História de Luta
“Minha perna é minha classe!” O evangélico que até hoje inspira a luta pela terra
Por Magali Cunha
Da Carta Capital
Na semana passada, por conta de uma pesquisa em que atuo, dialoguei com uma dirigente regional do MST no Maranhão, sobre o papel das igrejas cristãs na defesa de direitos humanos, econômicos, sociais, culturais e ambientais na Amazônia. Ela me explicava sobre a atuação forte da Igreja Católica Romana no apoio ao direito à terra e ao trabalho nela, e sobre a quase inexistente ação de igrejas evangélicas e de outras religiões, de forma orgânica, nessa pauta.
Eu dizia a ela que isso pode ser compreendido com a história da forma como as igrejas evangélicas foram implantadas no Brasil por missionários protestantes dos Estados Unidos, no século 19, e por missionários pentecostais no século 20, estes suecos e, também, estadunidenses.
A religião foi primordialmente baseada no individualismo, na fuga do mundo e na salvação da “alma”. Um excelente exercício é prestar atenção nas canções das igrejas, nos clássicos hinos ou mesmo nas modernas músicas gospel, a quase totalidade dos conteúdos está no “eu”. Há muito pouca dimensão comunitária, escassa expressão coletiva, social.
Lideranças e grupos evangélicos que, desde o século 19, andaram na contramão, baseando-se na perspectiva do Evangelho Social, foram minoritárias. Ainda assim, deixaram marcas na trajetória, o que alimenta a existência de grupos progressistas nas diferentes igrejas e nos movimentos ecumênico e da missão integral.
A partir disso, a dirigente do MST com quem eu dialogava fez um destaque. Ela disse que muita gente se surpreende quando identifica que no MST há muitos evangélicos e muitas igrejas evangélicas nos assentamentos. Várias dessas pessoas são lideranças no movimento. Fazem a defesa do direito à terra e à vida plena mesmo que suas igrejas não incentivem isso.
Há regiões, segundo a minha interlocutora, em que 50% dos integrantes do movimento são evangélicos pentecostais. Ela diz que nesses espaços há pastores da Assembleia de Deus com posicionamentos bastante progressistas em relação a direitos e quando aparecem líderes religiosos mais reacionários, as próprias pessoas questionam e rechaçam suas ações.
A dirigente do MST diz: “isso é a consciência que vem da vida, daquilo que se vive nos territórios. A pessoa tem sua religião, se sente feliz e aliviada com ela, e ela serve de alimento para as ações que brotam da consciência de que é preciso lutar para se conquistar justiça”.
Este diálogo me fez lembrar da história do pentecostal Manoel da Conceição, que já registrei em outros textos e não me canso de repetir. Ainda mais neste mês em que o Coletivo Memória e Utopia, o qual integro, recorda os 57 anos do golpe que colocou o Brasil em uma ditadura que durou 21 anos e que sobrevive até os nossos dias.
Nascido em 1935, no interior do mesmo Maranhão da minha interlocutora, Manuel da Conceição está entre os trabalhadores rurais que sofrem nas mãos dos donos de terras. Tornou-se membro da Igreja Pentecostal Assembleia de Deus, inspirado pela vida comunitária, a solidariedade e a valorização dos pequenos. Logo se tornou professor da Escola Bíblica Dominical e auxiliar do pastor. Também aprendeu com o Movimento de Educação de Base (MEB) sobre o sentido das injustiças que sofria e sobre seus direitos como trabalhador. Por isso, exerceu sua vocação cristã fundando o sindicato dos trabalhadores rurais em Pindaré-Mirim. Manoel se tornou um destacado líder camponês do Maranhão.
Com o golpe civil-militar de 1964 veio a perseguição. Em 1968, policiais chegaram atirando em uma reunião no sindicato e Manoel foi ferido na perna direita. Depois de seis dias na prisão, sem tratamento, parte da perna gangrenou e teve que ser amputada. O então governador do Maranhão José Sarney lhe ofereceu vantagens materiais para que silenciasse sobre a barbaridade sofrida, mas o sindicalista evangélico recusou e respondeu com uma frase que ficou famosa: “Minha perna é minha classe!”.
Sindicalistas e outros militantes levantaram recursos que garantiram o tratamento e a colocação de uma prótese, em São Paulo. Livre, retornou a Pindaré e à causa da justiça. Preso novamente foi sequestrado por agentes do DOI-CODI e levado para o Rio de Janeiro.
Na “ante-sala do inferno” do quartel da Tijuca (nome dado pelos próprios agentes), a perna mecânica foi arrancada e ele foi colocado nu na “geladeira”, a solitária, onde era tratado literalmente a pão e água e torturado. Entre idas e vindas ao hospital para ser mantido vivo, além das práticas convencionais como choque elétrico, pau-de-arara e espancamento, o sindicalista pentecostal foi pendurado ao teto e teve o órgão sexual preso por um prego em cima de uma mesa. Manoel só saiu vivo dali para ser julgado, graças à campanha feita no Brasil e no exterior contra o seu sofrimento. Igrejas católicas e evangélicas da Europa e dos Estados Unidos protestaram contra a prisão e desaparecimento do sindicalista, enviando cartas ao Presidente Médici.
Em 1972, Manoel foi condenado e cumpriu três anos de prisão. Quando libertado, foi hospitalizado em São Paulo, com a ajuda de D. Aloísio Lorscheider, D. Paulo Evaristo Arns e o pastor presbiteriano Jaime Wright. Por causa da tortura, o homem urinava através de sonda e ficou impotente por anos. Meses depois, a casa onde Manoel estava foi invadida por policiais, que o levaram para o DEOPS, onde sofreu novas torturas. Na ocasião, o Papa Paulo VI enviou telegrama ao Presidente Ernesto Geisel exigindo a libertação do sindicalista evangélico. No final de 1975, ele foi finalmente solto e teve o exílio por salvação. Retornou ao Brasil com a anistia de 1979. Aos 85 anos, com saúde frágil, Manoel da Conceição continua dando testemunho de sua vida e de sua fé no Deus da paz com justiça, apoiando as cooperativas que ajudou a criar.
É memória que alimenta utopia, em especial quando conectada com o que disse a dirigente do MST no Maranhão, em 2021, tantas décadas depois, sobre os pentecostais que, a partir de sua fé e sua experiência cotidiana, colocam-se pelo direito à vida com dignidade.
Vivemos tempos duros no Brasil que nos causam muita indignação. Da história de evangélicos no Brasil, bem diferente do que mostram as mídias gospel e os líderes em evidência, ecoa a palavra da Bíblia cristã: “Quero trazer à memória o que me pode dar esperança” (Lamentações 3.21). A história presente dos evangélicos no MST, junto com a memória de Manoel da Conceição, nos anima a resistir com esperança.