Aromas de Março
Ao capital interessa a violência, a nós interessa a emancipação!
Da Página do MST
Chegamos a mais um novembro, mês que repõe em nossa luta a urgência de superarmos a violência estrutural necessária à reprodução do capital, violência racista e patriarcal que fere nossos corpos e nossa existência. A violência não tem lugar na sociedade que estamos construindo. Não rima com socialismo, agroecologia, solidariedade ou Reforma Agrária Popular. Portanto, é preciso que sejamos intransigentes em relação à violência. Que tenhamos a firmeza política e a coerência ideológica de identificá-la, denunciá-la e enfrentá-la em todas as suas expressões.
A ocupação da terra revela a lógica perversa da propriedade privada, a divisão de classes, a fome e a destruição provocadas pelo agronegócio.
A cada terra que conquistamos e nela ousamos fazer brotar alimentos saudáveis, através de relações não violentas, entre nós e com a natureza, construímos mais uma trincheira para defender nossos sonhos. Esta deve ser uma revolução cultural permanente e cotidiana, a ser vivenciada tanto nas relações coletivas, políticas, como também naquelas mais íntimas e privadas. A violência é tão naturalizada em nossas vidas que muitas vezes nem notamos quando ela acontece sob nossos olhos, ou mesmo quando a sofremos em própria pele. Mas ela está aí, não começa com um tapa ou um estupro no primeiro encontro, no entanto, vai deixando suas marcas e quando notarmos pode ser tarde demais para algumas de nós…
Cultivar afetos, derrotar as violências!
Violência Psicológica
Qualquer conduta que cause dano emocional e diminuição da autoestima; prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento da mulher; ou vise controlar suas decisões, comportamentos, crenças ou ações.
Exemplos: ameaças, humilhação, vigilância constante; proibir de estudar, viajar ou de falar com as pessoas; perseguição, insultos, ridicularização, chantagens; limitação do direito de ir e vir; distorcer ou omitir fatos deixando a mulher em dúvida sobre sua sanidade.
UM CASO NOSSO DO DIA A DIA
“É só uma brincadeira”
A assembleia do assentamento já estava pra começar. Dia de debate sobre a titulação dos lotes, hora de unir forças contra mais uma política que tenta enfraquecer a luta pela Reforma Agrária. O coletivo da coordenação está reunido e um companheiro pega a palavra:
– Vamos lá, meu povo, tenho uma sugestão. Eu e o Nozinho podemos coordenar a assembleia. Juca apresenta a proposta suja do INCRA e o Alcindo as orientações construídas pelo Movimento e, enquanto isso, a mulherada cuida do almoço coletivo
– Que é isso, Tonho?! Endoidou? As tarefas foram divididas na reunião dos núcleos. – protesta Juçara.
– Brincadeira, preta! Tava só testando se a polícia das mulheres tava atenta… Os homens explodem em gargalhadas.
Do que será que eles riem? Uma parte muito complicada da violência está nas piadas. Quando não enfrentamos qualquer tipo de “brincadeira” que menospreze a mulher, estamos permitindo que este tipo de violência de hoje evolua para outro tipo de violência amanhã.
Violência Moral
Calúnia (atribuir fato criminoso ou falso), difamação (atribuir ofensa à dignidade) ou injúria (atribuir fato ofensivo à reputação).
Exemplos: acusar a mulher de traição; emitir juízos morais sobre a conduta; fazer críticas mentirosas, expor a vida íntima, rebaixar a mulher por meio de xingamentos; desvalorizar a vítima pelo seu modo de se vestir.
UM CASO NOSSO DO DIA A DIA
“Tava era pedindo…”
– Rogério, você viu o que aconteceu com a filha da dona Rita? Esse mundo tá virado, a menina escapou por pouco de ser atacada!
– Hum, mas essa menina não é flor que se cheire, Joana. Olha as roupas que ela usa! Mulher que quer respeito não se veste assim não, tava era pedindo…
Algo que acontece com muita frequência é a responsabilização das mulheres pela violência que é cometida contra ela, por seu comportamento, pela roupa que usa, pelos lugares que frequenta…Temos que combater com toda força argumentos perversos como estes que tentam justificar o injustificável, transformando o agressor em vítima. Devemos criar um ambiente seguro para que nossas mulheres e meninas vivam livremente e sem medo, pois lugar de mulher é onde ela quiser, com a roupa que se sentir bem.
Violência sexual
Qualquer conduta que force a presenciar, manter ou participar de relação sexual não desejada.
Exemplos: estupro ou obrigar a mulher a fazer atos sexuais, contra sua vontade, mesmo que seja com seu parceiro ou cônjuge; obrigar a mulher a fazer atos sexuais que causem desconforto ou repulsa; impedir o uso de métodos contraceptivos, ou forçar a mulher a abortar; forçar matrimônio, gravidez ou prostituição; limitar ou anular o exercício dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher; contato ou tentativa de interação de natureza sexual indesejado.
UM CASO NOSSO DO DIA A DIA
“Não gosta de elogio, não?”
Noite de seresta no acampamento, o terreiro se enche de pares dançando ao som de um xote. Paulo tira Ana pra dançar, ela aceita sorrindo e os dois se misturam na multidão. No meio da dança, Ana sente Paulo chegando cada vez mais perto, se esfregando… ela endurece o corpo, enquanto ele diz em seu ouvido: – menina, você é muito gostosa! Ana, assustada, se afasta imediatamente, enquanto Paulo, tentando segurar a sua mão, protesta: – não gosta de elogio, não?
Precisamos conversar sobre o assédio. Algo que incomoda tanto as companheiras não pode ser considerado “normal” ou besteira. Os homens precisam refletir se a externalização de suas vontades sexuais não estão causando incômodo a outra pessoa. O direito ao primeiro flerte é dado a todas e todos (respeitando a questão da menoridade e lembrando que pedofilia é crime), entretanto quando uma companheira diz “NÃO”, ela está querendo dizer “NÃO”.
Violência física
Conduta que ofende a integridade ou a saúde corporal da mulher.
Exemplos: espancamento; atirar objetos, sacudir e apertar; estrangulamento e sufocamento; lesões com objetos cortantes ou perfurante; ferimento causado por queimadura ou arma de fogo.
UM CASO NOSSO DO DIA A DIA
“Tá tão quente hoje… não quer tirar este casaco?”
O dia estava escaldante, nenhuma folha balançava nos galhos, nenhuma nuvem no céu, mas Idalina seguia metida num casaco, enquanto ajudava a separar os alimentos que iriam pras cestas solidárias. O suor lhe escorria pelo pescoço, pelas costas, pelo rosto, lembrando o gosto salgado das lágrimas da noite anterior. – Tá tão quente hoje… não quer tirar este casaco? – indagou a comadre. Mas ela recusa, suportando, em silêncio, o calor que escondia a vergonha do espancamento.
Precisamos criar uma atmosfera de enfrentamento cotidiano à violência. Temos que olhar com outros olhos, de forma coletiva e individual, quando qualquer comportamento ofensivo ou violento contra as mulheres aparecem em qualquer espaço. São eles que, ao acontecerem uma, duas vezes e ninguém estranha, ninguém recrimina… permitem a violência física, ou até o feminicídio.
Violência patrimonial
Retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos.
Exemplos: controlar o dinheiro; deixar de pagar pensão alimentícia; destruição de documentos pessoais; furto, extorsão, dano, estelionato; privar de bens, valores e direitos ou recursos econômicos; causar danos propositais a objetos da mulher
UM CASO NOSSO DO DIA A DIA
“Nosso dinheiro, eu administro”
– Cleide, o pessoal da cooperativa avisou que já tá na conta o dinheiro do Fomento Mulher. Cadê teu cartão, que vou transferir pra minha conta, já planejei no que gastar. Pode deixar que eu administro.
A questão financeira também é um elemento que favorece a violência física. Isto é outro tipo de violência, a Violência Patrimonial. Quando é sempre o homem quem controla os gastos, quem está com a posse do dinheiro, quem decide onde se vai gastar… já é um início preocupante de caminho violento na relação. É como se o homem, com este comportamento, se apoderasse da mulher – ela passa a fazer parte das “coisas” que ele possui, assim como filhos/as, objetos, animais, ferramentas de trabalho.
Mulheres Sem Terra contra os vírus e as violências
Rebela-te,
Diante de quem arquiteta a morte,
manipula consciências,
mobiliza destruição,
negocia direitos,
incentiva a ignorância
destrói o sonho.
Março está em nós.
Rebela-te,
Repõe a insurgência,
o fervor do caldeirão,
a decisão de não retroceder,
de manter-se em bando.
Rebela-te,
Recupera a coragem de enfrentar a engrenagem que produz morte, fome e violência,
a decisão de atacar, para defender-se.
Rebela-te,
Somos mulheres, nos interessa a felicidade,
fazer a semente germinar
produzir alimentos na terra,
nos banhar de mar,
nos vulcanizar contra quem oprime,
ser balaio de amor
ser multidão em luta pelo direito de existir!
*Editado por Fernanda Alcântara