Nota de Pesar
Morre Adauto Scardoelli, o prefeito que decretou a desapropriação municipal para Reforma Agrária
Com muita dor o MST recebeu a notícia do falecimento de Adauto Scardoelli na noite desta última sexta-feira (4/6). Ele foi prefeito em Matão, no interior de São Paulo, por três mandatos e estava exercendo seu quarto mandato na cidade. Faleceu aos 67 anos, depois de 30 dias de internação, lutando contra vários problemas de saúde. Estendemos em especial a toda família nossa solidariedade e desejo de conforto por esse grande pesar.
Para o MST, Adauto estará para sempre na nossa história, especialmente para as famílias que integraram o Acampamento Dom Hélder Câmara, que teve uma passagem rápida de apenas três meses, mas extremamente marcante no município de Matão. Após meses de trabalho de base em Ribeirão Preto, Araraquara, Jaboticabal e toda região, cerca de 400 famílias Sem Terra ocuparam, em 19 de dezembro de 2000, a fazenda Bocaina, sede da antiga Usina Chimbó, grande devedora da União e do Estado por sonegação de impostos. A ocupação de Matão motivou centenas de trabalhadores rurais que, mesmo com o fim da safra da colheita da cana-de-açúcar, ainda não haviam recebido seus salários e temiam passar o Natal nos alojamentos precários, longe das suas famílias.
A ocupação foi bem perto do Natal, e em cerca de dez dias o acampamento cresceu para 1.200 famílias, constituindo 32 núcleos de base. E foi dessa maneira que as famílias passaram seu fim de ano: em comunhão na terra ocupada, cheias de esperanças de uma vida com trabalho, moradia, comida e renda. Desta celebração ecumênica fez parte a grande Irmã Alberta, que visitou barraco a barraco daquela imensa ocupação.
Essa esperança certamente foi alimentada por uma atitude inusitada do então prefeito Adauto, que além de suprir o acampamento com elementos básicos como água potável e assistência em saúde, decretou a desapropriação por interesse social de 25 hectares dentro dos 1900 hectares da fazenda ocupada. Ele anunciou isso em audiência com a juíza local no dia que vencia a reintegração de posse, como medida preventiva para evitar um conflito fundiário. Numa cidade dominada pelo agronegócio, a atitude do prefeito foi muito corajosa e o decreto, tempos depois, foi derrubado, mas sem dúvida, entrou para a história.
Outro destaque da ousadia de Adauto foi a criação da Escola Itinerante dentro do acampamento, como extensão da Escola Municipal Adelino Bordignon. Sob a liderança do secretário de educação Alexandre Freitas, o acampamento comemorou a chegada dos bancos para a tenda que abrigava nossa escola, que recebeu figuras ilustres como Chico César (que gravou no local o clipe da música Pensar em Você).
Adauto esteve em todos os momentos marcantes daquele acampamento, como a missa presidida por Dom Joviano de Lima Júnior, bispo da Diocese de São Carlos, que não exitou em colocar o boné do MST e cortou com um alicate uma cerca de arame da propriedade ocupada pelo Movimento, num ato simbólico. Também recebeu o cineasta Renato Tapajós que gravou um filme no local, tendo os acampados e acampadas como protagonistas. Neste episódio foi rememorado o massacre de Eldorado de Carajás, ocorrido em abril de 1996.
Desta história participaram vários companheiros e companheiras: padre Chico Vaneron de Ribeirão Preto, vereador Nascimento, o hoje prefeito de Araraquara Edinho Silva, a então prefeita de Jaboticabal Carlota, os companheiros Cidinho, Tião, Albano, Alexandre, de Matão e tantos outros camaradas que foram valentes na luta pela Reforma Agrária.
O prefeito que amava o povo participou de vários programas da Rádio Poste que funcionava no acampamento, sempre reafirmando seu compromisso com a melhoria das condições de vida dos trabalhadores e trabalhadoras rurais.
Após três meses, o acampamento teve que se deslocar para região de Barretos, em busca do sonho da Reforma Agrária, que só foi concretizada muitos anos depois, no assentamento Sepé Tiarajú, entre os municípios de Serrana e Serra Azul.
Naqueles 90 dias as famílias renovaram seus sonhos, muitos deles iniciados na sede do Sindicato dos Metalúrgicos de Matão, que abrigou assembleias animadas e empolgantes, nas quais os olhos dos trabalhadores e trabalhadoras brilhavam de esperança. Foram esses olhares que iluminaram a madrugada quente daquele dezembro de 1999, onde mais um latifúndio foi rasgado pelo trilheiro de várias formiguinhas que pisaram ligeiro e se agigantaram num grande formigueiro.
Obrigada Adauto, você faz parte da nossa história sonhada coletivamente. Voe alto, pois você é um dos pássaros ousados, destes que semeiam florestas em meio ao desafio do fogo, que amedronta, mas não impede o voo dos que são guiados por uma missão coletiva.
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST
São Paulo, 5 de junho de 2021