Visibilidade Trans
“A nossa primeira reivindicação neste Dia da Visibilidade Trans é viver, e a segunda é sobreviver”
Por Fernanda Alcântara
Da Página do MST
O Dia Nacional da Visibilidade Trans, comemorado hoje (29 de janeiro), busca a sensibilização e reconhecimento das identidades de gênero com o objetivo de combater os estigmas e a violência sofrida pela população transexual e travesti.
A data celebrada desde 2004, a partir do lançamento da campanha “Travesti e respeito”, elaborada por lideranças históricas do movimento de transexuais no país, representa uma luta de séculos.
Nos dias atuais, a data traz números alarmantes: o Brasil é o país onde mais transexuais são mortos. A expectativa média de vida dos(as) transexuais no Brasil é de 35 anos, menos da metade da expectativa de vida do brasileiro, que é de 76 anos, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No ano passado, o país apresentou um aumento consecutivo nos casos de assassinatos de pessoas trans em relação ao ano de 2019 só no primeiro quadrimestre de 2020, mesmo no período de pandemia pelo coronavírus.
Transexuais também simbolizam uma das parcelas da população mais excluídas do mercado de trabalho e, com raras oportunidades de emprego, cerca de 90% das pessoas trans no Brasil acabam recorrendo à prostituição.
Segundo os dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), a pandemia da Covid-19 impactou drasticamente a vida das pessoas trans, especialmente as travestis e mulheres transexuais profissionais do sexo, uma vez que a maioria não conseguiu acesso as políticas emergenciais do estado devido a precarização histórica de suas vidas.
Para ressaltar a importância desta data, entrevistamos Keila Simpson, atual presidenta da ANTRA.
Confira!
A expectativa média de vida dos(as) transexuais no Brasil é de 35 anos, menos da metade da expectativa de vida do brasileiro, que é de 76 anos. O que justifica esta diferença?
A população trans vive em vulnerabilidade, muito mais do que a maior parte da população. São pessoas que começam a trabalhar muito cedo, saem de casa expulsas pela família, que não encontram abrigos necessários para acolher. A escola e a sociedade não sabem lidar com estas situações e as pessoas trans ficam sozinhas e caem numa cadeia de vulnerabilidade muito estrutural. Muitas vezes essas pessoas vão para a rua e lá faltam oportunidades, e vão recorrer à prostituição, pois a rua é circundada por problemas que acontecem socialmente, como o uso de drogas ilícitas, a dificuldade de alimentação, de descanso. Essa pessoa terá o psicológico abalado porque todos os dias sente essas dificuldades que a sociedade impõe contra as pessoas trans, e isso acarreta nesse dado da expectativa de vida.
Soma-se a isso o número de assassinatos que acontecem no Brasil. Normalmente as pessoas trans são assassinadas muito jovens. A vulnerabilidade da qual essas pessoas estão submetidas quando são expulsas de casa são alarmantes e acabam sendo vítimas de violência e até de assassinatos.
A Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) reúne mais de 200 ONGs em todo o país. Como é estar à frente desta associação?
A ANTRA está organizada desde 1993, quando inicia-se o processo de criação desta instituição. Depois passamos à institucionalização como personalidade jurídica, em 2000, e tem trabalhado bastante pelo Brasil a fora para poder reverberar a sua missão dentre os associados. Nós temos hoje mais de 200 instituições ligadas a ANTRA pelo Brasil, mas estamos passando por problemas sérios de sustentabilidade neste momento com a escassez de recursos que neste governo se acirra profundamente.
O governo atual acabou com todo o diálogo que a sociedade civil tinha e as nossas pautas ficam sendo debatidas e construídas apenas pela força que os movimentos sociais tem. A gente vive um momento adverso no Brasil com esta política, um governo que não dá direito ao contraditório, e é complicado atuar numa organização com a capilaridade que a ANTRA tem sem ter esse apoio. Mas estamos aqui, vamos continuar aqui, essa é uma certeza que a gente tem, e esse governo vai passar. O movimento social fica, o governo passa.
Qual a importância hoje de uma data como o Dia da Visibilidade Trans?
O Dia da Visibilidade Trans é importante porque marca uma luta. Além de ser um marco histórico, ele também tem toda uma estratégia de vida dentro dele. Por que surgiu o 29 de janeiro? Porque no dia 29 de janeiro de 2004 vinte e sete travestis brasileiras entraram no congresso nacional para lançar uma campanha que o programa de AIDS, do Ministério da Saúde, tinha desenvolvido em parceria com os movimentos sociais. Mas o que surpreendeu mesmo é que, nesta data, era a primeira vez que muitas de nós entravam no Congresso Nacional. Então imagina: o Congresso Nacional é a casa do povo, mas de qual povo estamos falando? Qual parcela do Congresso Nacional representava as trans? Para a nossa população ele nunca foi “nossa”, a despeito de que de todos aqueles anos de Congresso e não tínhamos uma legislação sequer para a nossa população.
Perceba que, para algumas pessoas, entrar naquela casa pela primeira vez significou um marco político, como se aquele espaço não fosse nosso antes. Queríamos muito que hoje [29 de janeiro de 2021], 17 anos depois que comemoramos o Dia da Visibilidade Trans, o congresso tivesse mudado sua forma de ser e agir em relação à nossa população, mas não é a realidade. Mas a gente não desiste. Como eu disse, nós somos movimento, nós vamos ficar, os parlamentares vão se modificando paulatinamente naquele espaço e Oxalá permita que tenhamos um dia um parlamento que reverbere as nossas pautas, as nossas lutas, defenda as nossas bandeiras e caminhe conosco para construirmos um Brasil que todos merecemos e desejamos.
Quais os desafios para a comunidade hoje, em especial diante da pandemia?
A pandemia trouxe um componente a mais na já difícil vida das pessoas trans. Eu sempre falei que muitas de nós já vivia no isolamento social, a pandemia só colocou todo mundo nesta mesma órbita. E como esta pandemia pegou todo mundo desprevenido, a população trans, que já tinha uma vulnerabilidade maior, acabou sendo afetada muito fortemente, e o desafio de hoje é conseguir fazer com que esta população tenha o básico para sobreviver, principalmente alimentação. Existem pessoas trans pelo Brasil passando fome, que não estão conseguindo trabalhar, porque seu trabalho envolvia contato, aproximação social, e as recomendações da Organização Mundial da Saúde [OMS] são de isolamento social. Nós concordamos com a OMS, somos à favor do distanciamento social, do uso de máscara, da higienização das mãos, somos à favor de todas essas políticas, mas temos que olhar para a comunidade trans com essa especificidade.
Como esta população vai viver se muitas dessas pessoas não conseguiram receber os Auxílios Emergenciais? Se a organização que eu coordeno não tivesse empenhado seus esforços para fazer uma campanha de arrecadação de alimentos e donativos, não sabemos como passaríamos esse ano de pandemia. Estamos aqui entrando neste segundo ano de pandemia e ainda precisamos desenvolver estratégias de sobrevivência. A nossa primeira reivindicação neste dia da visibilidade trans é viver, e a segunda é sobreviver. A primeira porque, para viver, é preciso que as pessoas não nos matem; e para sobreviver, é preciso ter instrumentos que garantam a sobrevivência para esta população que tanto necessita de ajuda neste momento.
Qual a análise que você faz hoje de dentro da ANTRA e a expectativa para o próximo período?
Eu acredito que a ANTRA, como uma instituição de base forte, tenha um papel fundamental para o futuro. Nós nos acostumamos e nos adequamos à essa nova fase que vivemos hoje de trabalhar a distância, por exemplo. Essa forma da gente se encontrar sem ser presencialmente fez com que aprendêssemos que as ações podem e devem continuar, que mesmo com os empecilhos colocados pelo Governo Federal a nossa atuação prossegue e, na minha avaliação, ela foi até mais potencializada neste período. Então a pandemia também colocou esse processo no nosso caminho que era de se reinventar e, a partir daí, não deixar a peteca cair, não esmorecer. Nossa expectativa para o próximo período é de continuar atuando em coletivo com movimentos sociais diversos, para que a gente continue avançando, para que possamos restabelecer de fato a nossa democracia como a gente defende e acredita. Precisamos ter os movimentos sociais mais coesos, mais fortalecidos, mais solidários, e possamos caminhar juntos.
Um exemplo disso é a ANTRA estar ocupando alguns espaços nos conselhos. Nós não acreditamos neste Conselho que está estabelecido no âmbito do ministério da Mulher, que é um conselho que, na minha avaliação, é um comitê ou grupo de trabalho. A ANTRA aposta então em conselhos populares e por isso ela faz parte do Conselho Nacional LGBT, porque acreditamos que aquela instância apresenta uma pluralidade de movimentos, e é desta forma que a gente acredita que devemos construir um movimento social. Movimento social se faz com pluralidade, e não com individualismo ou “umbiguismo”. Então para o próximo período eu prevejo que tenhamos mais sapiência, mais garra para continuar atuando muito fortemente nessa luta e que tenhamos a vacina para todo o Brasil.
*Editado por Wesley Lima