Chicão, Presente!
Como vencer a morte: uma homenagem ao pai e companheiro Chicão
Por Janaina Strozake*
Da Página do MST
Quando o telefone toca as duas da madrugada, dá medo de atender, a gente já imagina a notícia.
“O pai acabou de falecer”, minha irmã me conta, meu irmão repete, tento ligar para outra irmã e outro irmão… Talvez repetindo as palavras, quem sabe começarei a acreditar nelas.
Que fazer? A gente chora, a gente lembra, a gente baixa os olhos pra terra buscando as raízes, cadê meu pai, cadê, não estará pra contar sobre a produção de leite e de açúcar e cachaça e tanta fruta e comida boa, a conquista do chão, aquele cerco da polícia, ou aquela ocupação de terras, ou aquela peleia com os pistoleiros… ou aquela história lá de 1986, da feroz ocupação no Palacio Iguaçu. Ou de quando fundamos o MST, ou das assembleias de sem terras que você coordenava lá pelos 1982 e em casa só se falava do MASTRO.
A madrugada vai passando rápida e percebo que há uma dobra no tempo e espaço, vejo meu pai curando um machucado de meu irmão, vejo suas mãos de dedos longos trançando taquara, vejo ele empunhando um facão ao enfrentar dois pistoleiros, e fazendo trabalho de base, e coordenando a ocupação, e fundando a Copavi, e chorando a morte de minha irmã Salete assassinada pela fome de lucro desse capitalismo que ódio no dia mais triste de nossa vida, e coordenando mais ocupação, e plantando árvores e embalando netos. Nessa dobra do tempo estou aqui com meu pai, em seus poucos anos na escola, suficientes para fazerem dele próprio uma magnifica biblioteca.
Estou vivendo de novo aquela infância onde meu pai inspira em nós um mistério que o tempo desvenda.
Buscando as raízes adentro o momento sublime, sacrifical, silente, de chegada e partida, onde vemos a matéria feita energia e as almas se conectam nessa força refazedora do universo.
Vejo como meu pai cresce. Raízes profundas e fortes. Todo um sistema radicular de onde brotam pessoas, ideias, coletivos, onde a vida se concretiza.
Chorando e lembrando, ergo os olhos e te vejo, seu Chicão, tomando um mate e sorrindo. Sorrindo como essa árvore que te dá sombra agora. Sorrindo de ver a Copavi em frente. De ver o MST, teu rebento, honrando as raízes e celebrando as sementes. Tuas palavras lá em 1993, “nós temos que produzir comida, muita comida, porque tem muita gente com fome” vão sendo uma realidade bela e esperançosa.
Esse é o mistério que se manifesta: ante a inevitabilidade da morte, a vitória está em viver o sentido da vida. Sonhar, amar, criar. Defender o vulnerável. Desfrutar com as pequenas ações e conquistas, que só no coletivo se tornam enormes.
Viver a luta ao lado da classe trabalhadora, em todas suas trincheiras, é a forma de reconstituir a própria vida na hora da morte, é o que me está contando agora Francisco Strozake, mateando aqui ao meu lado.
A barra no céu vai tintando de vermelho, anunciando o sol. O peito dói e vejo a energia de meu pai germinando em árvores e revoluções.
Francisco Strozake! Presente! Presente! Presente!
Em Gijón, Asturias, quando no Brasil chega a meia noite 08/04/2022.
*Janaina é filha de Chicão
**Editado por Fernanda Alcântara