Reforma Agrária Popular
O que é o Programa de Reforma Agrária Popular do MST?
Da Página do MST
O Brasil é um dos países com maior concentração de terras do mundo e onde estão os maiores latifúndios. Essa concentração passou a existir desde o período colonial, no século XVI, onde foi dado o início da exploração agrária a partir da monocultura para exportação sustentada pelo trabalho escravo. Dessa forma, o domínio das terras brasileiras por parte de colonizadores, estabeleceu as raízes da desigualdade social que perdura até hoje no país.
Em toda a América Latina esse retrato se mantém, assim como no Brasil. O último Censo Agropecuário brasileiro, realizado em 2017, aponta que cerca de 1% dos proprietários de terras controlam quase 50% da área rural. Em contrapartida, os estabelecimentos com áreas menores a 10 hectares (cada hectare equivale a um campo de futebol) representam metade das propriedades rurais, mas representam apenas 2% da área total.
Esse retrato da realidade ilustra o tamanho da expropriação realizada pelo projeto colonial, e ao longo dos séculos, tomada pelo capitalismo e imperialismo, com consequências políticas, econômicas, sociais e ambientais na construção histórica do Brasil e América Latina. Afinal, as relações com a terra são fundamentais para o desenvolvimento de um país. Pois, quando falamos de terra, falamos de controle dos bens naturais, econômico, com implicações sociais e culturais.
Dessa forma, a luta pela terra é antiga no Brasil, e desde o período colonial é tomada pelos povos indígenas, quilombolas, campesinos, entre outras comunidades tradicionais. Após muitas trajetórias de lutas, com o fim da Ditadura Militar no Brasil, nasce o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em 1984. E a partir de então, o movimento se consolidou com base em três objetivos mobilizadores que perduram até hoje: a luta pela terra, por reforma agrária e por transformação social.
O primeiro eixo mobilizador diz respeito à luta imediata, à necessidade de sujeitos conquistarem um pedaço de chão; a segunda se refere a uma política de Estado, já que sem ela não se consegue manter nem realizar de forma massiva a conquista pela terra; e a terceira carrega em si a ideia e busca constante da prática pautada na necessidade de transformar as relações de poder na sociedade, em favorecimento à classe trabalhadora e camponesa.
Desde o início do MST as ocupações de terra se tornaram a forma como o movimento se apresenta à sociedade. A ocupação é um ato de questionamento e de denúncia: questiona a função social da propriedade e denuncia que determinada terra não está cumprindo sua função social, como previsto na Constituição.
A luta para que se cumpra a Função Social da Terra
De acordo com a Constituição Nacional de 1988, o direito à propriedade deve atender a função social, para que a República Federativa do Brasil possa atender os fundamentos de construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantindo o desenvolvimento nacional, erradicando a pobreza e reduzindo as desigualdades sociais e regionais. Nesse sentido, cabe à União desapropriar terras por interesse social, os imóveis que não cumpram sua função social, como estabelecido no artigo 186.
Desse modo, a função social da terra representa na própria Constituição brasileira, em linhas gerais: o aproveitamento racional e adequado da terra; a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e a preservação do meio ambiente; o cumprimento das leis que regulam as relações trabalhistas; a exploração que favoreça o bem-estar de proprietários(as) e trabalhadores(as).
Por isso, o MST acredita que para que tenhamos uma sociedade brasileira mais justa e igualitária, é preciso realizar uma ampla Reforma Agrária, de caráter popular, contribuindo para a construção da soberania nacional. Para tanto, é preciso descentralizar o acesso à terra, para que ela cumpra sua função social, garantindo os direitos e a permanência no campo das comunidades que nela vivem e trabalham, sejam estas comunidades camponesas, indígenas, ribeirinhas, seringueiras, geraizeiras e quilombolas, entre outras comunidades tradicionais.
Reforma Agrária Popular deve ser uma luta de todes
A realidade impôs a necessidade de atualizar a luta pela reforma agrária. Desta forma, o conceito de reforma agrária clássica passa a ser substituído pelo conceito da reforma agrária popular, que agora traz em sua dimensão não apenas a necessidade de terra para quem nela trabalha, categoria central na década de 1980 e 1990, mas a necessidade de produzir alimentos saudáveis a toda população, adquirindo o caráter popular da reforma agrária.
Cada vez mais a luta pela reforma agrária implica o enfrentamento ao capital, que se manifesta na luta contra as grandes empresas transnacionais, como as do agronegócio, responsáveis pela produção dos agrotóxicos, sementes transgênicas e o esgotamento dos recursos naturais.
As consequências deste modelo destrutivo ao meio ambiente passa a ser paulatinamente sentida na maior parte da população que vive nos grandes centros urbanos. Contaminação e escassez de água, envenenamento de alimentos por agrotóxicos, mudanças climáticas e os inchaços nas grandes cidades são apenas alguns exemplos da intrínseca relação entre as questões agrária e urbana na atualidade.
A partir de então, a reforma agrária deixa de ser interesse apenas das populações que vivem no campo e se transforma numa necessidade do conjunto da sociedade. Da mesma forma, as(os) camponesas(es) sozinhas(os) não são mais capazes de alterar a correlação de forças para reorganizar a estrutura fundiária. Ela só será possível quando as populações das cidades também compreenderem a necessidade de realizá-la.
Nesse sentido, a centralidade da luta pela terra passa a ser em torno da disputa pelo modelo agrícola. Se antes o inimigo se centrava na figura do antigo latifundiário, agora ele se tornou muito mais poderoso, já que o proprietário de terra se aliou às grandes multinacionais do setor, ao sistema financeiro e aos meios de comunicação de massa, responsáveis por propagandear ideologicamente a concepção de agricultura proposta pelo agronegócio.
Dessa forma, é preciso estabelecer um limite máximo quanto ao tamanho da propriedade de terra, como forma de garantir sua utilização social e racional. É preciso organizar a produção agrícola nacional tendo como objetivo principal a produção de alimentos saudáveis, livres de agrotóxicos e organismos geneticamente modificados (transgênicos) para toda a população, aplicando assim, o princípio da soberania alimentar. A política de exportação de produtos agrícolas deve ser apenas complementar, buscando maior valor agregado possível e evitando a exportação de matérias-primas.
Transformação social
Porém, o conceito de reforma agrária popular vai muito além das questões produtivas. Perpassa também pela construção de novas relações humanas, sociais e de gênero, enfrentando o machismo e a lgbtfobia, por exemplo. Perpassa por garantir o acesso à educação em todos os níveis no meio rural, ao mesmo tempo que tem como propósito construir formas autônomas de cooperação entre os trabalhadores que vivem no campo e na relação política com as massas urbanas.
Já são muitas as iniciativas neste sentido, por meio das agroflorestas, cultivo de sementes crioulas, processamento e agroindústria, feiras de comercialização direta, pesquisa científica, formação técnica e uso de novas tecnologias. Todavia, diante da complexidade do assunto e dos desafios a serem enfrentados, é importante ressaltar que não foi somente as mudanças na natureza do capital que levaram o MST a reformular a luta pela terra.
A gênese desses movimentos perpassa necessariamente pela transformação da sociedade, e foi justamente a partir deste elemento que foi gestada uma cultura política e organizativa entre as famílias sem-terra que amadureceu na concepção de reforma agrária popular. Sua plena realização, evidentemente, depende de mudanças estruturais na sociedade. No entanto, busca-se compartilhar com a classe trabalhadora não somente uma reivindicação justa, mas um projeto de poder, soberano e popular.
7 Pontos sobre o Programa de Reforma Agrária do MST
- TERRA
Democratizar o acesso à terra e todos os bens da natureza, em nosso território nacional, para o povo brasileiro, garantindo a função social da terra e direitos de demarcação para os povos originários, comunidades tradicionais e trabalhadores(as) do campo. Impedindo a concentração de propriedades e eliminando o latifúndio.
2. NATUREZA
Assegurar e preservar os bens da natureza, as águas, biodiversidade (fauna e flora), minérios e fontes de energia como um bem público, acessível para toda a população, sem que se tornem mercadorias como objetos de apropriação privada. Reflorestar as áreas degradadas com ampla biodiversidade de árvores nativas e frutíferas, assegurando a preservação ambiental.
3. SEMENTES
As sementes são patrimônios da natureza e não pode haver sobre elas propriedade privada e controle econômico que se sobreponha a soberania nacional, em favor da produção e usufruto das sementes e mudas, a fim de preservar, multiplicar e socializar as sementes crioulas, tradicionais ou melhoradas, que contribuam com o campesinato e o fortalecimento da biodiversidade dos biomas regionais.
4. PRODUÇÃO
Produzir alimentos com o povo e para o povo, cultivando ambientes sustentáveis com produção saudável, preferencialmente, a partir de técnicas agroecológicas, livres de agrotóxicos e sementes transgênicas. Desenvolver a produção e as relações sociais, garantindo a permanência no campo por meio de formas de trabalho e renda a partir das associações, cooperativas e agroindústrias.
5. ENERGIA
Desenvolver de forma cooperada a produção de energia, considerando as especificidades das regiões, municípios e comunidades, com diferentes fontes de recursos renováveis que atendam as necessidades do povo, construindo a soberania energética nacional de forma estratégica e que não ceda às especulações e privatizações do capital financeiro internacional.
6. EDUCAÇÃO E CULTURA
Garantir a população que vive no campo acesso aos bens culturais, bem como, o direito à educação pública de qualidade e gratuita. Desenvolver permanentemente formações de caráter técnico, científico e político a partir de perspectivas críticas da realidade e lugar social. Dominar os meios de comunicação e suas ferramentas em favor da cultura camponesa a partir de suas vozes e memória coletiva, buscando a superação de preconceitos e discriminações, desenvolvendo transformações sociais.
7. DIREITOS SOCIAIS
O campo deve ser um lugar de bem viver, livre de violências, assegurando que a população rural tenha oportunidades e condições de vida digna, onde os direitos trabalhistas sejam garantidos e as relações de trabalho estejam baseadas na cooperação e combate à alienação de classe, considerando que o acesso à terra, seus bens diversos e frutos devem garantir subsistência e soberania nacional, de forma que esses direitos sejam invioláveis perante o lucro.
* Com informações do Programa de Reforma Agrária Popular do MST e Dossiê sobre “Reforma Agrária Popular e a luta pela Terra no Brasil”, do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, 2020.