Internacionalismo
Haiti: referendo constitucional ou tentativa de golpe institucional?
Por Oscar A. Martinez*
Da Página do MST
Em 7 de fevereiro deste ano, o mandato do Presidente da República do Haiti, Jovenel Moise, terminou constitucionalmente. Desde aquele dia e até o momento, o país caribenho é governado de fato por um grupo de civis, políticos, advogados, empresários, policiais, latifundiários e gangues criminosas, todos esses grupos liderados por Jovenel Moise e a PHTK, festa que reúne todos esses setores citados.
A gestão atual disfarçada de divergências no texto constitucional e a convocação do governo de fato a um Referendo Constitucional, que não contou com o apoio de nenhum setor da oposição política até o momento, nem do povo haitiano em geral.
Em 2016 foram as eleições presidenciais (denunciadas como faudulentas na altura) onde Jovenel Moise é o vencedor com pouco mais de 500 mil votos num país com mais de 11 milhões de habitantes. Devido à instabilidade política e social daquele ano, Jovenel Moise só assumiu formalmente a liderança do país em fevereiro de 2017, embora também já governasse desde 2016 por decretos, prática que continua até hoje.
E é, neste ponto, que embasa seu argumento de que ainda lhe resta um ano de mandato, ignorando o texto constitucional que marca claramente o início de sua gestão no dia da comunicação oficial dos resultados e estabelece um regime constitucional duração do mandato Presidencial de 5 anos.
Com a Assembleia da República e o Senado inoperantes, a não renovação de um terço deles devido à suspensão das eleições em 2018, regidas por decretos, com 6 (seis) mudanças de Primeiro-Ministro em 4 anos, presunções e renúncias em tempos cada tempos mais curtos em seus Ministérios e em seu Gabinete, com a renúncia de membros do Supremo Tribunal Federal, com a eleição de um Conselho Eleitoral pela mão, com aumento dos níveis de desemprego e pobreza, em meio à violência nas ruas com aumento de homicídios e sequestros, mesmo assim, Jovenel Moise quer seguir em frente com seu projeto de mudança na Constituição haitiana.
Tem o endosso explícito dos Estados Unidos, das agências competentes da ONU neste, o endosso quase impenitente do Grupo Central (que é composto por representantes das Nações Unidas, da União Europeia e da Organização dos Estados Americanos, bem como da embaixadas da Alemanha, Brasil, Canadá, França, Estados Unidos e Espanha), o acompanhamento de algumas igrejas evangélicas e o lamentável silêncio cúmplice e doloroso da comunidade internacional, salvo raras exceções.
Também desde 7 de fevereiro, o povo haitiano, suas organizações civis, políticas e sociais estão em permanente mobilização. Mobilizações massivas que paralisam o país e que sofrem duras repressões do governo de fato, repressões levadas a cabo por forças estatais e paraestatais.
A atual elite dirigente em seu desejo de continuar no poder insiste em querer mudar a Constituição, fracassada na primeira convocação de um referendo constitucional em 25 de abril devido a massivas mobilizações populares, insistiu, novamente, com uma nova data para o próximo dia 27 de junho.
E novamente teve que anunciar um novo adiamento do mesmo em data a ser determinada, argumentando o aumento de casos da Covid-19, comunicado este realizado no dia 07 de junho de 2021 pelo Conselho Eleitoral Provisório (CEP), sem citar que o principal motivo são as enormes mobilizações e protestos que assolaram o país nas últimas semanas. Paralelamente, anuncia uma nova convocação para as eleições presidenciais gerais, legislativas e locais para setembro.
A minuta do novo texto constitucional foi redigida por uma Comissão Especial nomeada pelo próprio Jovenel, sem a participação de nenhum setor importante da sociedade haitiana. A proposta já agrega o repúdio e a rejeição da oposição política, da sociedade civil, até mesmo da Igreja Católica, que realizou pronunciamento de não apoio ao referendo constitucional. Ninguém além da elite que hoje governa de fato o país apóia esta iniciativa.
No novo texto, seria eliminada a figura do Primeiro-Ministro, que seria trocado por um Vice-Presidente e retirado o atual poder detido por esse cargo, o Senado seria totalmente eliminado por uma única Unicameral, seria dada autoimunidade à figura presidencial vitalícia. Também permitiria a reeleição indefinida (hoje a constituição haitiana só permite um mandato), legalizaria as desapropriações de terras camponesas em favor de latifundiários e fazendeiros e uma série de mudanças estruturais que não são conhecidas além alguns transcenderam; E para finalizar, o texto está disponível apenas em plataformas web e em francês, em um país onde a língua falada pela grande maioria é o crioulo haitiano e onde o acesso à Internet não atinge grande parte de sua população, nem de seu território.
Todos esses elementos e certamente muitos mais prenunciam uma perigosa tentativa de legitimação institucional de toda uma elite do país, cujos laços com a corrupção e as gangues criminosas são profundamente suspeitos. Caso se concretize, será um golpe mortal para a já abalada democracia do país. Não é por acaso que essas mesmas gangues são as que em mais de uma ocasião atacaram e atacam todas as manifestações contra o governo de fato, e onde a polícia desapareceu misteriosamente do local ou chegou horas depois dos acontecimentos. Uma vil tentativa de legitimar a corrupção e com ela toda uma elite.
O povo haitiano luta, de forma desigual e desproporcional, mas mantém a mobilização popular. Eles já conseguiram derrubar a realização do referendo duas vezes, não sem o custo de vidas humanas.
É uma tentativa heróica de um povo que luta contra um governo de facto, uma tentativa que a comunidade internacional ignora, devido a interesses mesquinhos em alguns casos, preguiça em outros e desinformação maliciosa na maioria deles.
As próximas semanas e meses dirão se um golpe institucional adaptado ao poder dos poderosos está consolidado no Haiti ou se o povo haitiano continuará lutando e resistindo como fazia há mais de 200 anos, com o sonho intacto de devolver seu país em seus pés.
Haiti, junho de 2021.
*Integrante da Brigada Internacionalista Jean Jaques Dessalines no Haiti.
**Editado por Fernanda Alcântara