Centenário Paulo Freire
O MST e o legado de Paulo Freire na África
Por Rafael Soriano
Da Página do MST
Como um andarilho da esperança, do trabalho e da mudança de vida das pessoas, Paulo Freire espalha um legado por todos os continentes. Freire viveu na Bolívia, no Chile, em Cambrige (Inglarerra), nos EUA, em Genebra (Suíça), e visitou vários lugares no mundo. A partir da sua atuação no Conselho Mundial das Igrejas, do qual se tornou Consultor Especial no Departamento de Educação, Paulo Freire “andarilhou” pela África, Ásia e mesmo Oceania, mas seus passos no coração do mundo, o Continente Africano, marcam a libertação de alguns destes povos.
Sua movimentação já na América Latina estava ligada aos processos políticos de seu tempo, tendo sido praticamente escoltado pelo próprio embaixador da Bolívia para La Paz, em meio à resistência dos primeiros meses contra a ditadura que se instalava em 64. Asilado político no Chile, Freire já começava a exportar sua pedagogia libertadora, em contribuição constante com os órgãos de educação e de desenvolvimento agrário daquele país. Assim como a espada de Bolívar, que caminhou pela América Latina, o lápis e papel, o quadro e giz de Freire também caminham pelo continente iluminando experiências revolucionárias em nome da emancipação dos povos a partir do saber.
O amplo processo cultural e educativo de erradicação do analfabetismo no bojo da Revolução Sandinista, na Nicarágua, e uma imensidão de outros exemplos históricos colocam em marcha o legado de Paulo Freire de uma Pedagogia do Oprimido. O pensamento freireano foi influenciador direto da Cruzada Nacional de Alfabetização, que segundo ele mesmo “além de obter êxitos estatísticos impressionantes na redução do analfabetismo, se constituiu num grande movimento de mobilização e de educação, tanto dos alfabetizandos como dos alfabetizadores que juntos cresceram na leitura da realidade nicaraguense”- texto extraído do livro Pedagogia do Compromisso (2008).
A Educação Popular Crítica praticada por milhares e milhares de educadores-educandos desde a Nicarágua sandinista aos rincões mais diversos da América Latina é marcada pelo engajamento em mobilizações nacionalistas e libertárias, centradas no direito do povo e na soberania popular.
Paulo Freire se torna um dos mais proeminentes pensadores do Sul epistemológico, colocando-o em perspectiva global. Na Ásia, vemos confluências com o pensamento de Ambedkar, de acordo com a facilitadora de Teatro do Oprimido da Índia, Arundathi V. Ela conta que B. R. Ambedkar confrontou o sistema de castas da Índia a partir da “perspectiva do Oprimido”. “Assim como Freire, Ambedkar encontra naqueles que mais sofrem as opressões e exploração a maior força de libertação”, explica Arundathi.
O encontro potente de Paulo Freire com o Continente Africano
A partir do Conselho Mundial das Igrejas, Freire teve atuação principalmente com as realidades de países de língua portuguesa: Angola, Cabo Verde e, em maior grau, Guiné-Bissau. Mas esteve em contato também com Gabão, Tanzânia, Quênia, Senegal, Botswana e Zâmbia. É o que explica Vivian Valério, pesquisadora em África e questões raciais, vinculada ao programa de Economia Política Mundial da Universidade Federal do ABC (UFABC).
“Paulo Freire influencia, afeta e é muito afetado por todas estas relações. Em relação à Guiné Bissau, Freire se depara com Amílcar Cabral. Ele explora bastante do que Cabral tem a ensinar e obtém uma outra leitura, por exemplo, de Gramsci. Assim, ele passa a remodelar, reelaborar, revisar uma série de conceitos a partir dessas experiências que ele está tendo”, aponta Vivian. No que toca o processo de alfabetização e educação contextualizada, Freire passa, em sua Pedagogia do Trabalho, a transversalizar as perspectivas histórico-políticas nos temas geradores para o letramento. “Trazer a Alimentação a partir da Saúde, a Produção a partir do Trabalho, como lemos em seus relatos nas ‘Cartas à Guiné-Bissau’”, explica.
Segundo Vivian, Paulo Freire constrói pontes com Julius Nyerere (líderança da Tanzânia) e chega a relatar que Samora Machel (líder moçambicano) é um de seus mestres, assim como Amílcar Cabral. “É só abrir as páginas de um dos livros mais importantes do pensamento de Freire, Pedagogia da Autonomia, para ver que é inteiro dedicado a Frantz Fanon [intelectual crítico do racismo colonial]”, relata a pesquisadora, em referência a este intercâmbio intelectual e político entre Freire e pensadores da descolonização no Continente Africano. Ela ressalta que, a exemplo da Guiné-Bissau, o encontro de Paulo Freire com estes países se dá justamente no momento pós-libertação nacional e reconstrução e que para eles “a alfabetização era vista como uma segunda libertação”, conclui.
Os passos seguem… Campanha de Alfabetização do MST na Zâmbia projeta Paulo Freire e a libertação
A Campanha de Alfabetização e Agroecologia Fred M´mbembe é uma realização do Movimento Sem Terra (MST) em parceria com o Partido Socialista da Zâmbia (Socialist Party), visando transformar a realidade de um país com índices de mais de 55% de analfabetismo na língua oficial, o inglês (em que pese a existência de mais de 70 dialetos regionais). A Campanha atua em todo território nacional da Zâmbia, dando prioridade para regiões com índices críticos de analfabetismo, em torno de 47,3% da população, como Província de Western, North West e Luapula.
A Brigada Internacionalista do MST Samora Machel coordena trabalhos no Continente Africano desde 2008, tendo atuado ainda em Moçambique, Gana, Zimbábue e África do Sul e deu início à Campanha no território zambiano desde novembro de 2020, tomando todos os cuidados relativos à pandemia de Covid-19. Paula França, coordenadora da Brigada, relata que, a partir da perspectiva teórico-prática de Paulo Freire, a Campanha aponta na direção de um povo com mais acesso a direitos (que eventualmente depende da leitura na língua oficial) e com menos desigualdades, como o emblemático abismo entre homens e mulheres.
O diálogo como fundamento da educação libertadora tem sido experienciado pelas e pelos militantes internacionalistas do MST que estão na Zâmbia. “Paulo Freire tinha como essência a educação como prática da liberdade e mais uma vez seu pensamento se consolida no duplo caminho, tanto nós estamos socializando as nossas experiências e nosso conhecimento que acumulamos a partir das vivências de alfabetização no Brasil e América Latina, como estamos aprendendo muito a realidade da Zâmbia e do povo africano”, relata Paula França.
Nos pés do povo Sem Terra em aliança com os povos africanos, os passos das experiências de educação para a liberdade referenciados em Paulo Freire continuam seu caminho histórico, transformando vidas e anunciando um mundo de emancipação. “Para nós que estamos cumprindo uma tarefa internacionalista, poder coordenar uma Campanha que tem como base teórica o pensamento de Paulo Freire está sendo muito importante. Para nós, tem um link, uma ligação direta e está sendo um motivo de muita alegria. Tem fortalecido muito nosso espírito de luta internacionalista, essa concepção freireana de Pedagogia Libertadora”, transmite Paula França.
*Editado por Fernanda Alcântara