Situação Haiti
O assassinato de Moïse e a política dos rios problemáticos
Por Lautaro Rivara de Porto Príncipe
Para Página do MST
O que está acontecendo no Haiti? Quais são os fatos conhecidos? Em que contexto ocorreu o assassinato de Jovenel Moïse? Quais as hipóteses e possíveis rumos de ação? Existe a possibilidade de uma normalização democrática? Ou de uma intervenção internacional? Quem são os vencedores desta autêntica política de águas turbulentas?
Os fatos, além da crônica vermelha
Vinte e quatro horas após o assassinato do presidente de facto do Haiti, Jovenel Moïse, foi tornado público, o que sabemos com certeza é, na verdade, muito pouco. Um comunicado oficial conciso assinado por Claude Joseph e duas coletivas de imprensa igualmente concisas realizadas em crioulo são tudo o que temos de fontes oficiais. Sem ainda ter à nossa disposição provas para validar ou refutar a versão estadual, podemos, em qualquer caso, resumi-la da seguinte forma:
– Moïse e sua esposa, a primeira-dama, foram atacados por um “grupo de comando” em sua casa particular em Pelerin, na madrugada do dia 7 de julho;
– Os atacantes fugiram da segurança presidencial ao se apresentarem como agentes da DEA (administração de fiscalização de drogas, EUA) e, de acordo com nota oficial do primeiro ministro Claude Joseph, o grupo falava em espanhol;
– O presidente morreu imediatamente, enquanto a situação da primeira dama, esta foi transferida para Miami, Estados Unidos, na manhã do dia 07/julho e seu estado de saúde não está sendo divulgado;
– As investigações realizadas pela polícia nacional, apontam que no total, o grupo que assassinou o presidente Jovenel é composto por 26 colombianos, todos ex-militares, e dois haitianos-americanos. Durante os dias 07 e 08/07 a polícia nacional e a polícia de Porto Príncipe, fizeram buscas aos possíveis suspeitos, entrando em confronto com os mesmos, resultando na morte de sete dos envolvidos no magnicídio – assassinato de uma celebridade, captura de 15 pessoas sendo 13 de nacionalidade colombiana e dias de pessoas haitianos-americanos. Além disso, três oficiais foram feridos e agora estão fora de perigo.
– Frente ao vácuo de poder, o Primeiro Ministro de fato Claude Joseph proclamou-se presidente interino, assumiu o controle das forças armadas e da polícia, e convocou um Conselho de Ministros de emergência. Além de confirmar a manutenção das eleições e referendo para o mês de setembro de 2021;
– Este Conselho decretou um estado de sítio de 15 dias em todo território nacional e, entre outras medidas, fechou o aeroporto internacional Toussaint L’Ouverture. Porém, após a captura de parte do grupo envolvido no assassinato do presidente, o primeiro ministro Claude Joseph, em coletiva na tarde do dia 08/07, informou que em 48 horas o aeroporto será aberto bem como o comércio (feiras, supermercados, etc.).
Moïse, devorado por seus próprios demônios?
É importante apresentar um breve contexto e caracterização sucinta de Moïse, antes da tentação pós-morte de erguê-lo como um mártir de causas que lhe eram, em vida, absolutamente estranhas. Moïse tornou-se presidente da República como representante do Partido Haitiano dos Cabeças Rapadas (PHTK), uma formação política ultra-direita e ultra-neoliberal, representante dos setores residuais do Duvalierismo ainda presentes dentro das classes dirigentes haitianas. De fato, seu mentor e fundador, patrocinado pelos Estados Unidos e pelo Grupo Central, o ex-presidente Michel Martelly, iniciou sua “carreira política” como paramilitar no pagamento da ditadura hereditária vitalícia de François e Jean-Claude Duvalier. Diferentes membros deste regime que assolou o país entre 1957 e 1986 ocuparam, através dos governos de Martelly e Moïse, posições políticas, diplomáticas, legislativas e ministeriais.
Moïse foi ungido como sucessor de Martelly porque era uma espécie de forasteiro da classe política, em uma manobra recorrente utilizada pelos mais variados direitistas latinoamericanos. Seu “capital” foi acumulado como expoente de uma suposta oligarquia modernizadora, e seu carro-chefe para chegar à política foi o projeto de desenvolvimento de zonas francas agrícolas orientadas à exportação com base no noroeste do país, particularmente através de sua empresa AGRITRANS S.A., erigida sobre a desapropriação bajuladora de milhares de hectares de propriedade comunal e camponesa.
As eleições que o consagraram presidente em 2015 foram caracterizadas por fraude maciça, o que implicou, após quase um ano de conflito e interinidade, a realização de novas eleições que também seriam contestadas como fraudulentas por diferentes atores nacionais e observadores internacionais, mas que, no entanto, seriam validadas pelas Nações Unidas e pela Organização dos Estados Americanos (OEA), organizadores e financiadores quase exclusivos do próprio ato eleitoral. A participação dos cidadãos, naquela época, era de apenas 18% dos votos, refletindo a desilusão e a descrença da população como um todo.
Uma vez iniciado seu governo, Moïse rapidamente começará a enfrentar a oposição das classes populares, dos setores médios e até mesmo de algumas frações da burguesia local. O aprofundamento das políticas neoliberais degradaria rapidamente a situação econômica do país, tendo como ponto de não retorno a “recomendação” do Fundo Monetário Internacional (FMI) de eliminar os subsídios ao combustível, que catapultou em julho de 2018 dois milhões de pessoas para as ruas do país. A isto se somaria um desvio de fundos públicos multimilionários equivalente a pelo menos um quarto do Produto Interno Bruto (PIB) nacional, de acordo com investigações do Senado e do Tribunal Superior de Contas. O próprio Moïse, suas empresas e uma dúzia de seus mais altos funcionários estão supostamente implicados.
Diante desse processo de remobilização popular que começou a exigir sua demissão, Moïse começaria a passar por uma grande deriva autoritária que temos analisado e documentado nos últimos anos, o que inclui o fechamento do Parlamento, a intervenção do judiciário e a nomeação de magistrados viciados, o governo por decreto, o assassinato de jornalistas e opositores, a realização de massacres em bairros populares da capital, a criação de uma espécie de polícia política conhecida como “Agência Nacional de Inteligência”, a não realização das eleições previstas pela carta magna, a tentativa de modificação ilegal da atual constituição e, desde 7 de fevereiro deste ano, a permanência no poder uma vez expirado seu mandato constitucional.
Nos últimos anos, têm havido evidências crescentes da conivência de Moïse e da PHTK com o crime organizado e gangues armadas, de acordo com investigações e denúncias de organizações de direitos humanos como a Rede Nacional de Defesa dos Direitos Humanos no Haiti (RNDDH) e a Fundação Je Klere. Gangues que, vale ressaltar, cresceram exponencialmente coincidindo com o ciclo de remobilização popular, no que analisamos como uma espécie de “solução paramilitar” para o problema colocado ao estabelecimento em uma área tão estratégica como a Bacia do Caribe. De fato, uma das primeiras hipóteses, que circulou profusamente pelo país ontem, foi que um desses grupos, treinado, armado e financiado contra o próprio poder político, e que ganhou em autonomia e capacidade operacional, poderia ter vindo a devorar um de seus progenitores.
Em nível internacional, e em particular desde 2019, Moïse fortaleceria seus laços com os Estados Unidos e a administração Trump, tornando-se um lobista dos interesses americanos em organizações regionais como a OEA, reconhecendo o autoproclamado Juan Guaidó como “encarregado” do presidente da Venezuela, abandonando a plataforma de energia Petrocaribe, torpedeando espaços de integração regional como o CARICOM e expressando apoio e simpatia por vários regimes neoliberais e paramilitares no continente. Isto lhe daria uma espécie de cartão de imunidade, e garantiria sua proteção internacional.
Gendarmes da paz?
O ciclo de remobilização começou a crescer novamente há vários meses, principalmente devido à eficácia da combinação explosiva das quadrilhas armadas, aos massacres -13 nos últimos três anos -, à política de sequestros, ao tráfico de armas para os bairros pobres – mais de 500.000 em circulação -, aos confrontos entre grupos armados rivais e deslocados – mais de 17.000 no último mês -, bem como aos assassinatos seletivos – em 30 de junho, 19.000 foram mortos no último mês, os confrontos entre grupos armados rivais e deslocados – mais de 17.000 no último mês -, bem como os assassinatos seletivos – em 30 de junho, 19 pessoas foram assassinadas em Porto Príncipe, entre elas uma jornalista e uma militante feminista da oposição.
Há algum tempo, temos analisado o possível recurso a duas formas alternativas de resolver a crise haitiana “de cima”, a explicada “de baixo” pela incapacidade do Estado e da classe política de gerar o menor consenso social em torno de um dos mais desiguais e injustos projetos sociais do planeta, cujos números terríveis não vamos nos deter aqui. Estas são as duas estratégias utilizadas pela oligarquia haitiana, a burguesia importadora e seus parceiros transnacionais durante pelo menos o século passado: o recurso a ditaduras “nacionais”, sejam elas do tipo militar como a do general Raoul Cédras, ou do tipo paramilitar como a do clã Duvalier. Ou recurso às ocupações internacionais, desde a ocupação americana de 1915-1934 até os 15 anos das missões militares multilaterais de “pacificação e justiça” das Nações Unidas, que invadiram o país entre 2004 e 2009 através da MINUSTAH e da MINUJUSTH.
Já desde 2018 e 2019, várias viagens públicas e clandestinas de autoridades estaduais e apoiadores políticos da oposição conservadora têm sido realizadas assiduamente aos Estados Unidos para negociar, alternativamente, o apoio a uma dessas “soluções”. Essas soluções envolvem invariavelmente o apoio técnico, político, econômico e de armamento dos Estados Unidos.
Os elementos catalisadores da crise se aceleraram com a chegada ao poder do Partido Democrata, uma vez que algumas de suas frações internas começaram a pressionar por algum tipo de pseudo normalização institucional no país de seu fiel, mas desconfortável aliado. Isto, dada a dificuldade de explicar a seus setores mais “progressistas” por que apoiou um governo que não realizou eleições, que governou por decreto, que fechou o parlamento, que deslocou e prendeu juízes, que criou por decreto uma polícia política, que assassinou opositores políticos e tolerou massacres repetidos.
Daí a proposta de um calendário eleitoral maratona, cuja compulsão enfrentou, à medida que a data de sua concretização se aproximava, as provas irrecorríveis de que Moïse não era capaz de garantir as condições mínimas de segurança, paz e harmonia para realizar algum tipo de eleição, o que poderia facilmente abrir a caixa do pandora, “desamarrar” o ciclo de mobilização popular e colocar milhões de pessoas de volta às ruas. Entretanto, o que ninguém poderia prever, é que o cenário das classes dirigentes escolhendo algum tipo destas “soluções” – ditadura ou ocupação -, seria precipitado desta forma com um assassinato e seu consequente vácuo de poder.
Neste contexto, não devemos nos surpreender com as mais recentes declarações de alguns chefes de estado do hemisfério. Do próprio Biden, que disse estar “pronto para vir em auxílio ao Haiti” – uma frase que só pode causar consternação no país – à declaração muito mais intemperada do presidente colombiano Ivan Duque, que instou a OEA a intervir com uma missão no Haiti com urgência para “garantir a estabilidade democrática e institucional”, que o presidente não pode garantir em seu próprio país. Assim também podemos explicar a reunião de Claude Joseph com o Core Group, um órgão ad hoc que reúne a OEA, a Organização das Nações Unidas (ONU), a União Europeia (UE) e as embaixadas dos EUA, Canadá, Brasil e várias nações europeias, ou seja, todos os atores com interesses políticos, econômicos e geoestratégicos no país. Ou o mesmo vale para a conversa com o Secretário de Estado americano, Antony Blinken, realizada nesta quinta-feira, (08/07).
É necessário mencionar que estes são os mesmos atores internacionais que sustentaram o governo de fato de Moïse, apesar da rápida decomposição social e econômica do país, e apesar da mais completa ruptura da ordem democrática. Os mesmos indutores do caos organizado nesta autêntica política de águas agitadas são os que agora fingem resolver a crise de forma pretoriana, apresentando-se como garantes da ordem e da democracia. Não seria estranho se começássemos a ouvir, mais uma vez, conceitos tão antigos como o arsenal conceitual colonialista, como o “intervencionismo humanitário”, a “responsabilidade de proteger”, a “não-indiferença”, as “ameaças incomuns e extraordinárias” ou o perigo para a “segurança nacional dos Estados Unidos”.
Uma transição, mas para onde?
Como sugerimos, a crise política no Haiti não começou com o assassinato de Moïse, mesmo que sua morte o leve a um novo ponto de talvez não retorno. A ruptura da ordem democrática implica que não existem atores legalmente constituídos capazes de assumir uma transição legítima, a menos que sejam construídos grandes acordos sociais e políticos, algo que a oligarquia, a burguesia importadora e os EUA não parecem dispostos a fazer. O caso de Claude Joseph é eloquente, autoproclamado agora como presidente interino, evocando o artigo 149 da Constituição. Deve-se mencionar que ele é um primeiro-ministro de fato, escolhido unilateralmente por Moïse, não ratificado – como exige a Carta Magna – por um Parlamento que de fato não existe. Ele é até mesmo um ex-primeiro-ministro de fato, dado que dias antes da morte de Moïse ele havia nomeado um sucessor de Joseph, o advogado Ariel Henry, agora praticamente deslocado da cena pública. Aquele que poderia ter assumido uma sucessão legal foi o presidente do Tribunal de Cassação, René Sylvestre, mas ele morreu há algumas semanas de coronavírus.
Diante deste vácuo de poder, e diante da dupla margem das políticas de choque, parece que somente o reaparecimento do fator mobilizador poderia influenciar uma resolução que não seria ainda mais regressiva. As forças nacionais, populares e democráticas ganharam em capacidade de articulação, geraram espaços unitários como a Frente Patriótica Popular, desenvolveram programas e linhas tímidas de ação, mas ainda são fracas em organização, e sua capacidade de incidência é escassa sem a presença de pessoas nas ruas. Somente seu reaparecimento e a construção de algo como um cerco de visibilidade e solidariedade com o Haiti podem impedir que o país seja novamente esmagado por uma longa ditadura militar ou por uma ocupação internacional desastrosa.
*Editado por Solange Engelmann