Memória
A alucinação atemporal de Belchior
Por Danilo Nunes*
Para Página do MST
Nos aproximamos do mês de junho, e se fosse possível viajar ao passado através de uma máquina do tempo até o mesmo mês, mas quarenta e cinco anos antes, estaríamos diante de um lançamento que marcaria a música popular brasileira. Estou me referindo ao disco Alucinação do cearense Antônio Carlos Belchior (ou somente Belchior, como é conhecido por todas, todos e todes nós até hoje), lançado em junho de 1976.
Alucinação é o segundo álbum de estúdio do cantor e compositor Belchior, que foi lançado pela gravadora Polygram por meio do selo Philips que depois se tornou Universal Music.
Estávamos numa época onde os selos e as gravadoras davam a linha e detinham o poder do mercado musical no Brasil, o que hoje em dia, devido a globalização e a intensificação do uso e acesso às novas ferramentas de comunicação tecnológicas, perderam muito espaço no show business e no mercado, gerando novas formas e contratos de trabalho no meio artístico, deixando em evidência para a população, os trabalhos e selos independentes.
Na década de 70, além de Belchior, artistas como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Elis Regina, Milton Nascimento, entre tantas e tantos outros (as), criavam suas composições no efervescente cenário, onde a criação e diálogo eram intensos dentro da cena musical que se apresentava na época. Festivais, discos, espaços noturnos onde os artistas se encontram e compartilham suas ideias, eram formas rotineiras que geraram pérolas da música brasileira que até hoje, escutamos e levamos como referência.
Nesse cenário, o cearense Belchior assume com sua identidade e seu jeito de abordar temas como política, amor e juventude, um lugar de destaque principalmente dentro da juventude e dos movimentos engajados de esquerda, que enxergavam e enxergam em sua obra a liberdade dos cabelos ao vento e do ser desprendido e desapegado, mas apaixonado pela vida.
O álbum Alucinação traz mensagens e ideias compatíveis a tudo o que o artista dizia, muitas vezes como o próprio autorretrato de sua pessoa, destilando rebeldia, canto torto, melodias afiadas e mensagens cortantes como uma navalha despindo a pele de um sistema conservador e hipócrita.
A capa do disco, feita a partir de uma foto do fotógrafo Januário Garcia que fotografou o artista de um ângulo, fazendo transparecer o sentido de liberdade, foi trabalhada a partir da técnica de solarização, também conhecida como Efeito Sabattier. Essa técnica fotográfica desenvolvida pelo o francês Armand Sabattier em 1862, consiste na inversão dos valores tonais de algumas áreas da imagem fotográfica. O efeito era obtido através da rápida exposição à luz da imagem durante seu processamento.
O disco produzido por Marco Mazzola vendeu 30 mil cópias no primeiro mês, sendo contabilizado no total de vendas 500 mil cópias, o que hoje com as novas formas culturais e costumes, encontramos grande dificuldade para vender um único disco. Na época eram os discos, adquiridos por seus consumidores que corriam por todo o mundo. Existia uma preocupação, um cuidado desde a capa e do encarte até o vinil. Tudo isso fazia parte da obra, complementando o que era o carro chefe do produto: A música.
Bem, vamos retornar aos comentários sobre Alucinação. Primeiramente precisamos citar aqui que três canções que já haviam consagrado Belchior e compuseram o repertório do disco: Como nossos Pais, Apenas um Rapaz Latino Americano e Velha Roupa Colorida, o que contribuiu para a “alucinante” venda no primeiro mês da 30 mil cópias. O artista recebeu críticas por parte da imprensa como também muitos elogios, reconhecendo o trabalho como um diamante da música brasileira. E realmente é, pois assim como o disco, Belchior se tornou atemporal, escutado e reconhecido por tantas gerações que vieram depois. Canções como À Palo Seco, Sujeito de Sorte, Antes do Fim, entre outras, fizeram com que o disco se tornasse uma grande referência. Mas em Alucinação, canção que dá título ao trabalho, o artista canta o que vê, o que pensa, o que sente, como uma alucinação.
Em 1977, em entrevista à Revista Pop, Belchior falou sobre o título Alucinação, dado ao disco: “Viver é mais importante do que pensar sobre a vida. É uma forma de delírio absoluto, entende?”
O artista não deixava de fazer referência ao golpe militar e ao AI-5 de 1968, lembrando o que viveu como a censura, a privação da liberdade de expressão e o exílio. Aliás, o próprio Belchior se autoexilou por diversas vezes em sua vida, transitando por alguns dos países da América Latina e adquirindo cada vez mais experiência e vivência, além de compreender a necessidade da integração social, política e econômica latinoamericana.
Como disse no início deste artigo, a questão da máquina do tempo que tanto ansiamos, foi resolvida. Com as novas ferramentas de divulgação e comunicação, passamos a ter acesso a diversos discos e canções, assim sendo, o disco Alucinação de Belchior se encontra (na íntegra) na web, onde pode ser ouvido e apreciado.
Além disso, muitos(as) intérpretes e cantores(as), (re)gravaram obras de Belchior, dando novas leituras e identidades ao belo trabalho. Uma das últimas notícias sobre a obra do artista está relacionada à artista, cantora e compositora com destaque na nova geração da música brasileira Ana Cañas.
No período de isolamento social que estamos vivendo devido à pandemia da Covid-19, que vai se arrastando cada vez mais por conta da falta de responsabilidade e insanidade política, social e sanitária do governo federal, muitos(as) artistas passaram, além de utilizar (intensamente) as novas ferramentas de comunicação na web, a experimentar exaustivos processos de criação devido às ideias poéticas que os(as) arrebatam a todo instante.
Esse é o caso da cantora Ana Cañas, dona de uma das mais belas vozes da música brasileira na atualidade e artista de uma criatividade única. Ana, a partir de uma live onde interpretou canções de Belchior, foi acionada por uma grande parte do seu público que sugeriu à cantora que registrasse num álbum, as canções do artista dentro da sua leitura e interpretação.
Assim a artista iniciou um processo de financiamento coletivo que levou o público, além de se engajar intensamente no processo, contribuir para que ele pudesse sair das ideias e se tornar realidade.
Ana acaba de lançar o primeiro single desse trabalho, junto com um videoclipe de delicadeza inigualável repleto de simbologia e cenas poéticas. A canção escolhida por Ana para ser a primeira do trabalho foi Coração Selvagem.
O clipe dirigido por Ariela Bueno traz cenas poéticas e envolventes da cantora com o ator Lee Taylor que, interagem a cada verso da canção por meio dos seus corpos em movimento, numa espécie de dança cênica. O corpo da cantora e do ator são explorados (artisticamente) nos envolvendo com diversas possibilidades individuais e ao mesmo tempo unificando-os, fazendo-nos ver através das imagens criadas como apenas um único corpo toda a poética da canção.
A pulsação do clipe bate em sintonia com a excelente (re)leitura da música, potencializando as personagens e a forte mensagem que tem a obra, assim como todas as composições geniais de Belchior.
Belchior é e sempre será um artista atemporal e continuará influenciando diversas gerações que ainda chegarão. Por meio de suas canções (hoje acessíveis através da internet) e/ou por meio de artistas como Ana Cañas que com seu talento e capacidade poética, fazem suas versões nos presenteando com obras primas de indubitável qualidade é que Belchior e seu universo alucinante e selvagem viverão eternamente entre nós.
Para conferir mais sobre o clipe de Ana Cañas, acompanhe no domingo dia 6 de junho um papo com a cantora na página da Sacada Cultural BR TV, no youtube a partir de 20 horas.
Deixo aqui para que todas, todos e todes nós possamos apreciar, o link para o disco Alucinação de Belchior na íntegra e também o link para o clipe de Ana Cañas da música Coração Selvagem de Belchior.
*Danilo Nunes é músico, ator, historiador e pesquisador de Cultura Popular Brasileira e Latinoamericana. Instagram: @danilonunes013/Facebook: @danilonunesbr
**Editado por Solange Engelmann