Eldorado dos Carajás
25 anos do massacre de Carajás: memórias da dor e resistências, relembra Sergio Sauer
Por Sergio Sauer
Do Poder 360
2021, mais do que qualquer outro ano, faz de 17 de abril uma data histórica. São 25 anos do massacre de Eldorado dos Carajás (Pará), portanto, uma data memorável, mas absolutamente sem nada a celebrar.
Nada a celebrar não só porque não se comemora a morte de ninguém, muito menos o assassinato de 21 pessoas sem-terra, executadas na curva do S. Nada a celebrar também porque são anos de impunidade, agravados pela necropolítica galopante no Brasil pandêmico.
São duas décadas e meia de um crime impune, cometido contra pessoas que ousaram lutar por direitos; pessoas ousadas que reivindicaram terra para viver e trabalhar. Em 2021, não é só a impunidade deste –assim como de tantos outros massacres no campo, como foram os de Corumbiara (RO) ou de Pau D’Arco (PA)– que aumenta a dor e os temores pela vida. Pois a pandemia campeia.
Rememorar acontecimentos é presentificar lutas e ousadias. Além de não esquecer, rememorar é trazer para o presente, alimentando lutas e resistências. Rememorar é esperançar, usando um verbo caro a Paulo Freire para um “esperar lutando”. Este ano, a memória do massacre aumenta a dor e amplifica as perdas provocadas pela necropolítica em curso, explicitada com a pandemia.
A figura de linguagem, usada em reunião ministerial em 2020, “fazer a boiada passar” expressa o exercício de governo que pisoteia poder sobre cadáveres, vítimas da pandemia. Além de uma total falta de empatia, o governo federal cumpre à risca a promessa de campanha de não destinar “nem um centímetro de terra para quilombola ou indígena”, pois todos os programas governamentais de reforma agrária e reconhecimento de direitos territoriais estão paralisados.
Diferente de muitas afirmações, o coronavírus não é democrático, pois a pandemia tem aprofundado a desigualdade entre ricos e pobres. As consequências da pandemia e da crise social são muito diferentes em nível global, mas especialmente desastrosas em países tão desiguais como o Brasil. A crise sanitária explicita todas as características de uma pandemia de classe, gênero e raça, amplificando dores das perdas. Muitas evitáveis, como poderiam ter sido evitadas as mortes na curva do S.
Apesar do auxílio emergencial em 2020, o governo vetou vários artigos das leis sobre apoio às pessoas e famílias mais vulneráveis. Vetou trechos que estabeleciam medidas sanitárias e auxílios a povos indígenas e apoio à agricultura familiar. A Lei 14.021, de 2020, tem um capítulo sobre segurança alimentar para povos indígenas, comunidades quilombolas, entre outras populações do campo. Mas os trechos que obrigavam a União a distribuir alimentos diretamente às famílias beneficiárias foram vetados.
A sanção da Lei 14.048, de 2020, foi acompanhada de vetos, negando apoio financeiro aos produtores rurais familiares que não receberam o auxílio emergencial. Os artigos que prorrogavam dívidas e ampliavam linhas de crédito para a agricultura familiar também foram vetados.
Na necropolítica não cabem nem auxílio, nem reconhecimento de direitos dos povos do campo; muito menos a criação de assentamentos e a destinação de terra para famílias sem terra. Liberação geral de armas cabe, inclusive para as milícias do campo, mas não fiscalização e controle do desmatamento.
Depois de mais 355 mil vítimas da covid-19, o governo federal continua negando a gravidade da pandemia, prescrevendo tratamentos errados e tentando impedir as medidas sanitárias de governadores e prefeitos. Sem grandes esforços para comprar vacinas, as atitudes expressam total falta de empatia com as famílias enlutadas e com o aprofundamento da desigualdade no Brasil.
Antecipando a necropolítica, o escritor Ignácio de Loyola Brandão publicou o 3º romance de uma trilogia política, abordando situações e tramas em uma nação assolada por ditadura militar, descaso social e aquecimento global. Publicado em 2018, mas antes da eleição de Bolsonaro em novembro, o romance “Desta terra nada vai sobrar a não ser o vento que sopra sobre ela” é ambientado em uma nação distópica, governada por pessoas sem cérebro, sem memória e sem propósitos, assolada por epidemias e caravanas transportando mortos.
Como um presságio assustador, o enredo de Loyola Brandão reproduz a nação Brasil em 2021, governada pelo negacionismo e assolada por fake news –por mentiras– e campanhas que estimulam comportamentos sociais de desrespeito a regras sanitárias. Slogans como “Não se entregue ao abismo, trabalhe” e “Para frente, Brasil. Siga” vem sendo ‘twitados’ incentivando o “povo a voltar a trabalhar”, sem qualquer medida ou apoio para evitar as infecções dos mais pobres.
A hashtag “OBrasilNãoPodeParar” impulsionou manifestações de rua no final de março de 2020, que resultaram em várias carreatas que exigiam a volta ao trabalho. Como a campanha foi proibida pelo Supremo Tribunal Federal, Bolsonaro distorceu pronunciamento do diretor-geral da Organização Mundial de Saúde (OMS), feito em 29 de março, para insistir na volta ao trabalho.
Selecionando apenas a parte que Tedros A. Ghebreyesus mencionou as pessoas “que têm que trabalhar diariamente para ganhar o pão de cada dia”, em post nas redes sociais, omitiu a recomendação e cobrança aos governos para que adotem medidas para garantir a renda da população mais pobre. Distorcendo essa e tantas outras recomendações médicas, continua insistindo que a economia não pode parar. Não há qualquer medida do governo para de fato diminuir o desemprego – apenas privatizações e ações paliativas disfarçadas de auxílio aos mais pobres.
O negacionismo e os vetos aos auxílios às pessoas vulnerabilizadas fazem parte da promessa de 2018, nem um palmo de terra e nem direitos aos povos do campo. A necropolítica, contaminada pela impunidade, faz com que 2021 não seja para celebrações.
Lembrar os 25 anos, no entanto, é para esperançar. É presentificar para esperar lutando por direito e pela retomada das políticas públicas para o campo, especialmente dos programas de reforma agrária e de reconhecimento de direitos.