Agroecologia
Por que agricultores e pesquisadores defendem que agroecologia pode sanar a fome no Brasil
Por Gabriela Moncau
Do Brasil de Fato
O 3 de outubro, Dia Nacional da Agroecologia, chega nesse ano de 2021 no momento em que mais da metade da população brasileira vive com insegurança alimentar. Mais do que um modelo de agricultura baseado em conhecimentos tradicionais de interação com o ambiente por meios sustentáveis; agricultores, pesquisadores e ativistas ouvidos pelo Brasil de Fato apontam que a agroecologia é o caminho para responder à crescente devastação do meio ambiente, para desenvolver soberania nacional e capaz de sanar a fome de toda a população.
“A agroecologia se apresenta, nesse contexto de sindemia covídica como a estratégia possível de enfrentamento à fome porque ela traz o olhar a partir de um passo atrás ao ato de se alimentar”, descreve Islândia Bezerra, pesquisadora e presidenta da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA). “O passo da produção de alimentos que enfatiza a natureza como sujeita de direitos”, resume.
Marcos José de Abreu, conhecido como Marquito, é vereador em Florianópolis pelo PSOL e foi autor do projeto de lei que fez da capital santa catarinense o primeiro município do país a banir agrotóxicos de seu território.
Em sua opinião, as cadeias agroecológicas – diferentemente do setor econômico do agronegócio – estão pouco suscetíveis ao mercado financeiro global de commodities. Assim, avalia Marquito, “o modelo mais adequado para alcançarmos uma soberania nacional é o agroecológico”.
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Chirlene Barbosa trabalha com agroecologia há mais de duas décadas no município de Bom Jardim, no agreste Pernambucano. “Eu sei o que é fome” diz, ao contar que era pequena quando o pai morreu e a “mãe ficou com sete filhos para criar”.
Produtora de hortaliças, frutas e legumes, Chirlene narra que “terra é vida” e que mesmo que o dinheiro fique escasso, hoje a mesa é farta. Ela garante que é possível agricultores agroecológicos abastecerem “todos os bancos de comida”, mas é preciso “os governos investirem mais”, pois “muitas vezes não tem como essa produção chegar às pessoas”, comenta.
“É falta de interesse político das autoridades”, salienta o agricultor agroflorestal Helenito Lopes. Hermes, como é chamado mais comumente, vive com outras 80 famílias no Assentamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) Sepé Tiaraju, no município de Serrana, próximo a Ribeirão Preto (SP).
“Somos nós agricultores familiares que produzimos a maior parte do que a população consome”, constata Hermes, assentado em uma área considerada referência em práticas agroecológicas e agroflorestais desde o início dos anos 2000. “Esse governo quer desmobilizar as organizações sociais fechando a torneira para o incentivo das atividades agroecológicas e dando muita grana para o agronegócio”.
Em uma fala feita em 2014, mas bastante atual, o então relator especial da ONU sobre o direito à alimentação, o professor belga Olivier de Schutter, expôs que “a erradicação da fome e da malnutrição é um objetivo alcançável. Para tanto, contudo, não será suficiente apenas refinar a lógica dos nossos sistemas alimentares”, alertou: “ela precisa, ao contrário, ser invertida”.
O incentivo à fome e ao agronegócio
As dificuldades para aplicar essa inversão no Brasil parecem proporcionais à sua urgência. Os dados do “Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia Covid-19 no Brasil”, feito pela Rede PENSSAN em 2021, são alarmantes. Das 116,8 milhões de pessoas com insegurança alimentar no país, 43,4 milhões não tinham comida o suficiente e 19 milhões estavam efetivamente passando fome.
Os números evidenciam porque o Brasil, que tinha em 2014 saído do Mapa da Fome – levantamento das nações que têm 5% ou mais de sua população subalimentadas – voltou a figurar na lista.
Em 27 de setembro a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), por pedido da Associação Civil Ação Educativa, entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal para obrigar o governo Bolsonaro a implementar políticas públicas de combate à fome.
Denunciando um “desmonte da política de segurança alimentar”, a ação reivindica, entre outras medidas, que o governo revogue a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), garanta repasses financeiros ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e invista R$1 bilhão no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).
Esses dois programas são citados por Islândia como exemplos de políticas públicas federais importantes na potencialização da agroecologia, ao lado de iniciativas estaduais e municipais. “As políticas existem, mas quando comparadas aos investimentos do Estado no setor do agronegócio, estamos na periferia no sentido de acessibilidade”, diz.
Em setembro, a Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA), em parceria com a Friedrich-Ebert-Stiftung Brasil (FES Brasil), lançou o artigo “Desafios para o Abastecimento e Soberania Alimentar no Brasil”. Nele, os autores avaliam que o PAA, ao longo dos anos passou a priviliegiar compras institucionais de médias e grandes cooperativas.
O artigo questiona, ainda, que uma série de entraves burocráticos passaram a impossibilitar a participação de diversas comunidades no programa, “particularmente comunidades quilombolas, indígenas e pequenas cooperativas de agricultura familiar”.
Enquanto isso, o Ministério da Agricultura aprovou, em 2020, o registro de 493 agrotóxicos, o número mais alto da série histórica, compilado desde 2000. Dos 1059 agrotóxicos registrados desde janeiro de 2019 no Brasil, cerca de um terço é proibido na União Europeia por serem considerados perigosos para a saúde e o meio ambiente.
Além disso, a isenção de impostos das quais goza a agroindústria no Brasil representou, no ano passado, R$29,2 bilhões. Em 2019, as exportações feitas pelo setor renderam aos cofres públicos apenas R$16,3 mil.
Redes de solidariedade e políticas locais
A despeito da priorização estatal ao agronegócio e do desemprego crescente, as iniciativas autônomas de solidariedade no enfrentamento à fome se espalharam pelo país desde o pandemia de Coronavírus.
“São várias as experiências”, sorri Islândia, ao elencar as feitas pelo MST, o Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), o Movimento de Agricultura Urbana, as cozinhas solidárias do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), as comunidades quilombolas, indígenas. “Estão trazendo o debate da produção e consumo de alimentos saudáveis para um contexto de escassez”, descreve.
Hermes relata que o início da pandemia foi um choque para as famílias do Assentamento Sepé Tiaraju. “Todas as portas se fecharam para quem trabalhava com venda em feiras locais, em congressos, o PAA e o PNAE pararam. O povo nosso aqui ficou desesperado né, o que a gente vai fazer com tanto alimento?”, conta. “E a gente começou a perceber que tinha gente nas cidades passando muita dificuldade”.
A partir da articulação do que chamam de Grupos de Consumidores Agroecológicos, os assentados do Sepé e de outras comunidades do MST mobilizaram parceiros para comprar seus produtos e os doarem para a população periférica de Ribeirão Preto. “A gente chegou a juntar mais de oito toneladas. E agora já estamos num novo projeto”, relata Hermes.
“Ninguém vê o agronegócio distribuindo alimentos. O agronegócio não vai poder jamais fazer uma ação de solidariedade distribuindo alimentos, porque ele não produze alimentos”, avalia Islândia: “Ele produz commodities, voltados à exportação”.
“O que pode ser que o agronegócio faça?”, reflete a presidenta da ABA. “Pode distribuir cestas, com produtos comestíveis ultra processados. Diferentemente de quem produz comida, frutas, legumes, raízes, tubérculos, leite e derivados. São essas organizações sociais de base que estão fazendo o enfrentamento à fome”, sintetiza.
Na visão de Bezerra, no entanto, o combate à insegurança alimentar “não pode ser feito única e exclusivamente pela sociedade civil organizada”, mas também “no campo das macro políticas públicas”.
Marcos Abreu faz uma avaliação similar, defendendo ser estratégico o foco no âmbito municipal. Aliada às denúncias da pressão que a bancada ruralista faz em defesa do agronegócio na esfera nacional, Marquito acredita que “as leis e políticas locais são de alto impacto”.
O legado de Ana Maria Primavesi
As discussões levantadas pelo Dia Nacional da Agroecologia evidentemente não vêm de hoje. A data, inclusive, é o dia do nascimento de uma das históricas defensoras de modelos de agricultura alternativos ao agronegócio.
Ana Maria Primavesi nasceu na Áustria e chegou ao Brasil nos anos 1950, escapando da perseguição nazista nos anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial. Docente e engenheira agrônoma próxima a comunidades tradicionais e movimentos ligados à luta pela terra, ela revolucionou a visão da agricultura ao se atentar para a importância da saúde do solo ao pensar no que se produz a partir dele.
Os olhos de Islândia Bezerra se enchem de água quando ela se lembrou das poucas vezes em que teve a oportunidade de escutar Primavesi ao vivo. A pioneira da agroecologia brasileira faleceu em 2020, aos 99 anos.
Do conhecimento deixado por Primavesi, Islândia destaca que “para além do conhecer e conceber o solo como berço da nossa própria existência, ela deixou um legado de questionar o modelo que usa veneno e que reverbera em todo o planeta”.
“Com evidências científicas, Ana Primavesi nos ensinou que a terra não precisa de veneno. Ninguém precisa de veneno”, constata Bezerra.
E é justamente a troca de conhecimentos, aliada à luta por maiores incentivos para as produções agroecológicas e agroflorestais o que Hermes considera serem os caminhos “para a gente matar a fome do nosso povo”.
Edição: Vinícius Segalla/ Brasil de Fato