Aromas de Março
Carnaval: cultura popular e resistência
Por Jade Percassi, Júlia Iara Araújo e Ana Chã*
Da Página do MST
2022 chegou chegando, não é verdade? Cada vez mais gente testando positivo para Covid-19, outro tanto caindo na cama de gripe, os números da fome de desemprego que só fazem subir, gente querida que parte ou fica doente, deixando um aperto no coração, todo o tipo de violências, muitas das quais estimuladas pelos discursos de ódio do presidente genocida e sua turma que, mesmo alvo de inúmeras denúncias, se mantêm seguros pela teia de poderes, interesses e mentiras que foram engendrando.
Apesar de tudo isso, ou melhor, por tudo isso, a grande maioria de nós sonhava poder colocar sua mais ousada fantasia ou, ao menos, divertidas máscaras, e pular carnaval como forma de construir e celebrar uma alegria necessária, e através de vozes coletivas, colocar na rua as críticas à dura realidade, mas também nosso esperançar.
Enquanto isso não é possível, vale sempre lembrar das origens e desse caráter popular e de resistência da grande festa e ao mesmo tempo, solidariamente reivindicar auxílio às trabalhadoras e trabalhadores que dependem do carnaval para sua sobrevivência.
“E um dia, afinal, tinham direito a uma alegria fugaz, uma ofegante epidemia que se chamava carnaval”
(Chico Buarque)
Entre tantas outras manifestações culturais coletivas, o carnaval é certamente uma das mais conhecidas, estando presente em muitos países de diferentes regiões do mundo, embora o mundo o veja como o grande cartão-postal do Brasil.
Suas origens remontam à antiguidade; há registros de mais de mil anos atrás de festejos realizados no início do ano, em que havia uma suspensão temporária dos trabalhos e das hierarquias sociais entre camponeses, artesãos, obreiros, escravos, sacerdotes e governantes. Era comum o uso de máscaras, que além de promover o anonimato contribuíam para uma sensação de liberdade. A Igreja Católica estabeleceu os limites morais para a realização das celebrações, com a criação da quaresma no século oito, um período de quarenta dias de abstinência e resguardo logo após os excessos de bebida, comida, dança e liberdade sexual.
No Brasil o carnaval vem sendo brincado desde o período colonial, quando o entrudo, de tradição portuguesa, passou a ser praticado pelas pessoas livres e escravizadas, que saíam às ruas jogando água, lama e limões de cheiro umas nas outras. Nos anos de 1800 ao início dos 1900 surgiram os cordões e ranchos, as festas de salão, os corsos, e as escolas de samba. Marchinhas, sambas e outros gêneros musicais foram incorporados, e os afoxés, frevos e maracatus criados a partir das culturas ancestrais africanas passaram a fazer parte da tradição carnavalesca brasileira.
O samba, uma das grandes marcas do carnaval, nasce entre as camadas populares como uma arte manifesta das contradições da vida social. Como narrador coletivo, o samba conta grandes crônicas da história das classes subalternas, a história do Brasil. O cotidiano do trabalho, as contradições da formação urbana, da questão agrária, os afetos, a fome, a política, entram em cena pra debate, pra denúncia, pra “zoação” através da festa, tendo a malandragem como estratégia de afirmação do direito de existir criativa e politicamente, uma subversão ao não-lugar. A malandragem é um pulo do gato, um legado dos quilombos, que mais que a estratégia de resistência pela organização de território, deixa como tática de resistência o trabalho com a linguagem, o poder do batuque, a força dos tambores.
Estes pilares da resistência estão no chão histórico das festas populares, o seu sentido comunitário, a sua construção coletiva, sua capacidade organizativa, criativa, sua capilaridade profunda entre as massas. Na cultura popular, muitas vezes se vê reproduzida, ainda que simbolicamente, o exercício da subversão. Trabalhadoras e trabalhadores parecem imbuídos do poder fantástico de suspender o real e criar, na festa, não a harmonia entre classes, mas o reinado da sua própria classe numa condição de liberdade.
A raiz orgânica da festa popular, e da cultura popular, é não à toa espaço de muitos conflitos e disputas. Nunca pôde ser completamente extinto, suprimido, mas pode ser, como veremos, muito apropriado pela hegemonia, bem como reivindicado para os cultivares da contra hegemonia.
Por isso o samba, e o carnaval, nem sempre foi reconhecido como expressão da cultura nacional, oficialmente. Ao contrário, foi perseguido, inferiorizado e reprimido. No período do Estado Novo, nos anos 40, a ditadura perseguia sambistas e artistas populares e houve investidas da censura político-ideológica aos enredos e fantasias das escolas de samba.
A partir da ditadura civil-militar, “passagem desbotada na memória das nossas novas gerações”, com variações entre momentos mais alienados ou mais politizados, as críticas sociais e políticas passaram a ser uma dimensão constante dos desfiles. Os anos de ditadura significaram também uma nova inflexão nas estratégias de dominação cultural, seguindo o fluxo da modernização conservadora, se consolida nesse período a Indústria Cultural, com a implantação de grandes complexos de comunicação.
Cumpre, a partir de então, dupla função: difusão de valores dominantes e mercantilização de expressões culturais de norte a sul do Brasil. O carnaval não passa ileso pela investida. Desde os anos 60, a institucionalização proposta pelo Estado para as políticas culturais também serviu para regulamentar e refuncionalizar muitas festas populares com forte potencial questionador, propondo ao que antes eram terreiros comunitários de cultura, um formato mais empresarial.
Apesar de uma origem democrática, onde todas as camadas sociais podem participar, muitas mudanças ocorreram durante os últimos anos à grande festa popular. O carnaval foi sendo apropriado pela indústria cultural, e tornado um espetáculo que expressa e aprofunda as desigualdades sociais em nosso país. Além da separação entre os que trabalham e os que consomem, com a criação dos sambódromos e de camarotes de altíssimo custo, os desfiles são televisionados, relacionando e direcionando as apresentações aos interesses dos patrocinadores e dos meios de comunicação de massa.
A contradição rola solta no interior da cultura popular, coexistem entre estranhamentos sentidos conservadores, valores hegemonizados, e resiste, pulsante, guerreira, a veia imperecível dos povos inconformados. Há subterfúgios, há segredos na linguagem, na forma e conteúdo históricos, na memória. Por isso Carnaval é bom, e é nosso! Carnaval é suor e festa do povo. Espaço de dizer, malandramente, o que a gente quer e precisa dizer.
“Brasil, chegou a vez de ouvir suas Marias, Mahins, Marielles, malês”
(Samba-enredo da Mangueira, 2019)
Embora sempre tenham estado presentes desempenhando diferentes papéis, as mulheres foram apagadas da memória coletiva e da historiografia oficial sobre essa manifestação cultural eminentemente popular. Desde as das tias baianas nas famosas rodas de samba que contribuíram para a criação e a consolidação das escolas de samba no Rio de Janeiro, apoiando os músicos e abrindo as portas de suas casas, às compositoras e intérpretes que tiveram participação destacada na difusão do samba e de outros gêneros musicais da cultura popular.
É muito comum a gente se perguntar “e a mulherada onde é que tá?”, ao observar o reconhecimento majoritariamente masculino na produção artística popular, mas a verdade nós sabemos. Elas estão lá! Elas estão aqui! Seja coordenando processos na linha de frente da produção das festas, dividindo tarefas, partilhando saberes, operacionalizando os corres práticos (qualquer semelhança com nossa atuação política, não é mera coincidência hein!), seja à frente do exercício artístico, nossas Clementinas, nossas Ivones, nossas Beths, nossas Claras, nossas Elzas.. As mulheres são dirigentes, organizadoras da cultura no Carnaval e na vida.
Agora como em tudo o mais, há um problema na representação disso no espetáculo da Indústria Cultural. Não dá pra passar por esse tópico sem mencionar como, assim como a festa, o corpo e a participação são profundamente violentados pelo signo da mercadoria. Ao coisificar a festa, se coisifica o sujeito orgânico por trás dela também. Certamente isso é mais duro para as mulheres. O corpo que dança, onde a pele é tela para pintar, com coloridas belezas, o reino da liberdade, está sujeito a uma cultura de extrema sexualização e objetificação. O perigo disso não é moral é, entre outras coisas, o de se suprimir a ação subversiva do erotismo, por uma conduta patriarcal e machista que não reconhece a autonomia da mulher, mas seu valor enquanto produto – portanto suscetível à vontade e ao desejo do outro. Essa conduta patriarcal é incentivada pela forma como a indústria cultural representa as mulheres, ao lugar que ela destina à participação feminina, mesmo quando, a nível de discurso, parece exaltar as mulheres (quase sempre pela beleza, sensualidade, e demais valores padronizantes).
Não há nada mais potente do que a alegria e o riso dos marginalizados, contra aqueles que violentam e oprimem”
(Roberto DaMatta)
Há na cultura popular um vínculo com o trabalho coletivo que é muito caro para nós. Ao decidir, ao instituir, dias de festa onde não é o trabalho explorado o regente central da vida, os trabalhadores e trabalhadoras (todos e todas, incluindo as crianças e os idosos) reavivam uma experiência de engajamento diferente. Das escolhas dos temas, das fantasias, das letras, dos detalhes e cores, da construção de enormes bonecos, brincantes de toda espécie, o Carnaval mobiliza trabalho comunitário, divisão de tarefas que abrem espaços para todas e todos, numa participação em trabalho pedagógico. Durante meses as comunidades se organizam, se preparam com ansiedade para o elogio da brincadeira. Para os dias em que as vontades coletivas vão se encontrar na rua e… Brasil… tá tudo bem. E não tá tudo bem, também. E é assim mesmo, bem e mal, que os blocos costumam ir pra rua. Cada qual apresentando em cena um corpo cheio de ideias e de desejos.
O carnaval está também no campo. Está presente na alegria organizada e intencionalizada do MST, onde cumpre um importante papel de integração entre campo e cidade, movimentos culturais e coletivos artísticos. Os blocos do Movimento Sem Terra, organizados em diversos estados, fazem agitação e propaganda refletindo temas da conjuntura e colocam na rua ideias rebeldes para semear dias de luta, pra pautar o nosso projeto popular e batucam a esperança de um mundo novo, justo e feliz, como deve ser.
Quem é que não está a fim de cair nos braços da rua e reencontrar nela alegrias, alegorias, segredos (inenarráveis para as quartas de cinza) e aquele grande sentido de realização que só é possível em coletivo, em multidão, em catarse? Sonhar para o Carnaval uma grande revolução. Sonhar o carnaval um exercício, ensaio necessário da ousadia do povo: construção coletiva e massiva!
Esse ano não vamos ter carnaval de rua, mais uma vez. Mais um ano teremos de nos encontrar com a nossa saudade e com a nossa capacidade de fazer valer um carnaval recluso, bem menos excitante, bem menos coletivo, mas ainda vivo. Em função da pandemia, vamos ter de reinventar nosso festejo, invocar a malandragem brasileira que há em nós para dispor de cores, revolta, batuque e fantasia para quando este carnaval de 2022 nos alcançar. Vamos prepará-lo para as ruas que, quiçá, serão nossas novamente muito em breve.
“Meu Deus, vem olhar, vem ver de perto uma cidade a cantar a evolução da liberdade até o dia clarear”
(Chico Buarque)
*Ambas fazem parte do Coletivo Nacional de Cultura do MST
**Editado por Fernanda Alcântara