O Congresso Nacional Africano (CNA): da luta contra o apartheid à implementação do neoliberalismo

Artigo traz reflexão sobre aniversário da CNA e como a luta continua

Por Marcelo Buzetto*
Da Página do MST

Em 08 de janeiro de 1912 foi criado o Congresso Nacional Africano (CNA), uma organização que se tornaria muito conhecida pelas lutas por justiça, democracia, contra o imperialismo e contra o racismo na África do Sul. O CNA surge como um movimento social e político popular, democrático e de massas, que ganha imensa projeção na luta de classes em todo o continente africano.

Na sua fundação chamava-se Congresso Nacional dos Nativos Sul-Africanos. Sua mobilização era, especificamente, a defesa da população nativa contra as leis injustas e racistas dos colonizadores. Em 1923 muda o nome para CNA, incorporando vários sindicatos e, também, tendo a adesão do Partido Comunista Sul-Africano (SACP), que havia sido criado em 1921. Essa aliança entre sindicatos, partido comunista e movimento social contribuiu para que o CNA se transformasse num partido político com um programa de transformações econômicas, políticas, sociais e culturais, que representasse a ampla maioria da população do país, com destaque para a classe trabalhadora e para as etnias nativas, e juntando-se às lutas por libertação nacional e por socialismo em todo o continente africano. O CNA tornou-se um símbolo internacional da luta contra o racismo e contra o capitalismo, especialmente entre as décadas de 60 e 80 do século XX.

A África do Sul, seja pela sua localização geográfica, seja pelos seus recursos naturais, sempre teve um papel estratégico para os interesses do imperialismo europeu-ocidental e estadunidense. O colonialismo europeu se expandiu no início do século XIX. Com a descoberta de ouro e diamante ampliou-se a disputa por esse território, que sempre foi habitado por uma população de maioria nativa, de diferentes etnias e povos originários, que viviam ali desde a origem da humanidade, desenvolvendo um modo de vida que entrava, constantemente, em conflito direto com os valores, ideias e princípios propagandeados e defendidos pelo desenvolvimento capitalista industrial.

O desenvolvimento capitalista sul-africano fez nascer uma classe operária, majoritariamente negra, e a luta do proletariado contra o capitalismo sempre esteve associada à luta contra o racismo. O proletariado sul-africano se formou como resultado da expansão econômica urbano-industrial-capitalista dos anos 40, 50, 60, e esse processo foi acompanhado de intensas lutas operárias e populares, em plena sintonia com as lutas de libertação nacional e pelo socialismo nos demais países do continente africano.

O racismo sempre esteve presente na formação histórica do que hoje conhecemos como África do Sul e é produto do colonialismo e do capitalismo. Mas a partir de 1948, ele é institucionalizado através da criação de leis de apartheid, que vão impor o segregacionismo e a separação da população por raça, estabelecidas pelo governo federal, que estava sob o comando do Partido Nacional, organização política neofascista. O nacionalismo branco sul-africano se identifica muito com o sionismo, ideologia racista que organizou a colonização da Palestina por imigrantes judeus europeu, tanto que a África do Sul dos tempos do regime do apartheid (1948-1994) foi o principal parceiro econômico do chamado “Estado de Israel”.

O CNA foi profundamente influenciado pelas rebeliões populares e revoluções sociais que ocupavam um crescente espaço na vida política africana nos anos 60 e 70 do século XX. A aliança estratégica entre CNA, PCSA e Congresso dos Sindicatos da África do Sul (COSATU) apoiava o avanço – e recebia apoio – dos processos revolucionários em curso, seja no Egito, na Líbia, na Argélia, na Tanzânia, em Gana, Burkina Faso, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné Bissau, etc. O CNA também enviava delegações aos países socialistas do Leste Europeu, à URSS e à China, aos encontros do Movimento dos Países Não-Alinhados e da Organização da Unidade Africana (OUA), e mantinha esses contatos para denunciar ao mundo as violações de direitos humanos praticadas pelo regime racista do apartheid.

Repressão e Luta Armada

Após o Massacre de Shaperville, em 21 de março de 1960, o CNA vai iniciar a luta armada contra alvos do governo. Neste triste episódio a polícia do apartheid assassinou 69 manifestantes e feriu 186, durante uma marcha popular com 7 mil pessoas, contra a Lei do Passe, que obrigava todo cidadão negro a carregar uma caderneta para que fosse anotada pela autoridade policial de onde vinha e para onde pretendia ir.

Nelson Mandela. Foto: Creative Comons/Wikipedia.

O protesto, organizado pelo Congresso Pan-Africanista (CPA), uma dissidência do CNA sob a liderança de Robert Sobukwea, revelou o grau intenso de violência a que estava submetida a população negra da África do Sul. A partir daí o CNA e o PCSA vão coordenar ações de “violência revolucionária” contra o regime do apartheid. Criam o Umkhonto We Sizwe, que significa, na língua Zulu, Lança da Nação, braço do CNA. Nessa época Nelson Mandela já circulava por países africanos e europeus buscando apoio e recursos para a luta armada e para a guerrilha sul-africana.

Essa primeira fase da luta armada tinha como centro de suas atividades a sabotagem e ataques à instalações industriais e do governo. Cerca de 200 atos foram realizados entre 1961 e 1964. Joe Slovo dizia que nesse momento era necessário a combinação de diferentes formas de luta e de organização, legais, semi-clandestinas e clandestinas, pois

“a luta já não pode centrar-se em apelos aos direitos civis e reformas no âmbito do domínio branco; é uma luta pelo Poder do povo, e nela a agitação de massas e a importância crescente do fator armado caminham lado a lado”

(“África do Sul: um só caminho”, Joe Slovo, Editorial Caminho, p. 124).

No Programa do CNA a luta pela terra e pela reforma agrária

O CNA afirmava que “a terra será repartida pelos que nela trabalham. O povo indígena da África do Sul foi roubado da sua terra depois de centenas de anos de resistência. Hoje toda a terra é controlada e monopolizada pela minoria branca. É frequente ouvir dizer que 87% das terras é propriedade dos brancos (…)” (“Análise da Carta da Liberdade”, Conferência Consultiva CNA, em “A Revolução Africana – Documentos Fundamentais do Congresso Nacional Africano”, Editorial Caminho, p. 31).

Infelizmente os governos do CNA e seus aliados não realizaram nenhuma reforma popular estrutural no campo da agricultura ou da questão agrária. Desde de Nelson Mandela até hoje, não foi feita uma efetiva reforma agrária na África do Sul.

Cerca de 85% das terras estão concentradas nas mãos da minoria branca descendente dos colonizadores europeus. Quando se trata da economia como um todo esse número é de 80%. Ou seja, durante os governos do CNA (1995-2021) houve uma pequena ascensão de uma burguesia negra sul-africana, parte dela formada por membros de uma burocracia que se corrompeu e se associou ao capital privado dominado pela minoria branca. Oliver Tambo, histórico líder do CNA, defendia que “lutamos por uma África do Sul cuja riqueza seja repartida equitativamente pelo seu povo. Lutamos pela abolição de um sistema que, hoje, no nosso país, concentra toda a riqueza nas mãos de alguns (…)” (Oliver Tambo, “Apelo ao mundo: a vitória de nossa causa é certa”, em “A Revolução Africana – Documentos Fundamentais do Congresso Nacional Africano”, Editorial Caminho, p. 108).

Neoliberalismo e novas lutas em defesa da Revolução Sul-Africana

Diante da aplicação de uma política econômica neoliberal e sem realizar reformas populares estruturais, contrariando inclusive o programa do próprio partido, os governos do CNA decepcionaram muitos militantes da esquerda popular e sindical, e novas organizações foram construídas, numa tentativa de resgatar as origens e os princípios daqueles e daquelas que perderam sua liberdade ou sua vida para defender a Revolução Sul-Africana. Entre elas se destacam o Sindicato Nacional dos Metalúrgicos da África do Sul (NUMSA), que sempre lutou contra as privatizações e a política neoliberal dos governos do CNA. NUMSA acabou sendo expulso, em 2014, do Congresso de Sindicatos da África do Sul (COSATU). Com outros sindicatos criam a Federação Sindical Sul-Africana e tem um papel importante na construção do Partido Socialista Revolucionário dos Trabalhadores (SRWP), criado entre 2018 e 2019, organização que participa da Assembleia Mundial dos Povos.

A classe trabalhadora sul-africana continua perseguindo, por diferentes caminhos, o sonho de uma nação justa, com independência nacional, solidariedade aos povos que lutam e tendo como perspectiva o pan-africanismo e o socialismo.

*Marcelo Buzetto – Coletivo de Relações Internacionais do MST/SP

**Editado por Fernanda Alcântara