fundos de pensão formados por professores e professoras de universidades, são fundos que visam investimentos em mercados futuros como os fundos, Tiaa-Cref Global Agriculture, New Mexico State Investment Council e o Environment Protection Agency Pension Fund (ambos dos Estados Unidos), AP2 (Suécia), Caisse de Depot et Placement du Quebec, British Columbia Investment Management (Canadá), Cummins UK Pension Plan Trustee (Reino Unido).
Por último, é importante perceber, como que o avanço do capital estrangeiro sobre as terras brasileiras, reverbera em outras três questões: (a) disputa as mesmas terras com a reforma agrária; (c) coloca em risco a soberania alimentar por conta da padronização da produção orientada pela demanda global de commodities; (c) põem em risco a segurança nacional, na medida em que se autoriza que o capital estrangeiro pode comprar até 25% do território de um determinado município, como prevê a Lei 5.709 de 1971, ou comprar de até 100 mil hectares e fazer o arrendamento de mais 100 mil, como prevê o PL 4059 de 2012.
Referências
SANTOS, Claudinei Lucio Soares. O processo de estrangeirização de terras no BRASIL, como forma de reprodução do capital na agricultura: uma análise sobre os aspectos jurídicos e legislativos. 2018. 86 f. (Monografia em Direito) – Universidade Estadual de Feira de Santana – Bahia 2018, p. 74 – 76.
SASSEN, Saskia. Expulsões – Brutalidade e complexidade na economia global. São Paulo: Paz e Terra, 2016.
WILKINSON, John; REYDON, Bastiaan; DI SABBATO, Alberto. Concentration and foreign ownership of land in Brazil in the context of global land grabbing, Canadian Journal of Development Studies / Revue canadienne d’études du développement, 33:4, 417-438, 2012.
*Claudinei dos Santos é militante do MST \ setor de direitos humanos e frente de massas, e Via Campesina de Rondônia.