Aromas de Março
Trabalho, tempo livre e cuidados
Por Miriam Nobre*
Da Página do MST
Nós, da SOF – Sempreviva Organização Feminista, muitas vezes utilizamos o texto “A sustentabilidade da vida humana: um assunto de mulheres”, de Cristina Carrasco, em atividades de formação para debater a economia feminista. Uma passagem do texto provoca bastante reflexão:
“Seguramente, se sem prévia informação, uma ‘extraterrestre’ viesse observar nossa organização de desenvolvimento da vida cotidiana, colocaria uma primeira pergunta de bom senso: como é possível mães e pais terem um mês de férias ao ano e as crianças quatro meses? Quem cuida delas? Ou como é possível que os horários da escola não coincidam com os de trabalho? Como se organizam as famílias? Isso sem que ela observe o número crescente de pessoas idosas que requerem cuidados diretos. Provavelmente nossa extraterrestre ficaria impressionada com a péssima organização social de nossa sociedade.”
O distanciamento no olhar de quem vem de outro planeta nos permite desnaturalizar o fato de que o cuidado das crianças, a reprodução da futura força de trabalho, é primordialmente responsabilidade da família. Neste modelo de família em que o pai é provedor e a mãe, dona de casa, a responsabilidade sobre as crianças recai principalmente sobre elas, as mães. Este modelo se organiza em torno de uma divisão sexual do trabalho. Nas análises econômicas e sociais, na lógica das empresas e das políticas públicas, a produção de mercadorias está separada da produção das pessoas que nela trabalham, a reprodução social. Além de separadas estão hierarquizadas: a lógica e os tempos da produção de mercadoria organizam a vida como um todo. É o que conta. Inclusive, literalmente, nas contas de Produto Interno Bruto e orçamentos públicos. A produção de mercadorias, o trabalho remunerado, é associada aos homens e a reprodução social, o trabalho doméstico e de cuidados, às mulheres.
O fato de a economia capitalista contar com o trabalho não remunerado das mulheres para se manter afeta a forma como elas estão no mercado de trabalho. Não por acaso a taxa de participação das mulheres no mercado de trabalho no Brasil (quantidade de mulheres que trabalham de forma remunerada ou voluntária ou estão desempregadas em relação ao total de mulheres) era em 2019 de quase 55%, distante da taxa de participação dos homens que era de quase 78%. Os menores índices (quase 50%) eram de mulheres negras responsáveis por crianças com menos de 3 anos.
Mulheres com trabalhos remunerados fora de seu domicílio, ainda mais nas grandes cidades onde dedicam várias horas do dia ao deslocamento, têm que contar com vizinhas, parentes ou alguma outra mulher que com uma ajuda de custo buscam suas crianças na creche ou na escola e as esperam chegar. E o que fazer com as crianças durante as férias escolares? Novamente contar com arranjos familiares, de vizinhança, combinações com as mães dos colegas, ou seja, soluções particulares ou comunitárias. Na maioria das vezes são as avós que cuidam das crianças nos períodos em que não estão na escola. Nas férias escolares as avós que moram no interior, no sítio, recebem suas netas e netos com muita alegria. Mas todo este carinho não deve ocultar o fato de que o cuidado ainda é considerado um assunto de mulheres e redistribuído entre elas, desde muito pequenas até bem idosas.
É muito bom que as crianças possam conviver no sítio. Mas estas alegrias com gosto de bolo de fubá não devem ocultar que o campo funciona como uma reserva de cuidados para as sociedades urbanas. Quando as mulheres vão viver na cidade e não é possível se organizar para trabalhar e cuidar dos filhos, elas mandam as crianças serem cuidadas pelas avós. Quando as pessoas de origem rural que vivem na cidade adoecem ou demandam mais cuidados na velhice é comum irem morar com as parentes que continuaram vivendo no campo.
Quando a reserva de cuidado se junta com a classe então é mais trabalho para as mulheres. Quantas companheiras e filhas de caseiros de fazenda ou chácara não são convocadas a trabalhar na cozinha, limpeza ou cuidado das crianças dos patrões? Muitas vezes seu trabalho é considerado complementar ao do marido ou pai e não é remunerado, ou é pouco retribuído com um “dinheirinho”. Neste caso a distribuição desigual dos cuidados se dá pela sobrecarga das mulheres trabalhadoras, na maioria das vezes negras e indígenas. Algumas vezes esta relação envolve muito carinho. Penso na Tia Anastácia do Sítio do Pica-pau Amarelo. E ela me faz pensar nas imagens de controle que Patrícia Hill Collins descreve. Espera-se que as mamies amem, alimentem e cuidem dos filhos e das “famílias” brancas melhor que dos seus.
Nossa extraterrestre observa famílias heterossexuais com pai e mãe assalariados com direito a férias remuneradas. Ainda assim o tempo dedicado aos afazeres doméstico é uma marca da desigualdade. A Pesquisa Nacional de Amostragem Domiciliar – PNAD desde que começou a captar esta informação aponta que as mulheres dedicam quase o dobro do tempo dos homens. Em 2019 as mulheres dedicavam 21,4 horas semanais aos afazeres domésticos frente a 11 horas dos homens, estas horas aumentam no caso das mulheres rurais. Além disso, em nosso país quase 42 % da força de trabalho está no mercado informal, muito provavelmente sem férias remuneradas, e aumenta o trabalho por conta própria, em especial entre as mulheres negras. Além do mais, 16% das famílias tem somente uma mulher adulta como responsável.
A contagem das horas dedicadas ao trabalho doméstico e de cuidados seguramente é subestimada e uma pequena parte do que este envolve. Mas que um trabalho é uma disponibilidade física e emocional permanente ao outro. As festas de final de ano, por exemplo, mobilizam não só muitas horas das mulheres no preparo das comidas e do ambiente, mas também muita energia para convidar, convencer as pessoas a participarem e lidar com os dilemas e os conflitos familiares. Espera-se que as mães sejam o elo e que as famílias recomponham sua unidade, fundamental para responder todas as necessidades de apoio e cuidado que teremos ao longo do próximo ano como seres vulneráveis que somos.
Mulheres trabalhadoras que lutam pela redução da jornada de trabalho e pelo tempo livre fazem parte de nossa memória feminista. A reprodução social, e a própria sustentabilidade da vida devem estar no centro da organização econômica e social. Para isto é essencial questionar a responsabilização das mulheres e das famílias pelo cuidado, ou seja: desprivatizar e desfeminizar os cuidados. Nossa aposta é por redes comunitárias de cuidado que aprendam de práticas tradicionais e cotidianas e de experiências de autogestão de organizações sociais, ainda mais daquelas que se forjam no calor da luta. Estas práticas podem informar parcerias público-comunitárias em que as lógicas, os tempos, os caminhos das ações do Estado sejam orientados pelos movimentos sociais e comunidades organizadas. Desta forma abrimos tempos para o cuidado, o autocuidado, o cuidado de quem cuida. Para celebrar a vida em comum de modo a que a festa não seja trabalho, mas o trabalho, festa. Para balançar sossegada numa rede amarrada nas árvores sentindo aromas dezembrinos de manga.
*Miriam Nobre é militante da Marcha Mundial das Mulheres, integrante da equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista e do GT de mulheres da ANA Articulação Nacional de Agroecologia
**Editado por Fernanda Alcântara