Acampamentos e Assentamentos
MP-PR recomenda emissão do Cadastro de Produtor Rural para acampados e posseiros
Por Thea Tavares, especial para o Viomundo
Do Vi o Mundo
Em nota técnica (na íntegra, ao final), Ministério Público do Paraná orienta prefeituras a incluírem famílias acampadas, que vivem em pré-assentamentos, posseiros e filhos de assentados no Cadastro de Produtor Rural (CAD/PRO) para reconhecimento da atividade agropecuária e para assegurar o direito de venderem formalmente os alimentos que produzem e de pagarem tributos ao município.
Num momento em que aumentam os números do desemprego, da fome, em que as pessoas precisam se alimentar de maneira adequada para melhorar as chances de imunidade no enfrentamento da pandemia do novo coronavírus e que todos os indicadores sociais e econômicos despencam vertiginosamente, milhares de famílias no Paraná não conseguem vender os alimentos produzidos em compras governamentais e muito menos ser reconhecidas como trabalhadoras da atividade agropecuária, ficando invisibilizadas e à margem das políticas públicas sem essa inscrição municipal no cadastro de produtores rurais.
Também, por esse motivo, deixam de contribuir para a arrecadação fiscal do seu município, o que poderia alavancar serviços e obras de atendimento que beneficiariam o conjunto da comunidade.
Quando a negativa não se dá por birra política, ela é motivada pela falta de informações seguras e pelo receio de que essas administrações municipais venham a ser responsabilizadas no futuro por causa da emissão de uma permissão que é devida.
Para evitar que a desinformação cerceie o direito de milhares de paranaenses, procuradores e promotores de justiça do Ministério Público do Paraná (MPPR) elaboraram um documento, assinado por integrantes dos Centros de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos Humanos e de Proteção ao Patrimônio Público e à Ordem Tributária, com a finalidade de esclarecer e de subsidiar com argumentos e justificativas jurídicas as prefeituras municipais a respeito da concessão e da legalidade do CAD/PRO.
“O produtor rural, ainda que se encontre em área de ocupação ou de pré-assentamento, poderá, então, emitir a nota fiscal dos produtos que comercializa, recolhendo o imposto devido e contribuindo, com tais recursos, para a efetivação de políticas públicas necessárias à coletividade”, informa esse documento.
Para o procurador Olympio de Sá Sotto Maior Neto, coordenador do CAOP de Direitos Humanos, “não tem lógica não fazer isso, pois aumenta a arrecadação municipal e auxilia no custeio de obras públicas e serviços à comunidade”.
“Caberia aos municípios promover a identificação fiscal desses produtores. A inscrição no CAD/PRO é, pois, uma obrigação tributária acessória a que se sujeita todo e qualquer produtor rural, seja ele proprietário da terra ou não”, diz.
“O que nos impulsiona é o reconhecimento do direito, é fazer justiça para o produtor rural, ainda que ele esteja em condição de acampamento ou de pré-assentamento. Estamos diante de uma atividade econômica que é tributável. Há um dever, por parte do estado, de cobrar esses tributos”, completa.
Para a deputada estadual Luciana Rafagnin (PT-PR), que participou de uma reunião remota com os integrantes do Ministério Público e a direção estadual do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST-PR), para ouvir o relato da situação em diversas regiões do estado, “esta é mais uma luta importante que o MST trava em favor da valorização e do fortalecimento da agricultura familiar e camponesa na produção de alimentos para o povo paranaense, visando ao desenvolvimento econômico e social do estado”.
Líder do Bloco Parlamentar de Apoio à Agricultura Familiar da Assembleia Legislativa do Paraná (Alep), a deputada ressalta que “a inscrição no CAD/PRO é um direito de cidadania das pessoas que estão trabalhando, produzindo comida e precisando vender seus produtos. Também garante o acesso a benefícios previdenciários”.
“Neste momento, é, além de tudo, desumano não permitir que as pessoas tenham sua atividade reconhecida e acabem invisibilizadas, aumentando os indicadores do abandono e da exclusão social”, argumenta.
Trabalhadores rurais reclamam o direito de existir e sobreviver do cultivo de alimentos
Ranieli José Moraes, filho de assentados da reforma agrária em Francisco Beltrão, no Sudoeste do Paraná, não existe enquanto cidadão financeiro.
Não tem sua atividade profissional de produtor rural reconhecida, não comprova renda, não movimenta conta bancária, não pode vender os alimentos que produz por meio de nota de produtor, a não ser emprestando o bloco de notas dos pais, não recolhe tributos relativos a essas transações comerciais em seu nome, não participa das chamadas públicas de compras governamentais, como o programa de alimentação escolar ou o compra direta, não possui crédito junto ao comércio local, não pode comprar nada de forma parcelada, não acessa financiamento rural, benefícios ou direitos sociais e previdenciários, entre outras negativas.
Tudo porque a Prefeitura Municipal se nega a incluí-lo no Cadastro de Produtor Rural, o chamado CAD/PRO, renovado anualmente no seu caso, o que abriria a ele as portas para acessar esses programas e políticas públicas, além de permitir as demais condições que lhe são negadas hoje.
E o mais contraditório é que, entre 2014 e 2017, Ranieli vivia uma outra situação: pode emitir nota de produtor rural e o reconhecimento de sua atividade profissional lhe assegurou o direito de ser um cidadão financeiro, de ter inclusão bancária, renda formalizada e de recolher impostos e tributos que, inclusive, contribuíram para movimentar a economia local e para aumentar a arrecadação fiscal no seu município.
Quando seu primeiro filho nasceu, a esposa recebeu auxílio-maternidade para poder se dedicar aos cuidados com a criança nos seus primeiros meses de vida e para contribuir com a renda familiar durante o período da licença, previsto em lei.
Agora, com um segundo filho prestes a completar nove meses de idade, o casal, que teve o direito à licença-maternidade negado pela Previdência Social por falta do CAD/PRO, briga na justiça para tentar recuperar o benefício previdenciário.
A história de Ranieli é um drama que se repete não só entre filhos de assentados, mas condiz com a realidade de milhares de famílias de posseiros, das famílias acampadas no Estado do Paraná ou que vivem e produzem alimentos em áreas de pré-assentamentos.
Isso vai na contramão da necessidade de manter as famílias de trabalhadores rurais na atividade produtiva e não contribui para a sucessão e permanência dos jovens na propriedade rural.
“Se nós não temos perspectivas de que conseguiremos a aposentadoria um dia, como vamos garantir e passar segurança para os nossos filhos seguirem nessa lida?”, questiona o agricultor. “Vamos ter de repensar o futuro que a gente tinha planejado para a família na propriedade”, diz.
No acampamento Maila Sabrina, em Ortigueira, que tem 18 anos de ocupação, aproximadamente 200 famílias dependem da inscrição no CAD/PRO e do reconhecimento da sua atividade produtiva para conseguirem formalizar a venda dos alimentos produzidos na comunidade.
Até 2016, elas contavam com o documento de aptidão, uma vez que o Incra facilitava a liberação ao emitir uma declaração para as famílias. A partir de 2016, o órgão se negou a colaborar e passou a atuar como um adversário dos camponeses nesse processo.
“O município sempre teve a boa vontade de regularizar a inscrição das famílias, mas não tinha a segurança jurídica. Agora, com a nota técnica do Ministério Público, vamos poder regularizar novamente essa situação”, conta a integrante da coordenação do acampamento, Jocelda Oliveira.
Por meio de um acordo com a Secretaria da Agricultura, uma comissão formada por técnicos do município e por representantes da comunidade dividirão responsabilidades e compartilharão compromissos para resolver a questão, seguindo as orientações legais e os caminhos apontados na nota técnica do MPPR.
Será feito todo um levantamento individualizado da produção das famílias, sob o acompanhamento dos profissionais técnicos responsáveis, com os devidos registros e documentação para atestar a veracidade das informações e a comunidade também emitirá declarações individuais e coletiva sobre a realidade do trabalho e da produção de alimentos no Maila Sabrina.
“Vamos focar a atenção na garantia do direito das famílias de produzirem e de venderem sua produção”, disse Jocelda.
Existem no Paraná cerca de 7 mil famílias em 70 áreas de acampamentos e de pré-assentamentos de reforma agrária.
Somente no município de Quedas do Iguaçu, estima-se que cerca de mil famílias de agricultores, produtoras nas comunidades Leonir Orbach, Dom Tomaz Balduíno, Fernando de Lara, Vilmar Bordin e Nova Vitória, estão com seu direito de inscrição no CAD/PRO negado.
O Paraná possui ainda 329 áreas de assentamentos rurais, como o Assentamento Missões, em Francisco Beltrão, onde Ranieli José Moraes reside, produz alimentos e empresta sua voz à luta dos sem terra para que outros camponeses, na mesma situação, existam enquanto cidadãos financeiros, dentro de um verdadeiro estado de bem-estar social.
Desde o início da pandemia, aliás, o MST tem realizado ações de solidariedade e atuado no sentido de diminuir a fome e o sofrimento do povo pobre na periferia das cidades, com a partilha de parte do que é produzido também nessas comunidades rurais dos acampamentos e pré-assentamentos de reforma agrária pelo Brasil afora.