Especial
Fome: a chaga histórica reabre e atinge sempre os pés descalços
Por Iris Pacheco e Solange Engelmann
Da Página do MST
Desde o início do desgoverno Jair Bolsonaro que os desmonte em políticas sociais importantes vêm sendo pauta. Estamos falando de políticas públicas que possibilitaram o desaceleramento da pobreza, da extrema miséria e fortaleceram a soberania alimentar do país.
Diante do atual quadro de instabilidade social, o Brasil volta ao Mapa da Fome das Nações Unidas. Uma chaga histórica que demarca a desigualdade social, de gênero e de raça no país. Em 2020, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou os dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2017-2018, e, nela, mostrou-se que 74% das pessoas referência para famílias em estado de insegurança são negros e 52% são mulheres. Além disso, enquanto famílias mais pobres gastam em média 26% de seu orçamento em compras de alimentos, os mais ricos gastam em média 5% de seu orçamento.
Ana Lúcia Pereira, professora na Universidade Federal do Tocantins e membro dos Agentes de Pastoral Negros do Brasil, considera lamentável a volta do país ao Mapa da Fome, já que o Brasil saiu dessa situação recentemente, em 2014, após um longo processo de mobilização que envolveu o Estado, a partir de políticas de governos do Partido dos Trabalhadores (PT) e da sociedade civil, em processos de mobilização com políticas de segurança alimentar e nutricional que se tornaram exemplo para outros países do mundo.
“Apesar de toda a organização e resistência da sociedade civil, o descaso do governo e o ajuste fiscal afetou diretamente a Política e o Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, o Plano Safra da Agricultura Familiar, a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, o Programa de Aquisição de Alimentos, o Programa Nacional de Alimentação Escolar e políticas correlatas. Consequentemente, o direito e a dignidade da pessoa humana estão ameaçados, se considerarmos que à alimentação adequada e saudável é fonte de vida,” criticou Ana Lúcia.
Da Amazônia para o Nordeste, a assentada cearense e Dirigente Nacional do setor de produção do MST, Antônia Ivoneide, conhecida como Neném, denuncia o ataque do governo Bolsonaro à Reforma Agrária e Agricultura Familiar. Além de injetar recursos públicos no agronegócio, que só produz para exportar e não para alimentar a população, se o governo realmente estivesse preocupado em acabar com fome, deveria incentivar a produção de alimentos para o mercado local.
“É fundamental que a gente tenha esses processos de políticas públicas, como foi o caso da Lei Assis Carvalho [Projeto de Lei 735 aprovado pelo Senado e vetado por Bolsonaro, que visava apoio emergencial para agricultura familiar]. Se essa Lei tivesse sido aprovada em abril do ano passado, o nosso volume de produção hoje seria diferente,” salienta.
“A fome existe e é persistente porquê existe também a desigualdade social!”
– Carolina de Jesus
Uma mulher nordestina com muitas histórias de lutas, Neném conta que, nos anos de 1970 e 80, passou por momentos difíceis de falta de comida e fome. Na sua opinião, essa realidade está voltando a se repetir, principalmente na região Nordeste do país e diante dos desmontes de políticas públicas para o campo.
“Temos constantemente seca, outros processos de insegurança hídrica que impedem de ter uma produção maior.” Ela explica ainda que passar fome não significa somente não ter comida, mas não ter o suficiente para que “toda família possa comer e saciar a vontade de comer diariamente, três, quatro vezes.”
Subindo um pouco mais para o Nordeste, chegamos em Itinga do Maranhão, no Oeste do estado. Lá vive o Sem Terra Emílio Souza, 49 anos, com sua família no acampamento Marielle Franco, organizado pelo MST. Ele relata que as famílias produzem alimentos e criam animais desde que chegaram na área há quase três anos, mas com o isolamento social devido à pandemia da covid-19 e ausência do auxílio emergencial para o campo, os agricultores e agricultoras estão com dificuldades.
Com uma produção cultivada sem agrotóxicos, Emílio relata que uma das dificuldades é transportar os produtos até as cidades mais próximas, onde se consegue um bom preço. “Temos uma boa produção, mas a gente acaba perdendo muita coisa por não ter como tirar do acampamento até o mercado. Não têm programas que apoiam a gente nessa possibilidade de escoar a produção pra cidade”, lamenta o agricultor.
O acampamento Marielle Franco conta com cerca de 150 famílias acampadas do MST, que resistem no local desde 9 de junho de 2018, em uma área de 8 mil hectares. Infelizmente, com o atual desmonte das políticas públicas para o campo promovidas por Bolsonaro, obter este tipo de apoio para escoar a produção e possibilitar uma relação direta entre produtores e consumidores está longe de ser uma realidade. Em todo o país, a agricultura familiar e a Reforma Agrária têm construído formas alternativas de garantir o mínimo deste processo, mas também pressionando legisladores locais, tais como governadores e prefeitos municipais.
Impactos da falta do auxílio emergencial no campo
Como as famílias acampadas vivem em áreas não legalizadas e com a falta de políticas públicas de apoio para a produção e comercialização de alimentos, o auxílio emergencial no campo é fundamental para complementar a alimentação e o apoio produtivo a esses agricultores.
Sousa explica que as famílias do acampamento Marielle Franco produzem grande quantidade de arroz, feijão, milho, entre outros cultivos no local, mas como a área ainda não foi desapropriada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para Reforma Agrária, há diversos limites para avançar na produção, comercialização de alimentos e permanência das famílias nas áreas.
A ausência do auxílio emergencial para o campo também é um problema para as famílias de assentamentos da Reforma Agrária, que enfrentam a redução nas vendas, devido ao isolamento social e às restrições da pandemia, que restringe o deslocamento até as feiras e cidades. A situação dos assentados piorou por conta da destruição de políticas públicas para agricultura familiar e camponesa por Bolsonaro, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).
“Essa falta do auxílio emergencial afeta muito a vida dos acampados e assentados. Caiu muito a renda dos assentados, que era fundamental para complementar, por exemplo, o açúcar, café, óleo, e outros produtos que eles não estão conseguindo produzir suficientemente para sua alimentação. Então, é complicado a renda e em consequência, a comida dos trabalhadores vai ficar bem deficiente com a falta do auxílio emergencial”, avalia Antônia.
Segundo a professora Ana Lúcia, a agricultura familiar e a Reforma Agrária são alternativas possíveis para superar o cenário da fome que se avizinha no país e garantir o alimento na mesa da população, à medida em que os produtos chegam mais próximo e rápido ao consumidor, pois a produção é cultivada por agricultores e agricultoras que vivem nos municípios ou nas regiões. “A agricultura familiar produz a comida de verdade que é consumida pelo povo brasileiro e, que faz a economia local girar. A Reforma Agrária permite a manutenção da família no campo”, aponta.
*Editado por Fernanda Alcântara