Cultura

Mercedes Sosa é mais relevante do que nunca, diz autora da 1ª biografia da cantora em português

Escritora dinamarquesa Anette Christensen mergulhou na vida e na obra de "La Negra" durante oito anos
Celebrada em toda a América Latina, Mercedes Sosa é considerada a maior intérprete do folclore argentino
Celebrada em toda a América Latina, Mercedes Sosa é considerada a maior intérprete do folclore argentino. Foto: Wikimedia Commons

Por Daniel Giovanaz
Do Brasil de Fato

Era 4 de outubro de 2009, e os jornais de todo o mundo repercutiam o falecimento da cantora argentina Mercedes Sosa, na capital Buenos Aires. A quase 14 mil km de distância, sua voz potente ressoava na TV dinamarquesa, em meio ao noticiário local. A canção era Gracias a La Vida, composta pela chilena Violeta Parra.

A homenagem logo foi interrompida, mas aqueles breves instantes mudariam para sempre a vida de ao menos uma espectadora, que ouvia Mercedes Sosa pela primeira vez.

Impactada, Anette Christensen decidiu mergulhar na trajetória da artista que acabara de falecer. Nesse percurso, se apaixonou pela América Latina, encarou traumas de infância e transtornos psicológicos, e passou a reescrever seu próprio passado. Ao final de oito anos, transformou essa jornada em livro.

Lançado nesta quarta-feira (24), Mercedes Sosa – A Voz da Esperança [Tribute2Life Publishing, 2021] é a primeira biografia de “La Negra” com tradução para o português.

O formato e a linguagem diferem dos livros clássicos do gênero. Christensen divide o texto em dois blocos. O primeiro é a biografia, propriamente dita; o segundo, um relato de sua transformação pessoal a partir do “encontro” com a biografada. 

“Escrevi o livro na mesma ordem em que minhas descobertas aconteceram, e acredito que é necessário saber quem foi Mercedes Sosa para entender por que ela causou um impacto tão grande”, conta a autora dinamarquesa.

Mais que contar uma história, Christensen se propõe a descrever o efeito terapêutico que Mercedes Sosa produz na mente de quem a acompanha e a ouve. Por meio da neurociência e, particularmente, da neurobiologia interpessoal, ela ressalta o poder transformador da música e das relações afetivas.

A voz dos “sem voz”

Mercedes Sosa nasceu em julho de 1935 e é uma das cantoras mais conhecidas e influentes da América Latina.

Filiada ao Partido Comunista nos anos 1960 e perseguida pela ditadura militar, ela foi presa e exilada no final da década seguinte. Em um contexto de censura e violência, sua música tornou-se a voz dos oprimidos e dos que resistiam ao autoritarismo no continente.

Além de sua carreira e militância política, o livro aborda momentos importantes da vida de Mercedes Sosa, como os dias de exílio na Europa e a decisão de interromper uma gravidez.

O apelido, “La Negra”, é uma referência a sua ascendência indígena. Sua morte, em 2009, foi causada por um problema renal, que desencadeou complicações no fígado e nos pulmões.

O contexto político mudou, mas a vida e a obra de Mercedes Sosa são mais relevantes do que nunca, defende a biógrafa.

Christensen concedeu entrevista ao Brasil de Fato sobre o livro, autorizado pelo filho da biografada, Fabián Matus – que faleceu há quase três anos.

Mercedes Sosa – A Voz da Esperança tem 219 páginas e foi traduzido por Mariana D’Angelo, que colaborou para a realização desta conversa:

Brasil de Fato: Você escreveu o livro para quem já está familiarizado com a obra de Mercedes Sosa, ou a ideia era atingir quem ainda não conhece suas canções?

Anette Christensen: Escrevi o livro principalmente para aqueles que não sabiam nada sobre Mercedes Sosa, porque quanto mais a conhecia, mais claro ficava para mim que ela era uma heroína anônima.

Tive muita dificuldade em encontrar informações sobre ela em inglês, e foi por isso que encarei o desafio de escrever e publicar Mercedes Sosa – A Voz da Esperança.

Os leitores da versão em inglês estão muito felizes em conhecer Mercedes Sosa e sua música. Alguns se fazem a mesma pergunta que eu me fiz: “Como não tinha ouvido falar dela antes?”.

Mercedes Sosa merece que sua história seja conhecida por pessoas fora dos países de língua espanhola e também pelas futuras gerações.

Como traço um perfil psicológico de Mercedes Sosa, os fãs irão vê-la sob novas perspectivas. De acordo com o feedback que recebo de alguns deles, eles sentem que a conhecem de uma forma muito mais pessoal. Por isso, embora eu tenha escrito o livro para aqueles que não a conhecem, seus fãs também desfrutarão da leitura.

Como a família de Mercedes Sosa reagiu à sua intenção de escrever uma biografia com essa abordagem psicológica? Eles já estavam cientes dos efeitos que sua “presença mística” produzia em milhares de pessoas pelo mundo?

Enquanto escrevia o livro, eu mantive contato com o filho de Mercedes Sosa, Fabián Matus, e o neto, Agustín Matus. Ambos acharam o aspecto psicológico muito interessante.

Fabián escreveu no endosso ao livro que a obra apresenta uma perspectiva “nova e tocante” sobre sua mãe. Eles sabiam da influência que ela exercia sobre as pessoas, mas não em que nível nem qual a explicação para aquilo.

Fiquei com a impressão de que minhas observações e explicações no âmbito psicológico eram novas para eles.

No livro, você ressalta as contribuições de Mercedes Sosa em um período dramático da história política da América Latina, que foram as ditaduras militares. Hoje, em um contexto diferente, mas com novas instabilidades e problemas políticos e econômicos, como a mensagem de Sosa continua ecoando?

Mercedes Sosa é agora mais relevante do que nunca, não só na América Latina, mas no mundo todo, porque ela era capaz de respeitar e aceitar todas as pessoas. Ela não via as diferenças como uma adversidade.

“Somos todos diferentes, e essa é a beleza da vida na Terra. Nossas diferentes cores, diferentes visões e diferentes sistemas políticos”, disse ela.

Muitos dos problemas da atualidade são causados por líderes corruptos, que se comportam como valentões sem bússola moral. O mundo precisa desesperadamente de líderes que possam mostrar empatia e usar seu impacto para servir às pessoas, e não aos seus próprios interesses.

Mercedes Sosa é uma líder assim. Mesmo que já não esteja mais entre nós, sua história ainda pode nos ensinar muito. Ela viveu a vida toda ajudando os outros e falando em nome dos excluídos, o que lhe deu o apelido de A Voz dos Sem Voz.

Sua integridade, coragem e solidariedade fazem dela um exemplo que aponta o caminho para um mundo mais empático e solidário.

Como ela disse certa vez: “É importante reagir a este mundo, fazer dele um lugar melhor para todos, e não deixar isso nas mãos dos outros ou dos políticos. Acho que é um erro enorme acreditar que as grandes mudanças devem vir de partidos políticos. Não, elas devem vir de cada um de nós”.

Uma leitora dos Estados Unidos me escreveu dizendo que ler sobre a vida de Mercedes Sosa a inspirou a “fazer mais por seus semelhantes.” Isso confirma a influência que Mercedes ainda tem. Ela nos faz despertar e nos inspira a sermos pessoas melhores, com o desejo de fazer deste mundo um lugar melhor e mais justo para todos.

Anette Christensen conta como Mercedes Sosa ajudou a curar suas próprias feridas / ©Pernille Schmidt / Divulgação

O livro chama atenção para um momento importante da vida de Mercedes Sosa: quando ela decide interromper uma gravidez. Que impactos essa decisão produz na vida dela, nos anos seguintes?

No início da segunda gravidez, Mercedes decidiu abortar porque estava muito doente. O casamento com Oscar Matus estava prestes a terminar, e a carreira que tinha tornava impossível cuidar de outro filho como mãe solteira. Muitas vezes, ela tinha que deixar Fabián com os avós durante longos períodos e não achava que era responsável da sua parte ter um segundo filho.

Sosa cresceu em uma família católica e, embora não fosse religiosa, a decisão de abortar foi muito difícil para ela. Essa experiência a fez compreender melhor as meninas que engravidam contra sua vontade.

Ela não era contra a Igreja Católica, mas achava um problema o fato de a Igreja se opor à educação sexual de jovens adultos e não conseguir lidar com a questão das crianças molestadas por padres.

Muitas adolescentes morreram por terem ido a médicos incapazes, que não sabiam como fazer o procedimento de forma correta e segura. Ela acreditava que essas garotas, de em média quinze anos, precisavam de alguém para apoiá-las.

Ela então embarcou em uma jornada para a vida toda, tornando-se porta-voz dos direitos das mulheres, e em 1995 foi homenageada por seu trabalho ao receber o Prêmio Unifem [Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher].

Mercedes Sosa nunca se arrependeu da decisão de fazer um aborto, mas ainda assim se sentiu culpada pelo resto da vida e tentou se redimir tornando-se Embaixadora da Boa Vontade da Unicef [Fundo das Nações Unidas para a Infância] pelas crianças da América Latina e do Caribe, de 1999 até sua morte, em 2009.

Quando questionada em uma entrevista sobre qual conquista a tinha deixado mais orgulhosa, ela respondeu: “Ter me tornado embaixadora da Unicef em defesa das crianças da América Latina e do Caribe.”

A experiência do exílio modificou, de alguma forma, a maneira como Mercedes olhava para a Argentina e para a América Latina? Em alguma medida, esse período na Europa contribuiu para que sua música ficasse ainda mais conhecida internacionalmente?

O exílio foi determinante para a vida e a carreira de Mercedes, mas não mudou sua visão sobre o que acontecia na Argentina e no continente. O que ela fez foi usar sua nova plataforma europeia para chamar a atenção para as violações dos direitos humanos que aconteciam na América Latina.

Do exílio, Sosa tornou-se uma referência de resistência para os pobres e oprimidos, e ao retornar para a Argentina, foi recebida como um ícone da democracia, especialmente pela classe trabalhadora. Ciente da responsabilidade que tinha, ela continuou a trabalhar pela democracia na Argentina pelo resto da vida.

O período no exílio também se tornou um marco em sua carreira, pois expandiu seus horizontes musicais e a forçou a superar o medo de palco e a timidez de se apresentar em público, coisas contra as quais sempre lutou.

Ela costumava fechar os olhos ao cantar para uma plateia de língua espanhola, mas na Europa tinha que olhar diretamente para as pessoas para reter sua atenção. Ao começar a interagir com o público, o modo como ela se apresentava mudou completamente, e as pessoas começaram a reagir com emoção à atenção que recebiam dela.

Eu tenho uma amiga na Áustria que foi a dois shows. Ela disse que chorou durante ambos porque o amor estava fortemente presente.

Acredito que o que originou entre os fãs a percepção de que uma presença mística emanava dela foi o sentimento profundo de estarem recebendo sua atenção carinhosa e de estarem sendo vistos. O exílio acabou sendo um catalisador para o maior progresso em sua carreira, entrar no coração das pessoas.

Sobre a época do exílio, ela disse: “Por mais amarga que tenha sido minha experiência no exílio, ela me fez crescer e amadurecer como artista, porque abriu novos horizontes. Minhas músicas costumavam ser muito introvertidas. Agora a canção brota de mim. Quando um artista encontra resistência, seu poder aumenta, e o que o artista faz? Ele cresce. A música deve evoluir, e o artista também.”

Qual o principal legado de Mercedes Sosa na Argentina? A morte dela deixou uma lacuna que jamais foi preenchida ou, de alguma forma, suas sementes continuam florescendo?

Ambos, eu diria. O filho de Mercedes, Fabián, publicou o livro La Mami pouco antes de sua morte, em 2019, e a Fundação Mercedes Sosa trabalha incansavelmente para estabelecer seu legado, especialmente na música. Ainda estão sendo lançadas novas canções, fotos e discos, e muitos dos principais artistas da Argentina continuam a fazer shows em sua homenagem.

Em Tucumán, província natal de Mercedes, foram inaugurados em sua homenagem um museu, a estação de rádio Mercedes Sosa e o Teatro Mercedes Sosa, com capacidade para 1.700 pessoas. Estátuas foram erguidas por todo o país, e ruas, parques e escolas receberam seu nome. O antigo governo da Argentina tentou impedir todas essas iniciativas, mas felizmente não conseguiu.

E não é só na Argentina que ela é homenageada. Em Valparaíso, no Chile, há um restaurante em homenagem à Mercedes Sosa chamado La Stampa de la Negra. Artistas ao redor do mundo ainda gravam suas canções, como Laura Granados na Espanha, Ginevra Di Marco na Itália e Agnès Jaoui na França, só para mencionar alguns.

No Brasil, artistas como Indiana Nomma e Tatiéli Bueno fazem tributos em sua homenagem. Alguns grandes nomes da música brasileira também tinham, e ainda têm, uma forte conexão com ela, como Caetano Veloso, que lançou um julho um novo single, Coração Vagabundo, gravado com Mercedes Sosa há 12 anos.

Apesar de todas essas iniciativas, sua morte deixou uma grande lacuna que ninguém jamais conseguirá preencher. Houve apenas um Nelson Mandela, um Martin Luther King, e haverá apenas uma Mercedes Sosa. Por isso é imprescindível fazer com que ela seja lembrada em todo o mundo e pelas gerações futuras.

A segunda parte do livro mostra que essa não é uma biografia convencional. Por que você decidiu organizar o livro dessa forma – primeiro, os aspectos biográficos, e depois sua experiência pessoal?

Escrevi o livro na mesma ordem em que minhas descobertas aconteceram, e acredito que é necessário saber quem foi Mercedes Sosa para entender por que ela causou um impacto tão grande em mim.

Ela me tocou profundamente desde o momento em que a vi pela primeira vez, quando sua morte foi noticiada na televisão dinamarquesa em 4 de outubro de 2009.

Senti um grande anseio em conhecê-la e comecei a procurá-la na internet. No processo de estudar sua vida, intuitivamente comecei a me conectar com ela como uma figura materna, e descobri que estava me curando de um trauma emocional que remontava à minha infância.

Eu queria entender o que estava acontecendo do ponto de vista científico, porque se houvesse uma explicação e ela funcionasse para mim, poderia funcionar para qualquer um. O livro é o resultado do meu processo pessoal e é por isso que ele levou oito anos para ser concluído.

Nem todos que ouvem a música de Mercedes Sosa pela primeira vez podem ter uma experiência tão intensa como a que você teve. A que você atribui essas diferenças na recepção da mensagem?

Somos todos diferentes e temos necessidades diferentes. Eu precisava de uma figura materna, e Mercedes Sosa se encaixava perfeitamente no papel de mãe. Ela irradiava compaixão, gentileza e empatia, o que me fez sentir acolhida e cuidada, algo que eu sentia que havia faltado na minha infância.

Tenho recebido feedback de pessoas do mundo todo, e é notável quantas delas dizem ter tido uma experiência semelhante à minha. Eu incluí alguns desses depoimentos no livro. Isso confirmou para mim que Mercedes Sosa proporcionou algo extraordinário às pessoas a nível individual.

Uma das suas intenções, ao escrever o livro, é estimular outras pessoas a se abrirem para esse processo de transformação, mesmo que por outros caminhos?

Sim, definitivamente. Seria egoísta não compartilhar isso com os outros depois de ter sofrido e encontrado uma cura.

O caminho de cada um é diferente. Eu espero que minha história inspire os leitores a seguirem adiante em suas jornadas pessoais, a ouvirem sua voz interior e a confiarem no processo.

Quando estamos tristes, uma lista de 50 coisas a fazer para melhorar só piora a situação. Tudo o que precisamos é da esperança vinda de alguém que esteve no vale das trevas e voltou à vida. Isso é o que a história de Mercedes Sosa e a minha têm em comum.

Voltamos a viver ao sol depois de um inverno sob a terra. Como diz uma das minhas músicas favoritas, Como la Cigarra:

Tantas vezes me mataram / Tantas vezes eu morri / Entretanto estou aqui / Ressuscitando / Graças dou à desgraça / E à mão com o punhal / Porque me matou tão mal / E segui cantando / Cantando ao sol / Como a cigarra / Depois de um ano / Debaixo da terra / Como o sobrevivente / Que volta da guerra.

Qual foi seu maior aprendizado, do momento em começou as pesquisas até a publicação do livro?

É difícil mencionar apenas uma coisa. Em relação ao meu processo pessoal, aprendi que não precisamos carregar o passado conosco para sempre. Podemos reescrever nossa história sem viver como vítimas a vida toda.

Quando penso na minha infância, já não sinto mais dor. Além disso, retomei meu relacionamento com a minha mãe antes que ela falecesse, em 2020.

Em relação à publicação, meu maior aprendizado tem sido me conectar com pessoas da América Latina, com gente que compartilha comigo a paixão por Mercedes Sosa.

Durante anos, eu me senti muito só, pois tinha apenas duas pessoas com quem podia compartilhar meu entusiasmo. De repente, tive milhares de seguidores no Facebook e muitas pessoas me escrevendo, compartilhando suas histórias pessoais sobre um show ou um encontro pessoal com Mercedes Sosa. Isso também aumentou minha compreensão sobre a situação social e política na América Latina naquela época, bem como atualmente.

Também conheci muitos artistas e hoje em dia ouço sobretudo música latino-americana.

Sou muito grata aos latino-americanos que me encorajaram e me receberam de braços abertos. Fiz novas amizades, e minha vida foi enriquecida de muitas maneiras.

Edição: Leandro Melito/ Brasil de Fato