Direitos Indígenas
Realidade indígena no Brasil: “Temos medo. A gente desconfia de todos ao nosso redor”
Por Martha Raquel
Da Página do MST
A situação dos povos indígenas no Brasil piorou nos últimos anos; o discurso de Jair Bolsonaro de não demarcar as terras indígenas e apoiar o garimpo em Terras Indígenas tem incentivado as invasões. É o que considera Ivo Cípio Aureliano, indígena Makuxi e assessor jurídico do Conselho Indígena de Roraima (CIR). “Os invasores são recebidos pelo Chefe maior do País, enquanto os povos indígenas continuam sendo desrespeitados, perseguidos e xingados”, explica Aureliano.
Neste Dia de Luta e Resistência Indígena, uma triste realidade faz parte da rotina dos povos originários vítimas do garimpo ilegal. Por conta da atividade clandestina, da contaminação de rios, terras e ar e da violência que permeia os ambientes, ameaçando os indígenas e atentando contra suas vidas, o clima nas comunidades é de medo e insegurança.
“Às vezes a gente fica pensando que queríamos ter nascido em outro momento, onde nós pudéssemos ser respeitados, ter nossos territórios demarcados e viver em paz, sem nos preocupar com os invasores”, conta Aureliano. “Infelizmente vivemos em clima de guerra. Antes os invasores eram garimpeiros, os fazendeiros, os madeireiros e outros, mas hoje é o próprio Estado que incentiva tudo isso e não cumpre seu papel de nos proteger”.
Segundo o assessor jurídico, a sensação entre os indígenas é de vigilância constante. “Somos vigiados, eles podem invadir a nossa casa, ameaçar as nossas famílias, nos perseguir e até planejar atentados contra nós. Não temos sossego, parece que somos nós os invasores. Isso é muito triste”, desabafa o indígena Makuxi.
“A gente fica preocupado o tempo todo, a gente desconfia de quase todos ao nosso redor. Nós que estamos na linha de frente precisamos tomar todos os cuidados, mas a gente sabe que não é suficiente porque não temos a quem recorrer”, pontua. “E a luta precisa continuar, porque se nós não lutamos, quem vai lutar por nós? Nós nascemos na escola de luta e precisamos continuar lutando para ver se a gente consegue construir um lugar melhor para os nossos filhos, para a próxima geração, porque até aqui pessoas estão morrendo para garantir um futuro melhor para o nosso povo”, finaliza.
Para ele, é preciso que a sociedade brasileira aprenda mais com os povos indígenas, já que a luta deveria ser de todos os brasileiros. “Os povos indígenas dão um exemplo de cidadania, se organizam, vão até Brasília e cobram seus direitos. Até quando viveremos numa sociedade tão desigual?”.
Mas o que é demarcação?
O ato de demarcar terra indígena é uma obrigação constitucional da União, como dispõe o artigo 231 da Constituição Brasileira. É o ato de reconhecer que uma determinada área ocupada tradicionalmente pelos povos indígenas é Terra Indígena. Mesmo assim, os governantes têm negado esse direito fundamental dos povos indígenas.
“Ter terra demarcada significa reconhecer um direito fundamental, é cumprir a Constituição, reconhecer que o Brasil é um país com uma diversidade. É garantir a sobrevivência física e cultural dos povos originários desse país, porque a relação dos indígenas vai muito além de uma relação física ou mercantilista, os povos têm um vínculo espiritual e ancestral com aquele território”, explica Aureliano.
“Mesmo sendo um direito constitucional, os direitos dos povos indígenas têm sido muito atacados por grupos políticos e grandes latifundiários, principalmente o direito à terra. A todo momento buscam alterar a Constituição e as leis que asseguram o direito territorial dos povos indígenas”, continua o assessor do CIR. “Eles propõem Projetos de Lei e outras medidas para acabar com a demarcação de terras indígenas. Hoje os principais agentes são o próprio Governo Federal e seu grupo político, parlamentares, empresários do agronegócio e mineração”, finaliza.
O papel das grandes mineradores e transnacionais
As grandes mineradoras fazem um lobby para tentar aprovar leis para explorar as Terras Indígenas e, inclusive, financiam políticos, denuncia Aureliano. “Chamamos as grandes multinacionais de monstros sem rosto, eles vêm de longe, compram de tudo, compram deputados, senadores e até autoridades da Justiça para conseguir decisões favoráveis a seus projetos”, explica.
“São verdadeiros destruidores da natureza, se eles entrarem nas terras indígenas, vão causar grandes desastres como aconteceu em Brumadinho e em Mariana. Levam a morte e a destruição. Por isso os povos indígenas lutam contra eles”, desabafa.
101 Yanomami mortos em um ano
O relatório Conflitos no Campo Brasil 2021, divulgado na última segunda-feira (18) pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), revela que o garimpo ilegal se tornou um dos principais indutores da violência no campo, sendo responsável por 92% das mortes por conflitos registradas pela entidade.
Em 2021 foram identificadas 109 mortes por conflitos no campo em todo o Brasil, um aumento de 1.110% em relação aos dados do ano anterior, que registraram 9 mortes em todo território nacional.
Das mortes registradas no último ano, 101 correspondiam a indígenas Yanomami assassinados por garimpeiros ilegais. As mortes estão relacionadas à violência e à falta de assistência médica, bem como à escassez de caça, pesca e coleta de alimentos. Segundo o relatório, a situação se agrava com a omissão e conivência do Estado.
Aliança em Defesa dos Territórios
Uma aliança inédita entre povos Kayapó, Munduruku e Yanomami, criada em dezembro de 2021 em Brasília, vem traçando ações e estratégias de resistência e combate ao garimpo ilegal que poluí a natureza, mata os rios, destrói comunidades e persegue indígenas na região Norte do país.
A Aliança em Defesa dos Territórios tem como horizonte barrar o Projeto de Lei 191/2020, que pretende regulamentar a mineração nos territórios indígenas.
A região Amazônia concentra atualmente 93,7% da atividade garimpeira no território brasileiro, de acordo com levantamento do MapBiomas. O garimpo ilegal cresceu quase 500% nas Terras Indígenas entre 2010 e 2020 e atinge principalmente os territórios Kayapó (PA), Munduruku (PA) e Yanomami (RR).
“As organizações e lideranças indígenas têm buscado se organizar cada vez mais para denunciar em todas as instâncias nacionais e internacionais as violações de direitos humanos dos povos indígenas, buscando responsabilizar o atual governo e seu grupo político. Temos hoje, também, vários advogados indígenas que estão atuando perante a Justiça Brasileira para garantir a proteção dos povos indígenas”, afirma o assessor jurídico do CIR.
Aureliano explica que hoje os povos indígenas estão organizados em todos os níveis, tanto a nível estadual, regional, nacional e internacional. “Temos a nossa maior organização a nível nacional conhecida como APIB, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, que reúne as organizações regionais”.
Criada em uma grande assembleia dos povos indígenas que iniciou em 2004, a APIB hoje é inspiração para diversos povos que têm procurado se organizar como forma de fortalecer a luta política e jurídica. As organizações podem ser de um só povo, território ou de vários povos, como é o caso do Conselho Indígena de Roraima.
Documento final do Acampamento Terra Livre 2022
Como caminho para a resistência, os indígenas do Acampamento Terra Livre 2022 divulgaram um documento com propostas e demandas para a luta no próximo período. 1Confira a íntegra abaixo:
“Nós somos mais de 8 mil lideranças de 200 povos indígenas, que viemos de todas as regiões do Brasil para nos reunir no 18º Acampamento Terra Livre – ATL. Respondemos ao chamado de nossa mais elevada instância de representação nacional – a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e de suas organizações regionais. Viemos a Brasília para colorir a capital federal de urucum e jenipapo, com as múltiplas cores de nossos cocares e para demonstrar ao país e ao mundo que, assim como aprendemos com nossos ancestrais, seguimos e seguiremos juntos, resistindo contra os distintos projetos de extermínio que as elites, donos ou representantes do capital e seus sucessivos governantes e aliados no Poder Legislativo têm articulado contra nós ao longo desses 522 anos.
Como nos tempos da invasão colonial, enfrentamos um declarado plano de morte, etnocídio, ecocídio e genocídio, nunca visto nos últimos 34 anos de Democracia no nosso país. Bolsonaro, desde sua campanha eleitoral e já no primeiro dia de seu mandato, proferiu discursos racistas e de ódio contra os Povos Indígenas, elegendo-nos como inimigos preferenciais e promovendo o desmonte do Estado, principalmente das instituições, políticas e programas que conquistamos ao longo das últimas três décadas, voltadas a atender nossas necessidades, interesses e aspirações, em linha com os direitos que nos assegura a Constituição Federal de 1988.
Além de defender a nossa integração à chamada sociedade civilizada e uma propagandeada cultura nacional, visando a dissolver as nossas diversas identidades socioculturais, Bolsonaro incentivou invasões aos nossos territórios e a violência contra nossos parentes. O atual presidente trabalha ainda para legalizar a atuação das organizações criminosas que agem nos territórios: garimpeiros, madeireiras, pecuaristas, milicianos e grileiros.
Bolsonaro, além de desmontar o Estado, para justificar a privatização do patrimônio público, ainda persiste na implementação do seu pacote de destruição e morte, com a implantação, em nossos territórios e seus entornos, de empreendimentos devastadores como a mineração, hidrelétricas, portos, estradas, linhas de transmissão e produção de monocultivos com o uso ostensivo de veneno.. No Congresso Nacional, Bolsonaro e sua base de sustentação, maioritariamente ruralista e evangélica, defendem uma série de iniciativas legislativas que visam a materializar o seu projeto de morte. Entre estas iniciativas, destacam-se o Projeto de Lei 490/2007, do Marco Temporal; PL 191/2020, da Mineração em Terras Indígenas; PL 6299/2002, pacote do Veneno; PL 2633/2020 e PL 510/2021, da grilagem de Terras públicas; PL 3729/2004 (agora PL 2159/2021, sob análise do Senado) do Licenciamento ambiental; PL 2699, do Estatuto do desarmamento e porte de armas.
Precisamos interromper esses processos de destruição e morte. Nossa luta é por nossos Povos, sim, mas também pelo futuro de todos e todas as brasileiras e pela humanidade inteira! Lutamos por um projeto civilizatório de país e de mundo. Um projeto baseado nos princípios do respeito à democracia, aos direitos humanos, à justiça, ao cuidado com o meio ambiente e com a Mãe Natureza; um projeto que respeite a diversidade étnica e cultural do país do qual fazemos parte, com mais de 305 povos diferentes e 284 línguas indígenas, sem racismo, preconceitos e discriminações de nenhum tipo.
Nesse processo de retomada do país, implodido pelo governo Bolsonaro, e de construção do Brasil que queremos, estamos dispostos e prontos a contribuir, como o fizemos ao longo desses mais de 500 anos. Queremos ser protagonistas dos nossos planos de vida, exercer a nossa autonomia em nossos territórios e o nosso direito de participação na formulação, monitoramento e avaliação das políticas públicas que nos dizem respeito. Consideramos também fundamental aumentarmos a nossa representatividade nas Casas Legislativas, não só porque é nelas que correm as principais ameaças aos nossos direitos fundamentais, assegurados pela Constituição Federal de 1988, mas também porque queremos estabelecer um nível de diálogo institucional em condições de igualdade com todas as esferas de governo e do Estado brasileiro.
Assim, conjugado com as lutas nos nossos territórios, as mobilizações permanentes, junto à sociedade nacional e internacional, e a ocupação dos territórios virtuais, de mãos dadas com movimentos e setores aliados da sociedade, iremos removendo com o tempo e a ação coletiva o atual cenário de barbárie do capital, do ódio fascista e do racismo estrutural deste sistema, males implantados que atingem não só a nós os indígenas mas também a outros setores vulnerabilizados como os quilombolas, comunidades tradicionais, agricultores familiares e pobres, principalmente negros e negras, que vivem nas periferias das cidades brasileiras.
Para isso reafirmamos a nossa determinação de continuar lutando, em memória dos nossos ancestrais e pelo bem viver das atuais e futuras gerações dos nossos povos, pela garantia e proteção dos nossos direitos fundamentais, da nossa identidade e dos nossos territórios e tudo que sustenta as condições para a nossa existência física, cultural e espiritual. Se preciso for, daremos a nossa vida para defender o que conquistamos e preservamos até hoje, após muitas perdas e muito sangue dos que nos antecederam nestas lutas.
Por fim, chamamos a todos os nossos Povos, organizações e lideranças para trabalharmos permanentemente pela unidade nas nossas lutas, respeitando a nossa diversidade, de modos de vida diferentes marcados pelos distintos acontecimentos que as políticas e práticas coloniais e neocoloniais promovidas pelos invasores e que nos impactaram ao longo da nossa história.
Reafirmamos que nossa união é fundamental para avançarmos, juntos, rumo ao nosso projeto de país plurinacional, de paz, justiça, e harmonia com nossa Mãe Natureza. Foi isso que nossos ancestrais compreenderam: não há espaço para a divisão, para o sectarismo, para qualquer tipo de violência entre nós. Esse esforço constante para costurar uma articulação ampla e potente em nível nacional se fortalece! Saímos deste ATL ainda mais unidos, com a certeza de que é esta a nossa maior fortaleza!
Pelo respeito aos nossos ancestrais, aos nossos anciões, às mulheres, crianças e jovens que somaram e continuam a somar em todas as lutas pela defesa da nossa vida, dos nossos territórios, identidade e autonomia, proclamamos a nossa determinação de continuar vigilantes, conectados política e espiritualmente, sem dar nenhum passo atrás em nossa ampla aliança e no compromisso intransponível de defender os nossos direitos fundamentais.
Por um país realmente democrático, justo, multicultural, que respeite e proteja as nossas vidas e da Mãe Natureza, seguimos em aliança com os trabalhadores do campo e da cidade, em luta permanente”
O documento datado de 14 de abril de 2022 e assinado pela Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Brasil (APIB), também traz pontos para uma plataforma indígena de reconstrução do Brasil.
“Como parte das elaborações e reivindicações do movimento indígena brasileiro, já apresentadas em diversas ocasiões, aglutinamos a seguir algumas propostas que entendemos ser ponto de partida para a reconstrução do Brasil. Estas propostas foram apresentadas à plenária final do décimo oitavo ATL.
EIXO 1 – DIREITOS TERRITORIAIS INDÍGENAS – DEMARCAÇÃO E PROTEÇÃO AOS TERRITÓRIOS INDÍGENAS JÁ!
1 – Garantia de recursos suficientes para a identificação, delimitação, declaração, demarcação e homologação imediata de todas as Terras Indígenas,;
2 – Elaboração de Plano factível para imediata desintrusão de todas as terras indígenas, invadidas por fazendeiros, grileiros, madeireiros, garimpeiros e outros invasores;
3 – Constituição de uma Força Tarefa Interministerial para criar Planos Permanentes de Proteção das Terras Indígenas bem como assegurar recursos e condições necessários para a sua manutenção e a participação direta das comunidades indígenas;
4 – Fortalecimento da política especial de proteção e de não contato aos povos indígenas isolados e de recente contato.
EIXO 2 – RETOMADA DOS ESPAÇOS DE PARTICIPAÇÃO E CONTROLE SOCIAL INDÍGENAS
1 – Assegurar o exercício do direito de consulta livre, prévia e informada aos povos indígenas em conformidade com a Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT); quando medidas administrativas e legislativas impactem seus territórios e direitos, respeitando os protocolos autônomos de consulta e consentimento elaborado pelos povos e comunidades;
2 – Reativação de todos os dispositivos de participação e social, em que os nossos povos tinham representação: Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI); Conselho de Segurança Alimentar (CONSEA); Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA), Conselho Nacional de Saúde (CNS), Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH);
3 – Fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS) e o Subsistema de Saúde Indígena (SESAI/SUS), bem como implementação da Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial das Terras Indígenas (PNGTI).
EIXO 3 – RECONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS E INSTITUIÇÕES INDIGENISTAS
1 – Reestruturação das instituições responsáveis pela implementação das políticas públicas voltadas aos nossos povos, em especial, a FUNAI e a SESAI, garantindo autonomia, rigor técnico, servidores públicos e dotação orçamentária condizente com as necessidades das ações necessárias à promoção dos direitos indígenas, com respeito à diversidade de povos, gêneros, e gerações;
2 – Criação de mecanismos específicos de proteção a indígenas defensores de direitos humanos, com recursos financeiros e estrutura administrativa condizente;
3 – Garantir a assistência integral à saúde indígena e à educação escolar intercultural e bilíngue respeitando as especificidades culturais e sociais de cada povo indígena.
EIXO 4 – INTERRUPÇÃO DA AGENDA ANTI-INDÍGENA NO CONGRESSO FEDERAL
1 – Impedir o avanço de medidas legislativas que atentam contra os direitos territoriais indígenas, e com urgência, os PL 490/2007, do Marco Temporal e o PL 191/2020 da Mineração em Terras.
EIXO 5 – AGENDA AMBIENTAL
1 – Propor medidas legislativas e administrativas que estabeleçam mecanismos de rastreabilidade de produtos, em respeito à devida diligência, para garantir que não sejam resultantes de conflitos territoriais, explorações ilegais de Tis, e áreas ilegalmente degradadas;
2- Retomar os compromissos e ambições ambientais assumidos pelo Brasil no Acordo de Paris e em outros acordos internacionais do clima e meio ambiente;
3 – Reestruturar o ICMBio e o IBAMA, garantindo autonomia funcional, rigor técnico, servidores públicos e orçamento adequado para que cumpram suas missões institucionais de defesa dos biomas brasileiros;
4 – Reconhecer a contribuição dos Povos Indígena, Quilombolas e Comunidades Tradicionais na preservação da biodiversidade brasileira, criando mecanismos de reconhecimento pelo serviço ambiental prestado e incentivando iniciativas indígenas, como as brigadas indígenas anti-incêndio;
5 – Retomar as políticas de preservação de nossas fontes de água doce, reconhecendo o papel dos Povos Indígenas na gestão de grande parte de nossos recursos hídricos”.
*Editado por Fernanda Alcântara