Como o ataque ao Capitólio impacta a direita, os movimentos populares e o Brasil

Analistas internacionais comentam as consequências da invasão à sede do Congresso dos EUA na última quarta (6)

Construído em 1793, o Capitólio é a sede do Legislativo dos EUA. Imagem: Brendan Smialowski / AFP

Por Daniel Giovanaz
Do Brasil de Fato/São Paulo (SP)

Embora opositores aleguem que o presidente Donald Trump “cruzou o Rubicão” várias vezes, até mesmo antes de ser eleito em 2016, parte da direita estadunidense só o viu cruzar agora, após a invasão ao Capitólio, sede do Congresso dos EUA, na última quarta-feira (6).

“Cruzar o Rubicão” é sinônimo de tomar uma decisão arriscada, sem volta e com graves consequências. A expressão se refere ao momento em que Júlio César cruzou o Rio Rubicão, em 49 a.C., declarando guerra contra Pompeu, que detinha poder sobre Roma. 

A metáfora ajuda a compreender o risco que Trump correu ao estimular seus apoiadores a invadirem o Capitólio na tentativa de impedir a diplomação do presidente eleito Joe Biden. A análise é a de que, após tantas ações polêmicas, Trump finalmente teria chegado a algo inaceitável para a elite política estadunidense.  

“A mesma elite política que perdoa que Trump mantenha crianças imigrantes presas na fronteira, perdoa misoginia e violações de direitos humanos, não vai perdoar o ataque a um dos símbolos mais importantes da democracia burguesa, que é o Capitólio”, resume a ativista e educadora popular Claudia De La Cruz, diretora do The People’s Forum (Fórum do Povo, em português) em Nova Iorque.

Base republicana acredita que houve fraude


Há pelo menos três meses, o atual presidente vem convocando e incitando sua base de apoio a se mobilizar contra uma suposta fraude eleitoral, sem nunca apresentar provas.

Embora não haja indícios de ilegalidades, pesquisas apontam que a maioria das pessoas que se identificam com o Partido Republicano nos EUA acredita nessa tese – difundida por Trump antes mesmo da votação.

Diretor de Política Internacional do Centro de Pesquisas Políticas e Econômicas (CEPR, na sigla em inglês) em Washington, Alex Main chama atenção para o uso massivo de mídias sociais, como Twitter, Facebook e WhastApp.

“Elas não operam baseadas no interesse público, mas na ideia de capturar o máximo possível a atenção dos usuários”, lembra. “Elas geram algoritmos que, em vez de promoverem a diversidade e pluralidade de informações, simplesmente oferecem fontes que confirmam a visão inicial dos usuários sobre cada tema”, completa.

Apoiadores de Donald Trump invadem o Capitólio, em Washington. Imagem: Saul LOEB / AF

Para o pesquisador, o efeito nocivo dessas redes contribuiu não só para a invasão do Capitólio, mas para a eleição de políticos com base na propagação de notícias falsas.

A posse do democrata Joe Biden está prevista para 20 de janeiro, mas as consequências do ataque ao Capitólio, dentro e fora dos EUA, estão apenas começando.

Sem redes sociais 


Na noite da última sexta-feira (8), o Twitter apagou permanentemente o perfil de Donald Trump (@realDonaldTrump). A página tinha quase 89 milhões de seguidores e era o principal meio de comunicação dele com o público. 

A empresa afirmou que a decisão foi tomada “devido ao risco de mais incitação à violência”. Com isso, o presidente dos EUA fica sem poder se comunicar por suas páginas pessoais nas três principais redes sociais, uma vez que os perfis de Trump no Facebook e no Instagram foram bloqueados por tempo indeterminado na última quinta (7).

A Google também baniu o aplicativo Parler, autointitulado mídia social de “liberdade de expressão”. A empresa se manifestou sobre a remoção do aplicativo. O argumento é de que a ferramenta viola as políticas de conteúdo. Segundo a Google, há a ocorrência de “postagens contínuas no aplicativo Parler que buscam incitar a violência contínua nos EUA.”

Impacto na direita


Um dos sinais mais importantes do desgaste de Trump junto ao alto escalão do Partido Republicano é a postura do vice-presidente. Responsável por conduzir a sessão de certificação dos votos no Congresso, ele não cedeu às pressões e confirmou o protocolo de reconhecimento da vitória de Biden horas após os ataques.

“Mike Pence não teve a coragem de fazer o que deveria ser feito”, criticou Trump por meio de suas redes sociais.

Flavio Thales Ribeiro Francisco, professor do Programa de Economia Política Mundial da Universidade Federal do ABC (UFABC), ressalta a “completa desmoralização” de Trump ao insistir na hipótese de fraude.

“Mesmo os republicanos estão discutindo a possibilidade de se evocar a 25ª Emenda, com o argumento de que o presidente não tem mais condições de seguir no cargo e deve ser removido. Trump tem mais duas semanas de governo, e a ideia é que ele poderia fazer mais alguma coisa que comprometa o processo de transferência de poder”, observa.

“Com esse evento, se encerra uma era da política Trump, mas não necessariamente o fenômeno do trumpismo, que é basicamente uma união entre populismo e supremacia branca. Isso não vai se desfazer de uma hora para a outra”, acrescenta o professor.

Nas palavras da ativista Claudia De La Cruz, a invasão à sede do Congresso por grupos extremistas inflamados pelo presidente provocará um isolamento da “pessoa Trump”, mas não de seus valores, práticas e ideologias, que seguem relevantes.

Dilema 


Para Alex Main, a mudança de postura de Mike Pence na quarta foi “absolutamente relevante”, por se tratar de um líder da ala tradicional do partido que vinha demonstrando lealdade a Trump até então.

“Trump é o líder do Partido Republicano, na prática, e continuará sendo após deixar a Casa Branca. Porém, agora já há pessoas do alto escalão da administração Trump debatendo como removê-lo do poder, porque o veem como ameaça”, enfatiza. “Não porque tenham medo que ele esteja essencialmente instigando um golpe, mas porque ele gera instabilidade permanente, o que é ruim para os negócios das corporações que financiam o partido”, analisa.

Oficiais de polícia à frente do Capitólio, em Washington, logo após prédio ser invadido por manifestantes pró-Donald Trump. Imagem: Tasos Katopodis – Getty Images via AFP

A iminente saída de Trump da Casa Branca não resolve, porém, o maior dilema republicano: como lidar com o legado e a base trumpista. Se, de um lado, o discurso do atual presidente mantém as bases do partido mobilizadas, de outro, começa a apresentar resultados desastrosos.

“Certos setores da sociedade – brancos, moradores de áreas rurais, classes médias – foram atraídos pelo discurso de Trump e pela visão supremacista branca que ele propaga, porque se veem ameaçados pelas minorias”, analisa Main, referindo-se a imigrantes latinos e africanos e seus descendentes. “O que é completamente falso, porque os brancos têm melhores condições de vida e controlam a maior parte do capital”, argumenta.

As minorias, no entanto, logo serão a maioria em termos demográficos. E um discurso supremacista branco, nesse “novo país”, deixa de ser conveniente eleitoralmente. Um ensaio dessa transformação foram as eleições na Geórgia, estado tradicionalmente racista, em que o Partido Republicano perdeu maioria no Senado nas eleições de 2020 apoiado na agenda de Trump.

Paralelamente às disputas sobre o legado de Trump, Alex Main acredita que o atual presidente dos Estados Unidos, como indivíduo, opte por se retirar da vida política. “Embora seja passional e tenha tendência a continuar mobilizando sua base, causando disrupções, ele deve considerar questões legais, financeiras. Porque, obviamente, Trump tem inimigos muito poderosos, e eles têm meios para puni-lo severamente nesses casos”, completa, lembrando as denúncias de corrupção contra o atual presidente.

Aumento da repressão


Claudia De La Cruz avalia que um dos prováveis efeitos colaterais da invasão ao Capitólio é o aumento da violência contra movimentos sociais e organizações populares no país.

A ativista lembra que dezenas de dirigentes que organizaram protestos antirracistas nos EUA ao longo de 2020 foram presos e perseguidos. Em junho, Trump ameaçou acionar a Lei de Insurreição de 1807, que “autoriza o emprego das forças terrestres e navais dos Estados Unidos em casos de insurreição”.

“O que aconteceu no dia 6 será usado como referência nos processos legais e dentro dos meios de comunicação, inclusive, para justificar maior repressão contra os movimentos sociais”, ressalta.

Parte da mídia estadunidense se refere aos extremistas de direita que atacaram o Capitólio com o termo “manifestante”, o mesmo usado para se referir a ativistas que participam de protestos contra a discriminação a comunidades negras, indígenas e latinas.

Donald Trump, presidente dos Estados Unidos, derrotado na eleição de novembro. Imagem: Jim Watson/AFP

“Incluir grupos nacionalistas, fascistas e supremacistas brancos na mesma categoria de ativistas do Black Lives Matter [Vidas Negras Importam] e de outros movimentos por direitos das comunidades marginalizadas do país é algo extremamente problemático e perigoso”, acrescenta De La Cruz.

Biden se pronunciou sobre os ataques ao Capitólio e disse que aquele ato “não é um reflexo do que são os Estados Unidos da América.” Esse discurso, segundo a ativista, revela falta de reflexão do político democrata sobre os acontecimentos de 6 de outubro.

“O que aconteceu foi uma demonstração do que é a supremacia branca neste país, e do apoio fundamental que esses grupos têm por parte do Estado”, analisa, enfatizando que o ataque não teria ocorrido sem a cooperação de policiais, oficiais federais, militares e membros de serviços de inteligência.

O pesquisador do CEPR avalia que o combate ao “terrorismo doméstico” tende a ganhar espaço no debate sobre segurança nos EUA. “E isso pode, facilmente, conduzir a abusos”, acrescenta Main. “Assim como a Lei Antiterrorismo no Brasil torna-se uma ameaça para o movimento social, vejo que o mesmo deve ocorrer por aqui. Ou seja, a definição de terrorismo pode ser ampliada para incluir, de alguma forma, grupos que protestam contra certas políticas, mesmo que pacificamente”.

 Reflexos no Brasil


Aliado de Trump, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) foi perguntado, horas após o ataque em Washington, sobre sua posição em relação à alegação de fraude eleitoral sustentada pelo republicano nos EUA. Bolsonaro concorda que houve “muita denúncia de fraude” no pleito estadunidense de novembro.

“Eu acompanhei tudo hoje. Você sabe que sou ligado ao Trump. Houve muita denúncia de fraude, muita denúncia de fraude”, disse. “Eu tenho indício de fraude na minha eleição [em 2018]. Era para ter ganho no 1º turno”, acrescentou.

Em sua conta no Twitter, o cientista político Jairo Nicolau criticou a reação de Bolsonaro: “Ficou de apresentar as provas das fraudes há dois anos. Elas não existem, mas a invenção vai chegando aos seus apoiadores. Se diz que a vitória em 2018 foi fraudada, imagina a derrota em 2022”, alertou.

No dia seguinte, o presidente brasileiro acrescentou a apoiadores em Brasília (DF) que, “se tivermos voto eletrônico” em 2022, “vai ser a mesma coisa” ou “vamos ter problema pior que nos Estados Unidos”.

Jair Bolsonaro consentiu com ataque ao Capitólio. Foto: Isac Nóbrega/PR

Bolsonaro defende que o sistema brasileiro de urnas eletrônicas, considerado um dos mais sofisticados do planeta, seja substituído por voto impresso. Esse é justamente o formato usado no pleito dos EUA, que o próprio presidente brasileiro considera suscetível a fraudes.

Professor do curso de Relações Internacionais da UFABC, Igor Fuser avalia que a melhor forma de evitar que a “baderna” ocorrida em Washington se repita no Brasil em 2022 é o impeachment de Bolsonaro – que “já deu motivos mais do que suficientes para a adoção dessa medida drástica”.

“No Brasil, um desafio bolsonarista a um resultado eleitoral negativo poderá assumir dimensões muito mais graves do que na conduta de Trump nos EUA”, alerta. “Nossas instituições democráticas são muito mais frágeis, e Bolsonaro tem apoio em setores importantes das Forças Armadas, das Polícias Militares, do empresariado e do Judiciário”, considerou.

Para Fuser, outros fatores de preocupação são o “apoio cego” de parte da população a Bolsonaro, a rápida proliferação de armas no Brasil entre esses setores nos últimos dois anos e “os sérios sintomas de desequilíbrio” que marcam a personalidade do presidente.

“Aí se acumulam os componentes explosivos de uma crise política e institucional que podemos ter de enfrentar daqui há algum tempo, com o risco até mesmo de um golpe fascista”, enfatiza o professor da UFABC. “As forças populares, ao mesmo em que se mobilizam em defesa dos direitos do povo e no combate ao retrocesso neoliberal, devem estar dispostas a uma aliança pontual com setores da direita liberal interessados em defender o pouco de democracia que existe no país”, finaliza.

Edição: Camila Maciel/Brasil de Fato