Memória

Trombas e Formoso: uma referência de resistência camponesa

Entenda a história de camponeses que venceram um grande processo de grilagem no estado de Goiás
Parte da população da região de Porangatu (GO). Foto: Reprodução

Por Cláudio Lopes Maia*
Da Página do MST

O conflito de Trombas e Formoso teve seu auge entre os anos de 1954-1957, numa região que hoje encontra-se o norte goiano, à época, antes da criação do Estado do Tocantins, o médio norte. O conflito foi gerado por um processo de expropriação, ou seja, pela ação de um grupo de grileiros, que através de diversas formas de violência e intimidação expulsavam os camponeses de suas terras. As áreas ocupadas pelos camponeses eram de terras devolutas, sendo que muitos tinham a posse há vários anos.

A formação de uma parte do grupo de camponeses, envolvidos no conflito, teve haver com o processo de formação da Colônia Agrícola Nacional de Goiás (CANG), no ano de 1941, que teve como a base a construção de uma política pública implementada durante o Governo de Getúlio Vargas (1930-1945). Essa política visava formar colônias agrícolas em diversas regiões do país (PESSOA, 1999), criando um cinturão de abastecimento de alimentos para as capitais e ao mesmo tempo incentivando a formação de pequenas propriedades, vinculadas ao mercado e atendidas por programas de incentivo tecnológico.

A propaganda do Governo oferecendo terras, com estrutura tecnológica no interior do país atraiu uma grande quantidade de camponeses, que instalados na barranca do Rio das Almas, vizinho a entrada da Colônia, esperavam o seu acesso a propriedade. As promessas governamentais não foram cumpridas, a entrada para a Colônia era limitada, envolvia diversas exigências, uma grande burocracia e uma baixa disponibilidade de lotes. Parte dos camponeses, cansados da espera, foram atraídos pelas notícias de que no médio norte de Goiás havia uma extensa porção de terras, na condição de devolutas e disponíveis à ocupação, acreditavam inclusive que havia um desejo do Governo do Estado de Goiás que as mesmas fossem ocupadas.

A nova área ocupada estava numa zona de expansão do Estado de Goiás e logo no ano de 1954 foi alcançada pela construção da Rodovia Transbrasiliana, que prometia ser a ligação entre a futura nova capital do país, Brasília e a cidade de Belém (PA). A construção de Brasília e o cruzeiro rodoviário que ligaria a capital ao restante do país produziram uma grande corrida por terras no sertão brasileiro. Diversos grupos eram atraídos pela promessa de valorização das terras, sendo que grande parte delas estavam na condição de devolutas, no caso, com pouco controle privado ou mesmo público sobre a propriedade.

Jornal da época retratando o conflito. Foto: Reprodução

Primeiras lutas camponesas

Os primeiros ataques vivenciados pelos camponeses ocorreram na região da fazenda Formoso, uma área que contava com a presença de um grupo liderado por José Firmino. Os camponeses estavam sendo pressionados a vários dias para pagarem um arrendo sobre o arroz colhido naquela safra, cobrado por um grupo que passou a correr a região se dizendo dono das terras. As diversas ações de pressão sobre os camponeses resultaram num conflito na área de um senhor conhecido como Nego Carreiro e resultou na morte de um sargento da Polícia Militar, que com um grupo ligado aos fazendeiros exigia o pagamento do arrendo. As notícias da morte do policial chegaram aos jornais da capital do estado e davam conta de conflitos por terra no médio norte do estado.

A morte do sargento da política logo teve sua resposta. Um grupo de fazendeiros organizou uma expedição pela região para expulsão dos camponeses e por vingança. O confronto mais uma vez ocorreu na fazenda Formoso e o resultado foi a morte de um dos fazendeiros que fazia a cobrança do arrendo e de uma das pessoas armadas que lhe acompanhava, que a historiografia atribuiu a condição de jagunço. Neste momento a fama de resistência dos camponeses já corria o estado, os jornais noticiavam os acontecimentos com detalhes, as informações chegavam à capital de várias fontes e algumas delas davam alarde sobre a presença de comunistas na área.

A presença dos comunistas tinha haver com um grupo de militantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que também estivera na CANG e deslocaram para a região de Trombas e Formoso logo quando as notícias das primeiras tentativas dos fazendeiros de cobrar o arrendo correu por aquela região. Os militantes do PCB tinham origem no campo e estavam entre os camponeses em busca da sobrevivência e do acesso à terra. Com isso ganharam a confiança daqueles que estavam na luta.

Entre os militantes do PCB destacava-se a presença de Dona Dirce que com seu conhecimento na área da saúde conquistava a simpatia dos lutadores e tornava-se uma importante liderança.

Repressão policial

Os dois conflitos e as diversas mortes ocorridas entre as forças que tentavam expulsar os camponeses atraiu a repressão das forças policiais do estado. Na ocasião foi deslocado para a região o chefe de investigações da Secretaria de Segurança Pública, um coronel da Política Militar, o delegado Regional e uma força de 50 policiais “fortemente armados” (FOLHA DE GOIAZ, 14/06/1955, p.4).

A força policial varreu toda a região a procura de José Firmino e Nego Carreiro. Os camponeses da área são expulsos, contudo nenhum dos líderes procurados são presos e parte dos camponeses e militantes do PCB deslocam-se para uma outra área, que contavam com a presença de José Porfírio e sua família. Inicia ali uma nova fase da luta em Trombas e Formoso.

Segunda fase do conflito

A segunda fase do conflito é marcada pela liderança de José Porfírio em conjunto com os militantes do PCB deslocados da Fazenda Formoso. A região do conflito passa a ser uma área próxima ao arraial de Trombas, conhecida como Fazenda Onça, o grupo envolvido no processo de grilagem também tem nova configuração. Se no primeiro caso destacava a presença de advogados, dono de cartório e agentes públicos da cidade de Uruaçu (GO), na segunda fase é destacada a presença de políticos e proprietários de terra do município de Porangatu (GO).

Diversos conflitos ocorriam na área e no relato de todos, era dado destaque ao domínio dos camponeses sobre a região. A batalha de Tataíra foi uma das que ganhou maior destaque. Os relatos davam conta de uma grande força policial que utiliza um caminhão para entrar na área, usando mulheres e crianças como escudo frente as ações dos camponeses. O resultado foi alguns membros das forças de repressão mortos e a prisão de três velhos, entre os camponeses, ajudando a criar a fama da força do campesinato na região.

Repressão no conflito de Trombas e Formoso: a luta de camponeses em Goiás contra fazendeiros e grileiros. Foto: Reprodução

Os resultados da Batalha de Tataíra levaram a organização de uma grande força policial, deslocada a cidade de Porangatu, quando passaria por treinamento e reconhecimento da área, para o que estava sendo considerado o ataque final a região. Na mesma força que crescia o desejo do governo de derrotar a resistência dos camponeses, ganhava repercussão os acontecimentos na região, principalmente pela imprensa carioca que questionava a capacidade de um estado em convulsão social receber a capital do país. A cobertura da imprensa era em grande parte favorável aos camponeses e os passos dados pelas forças policiais eram acompanhados com detalhes, com entrevistas de comandantes e tentativas de adiantar as estratégias de ataque.

A força do campesinato, demonstrando que uma vitória não seria feita na região sem um grande derramamento de sangue, o acompanhamento direto da impressa, com jornalistas cobrindo os acontecimentos e o debate nacional dando conta do perigo da transferência da capital do país para Goiás puderam explicar as mudanças no plano do Governo do Estado em relação a Trombas.

Em 1956 o Governador retirou as tropas da região e iniciou um processo de negociação com os camponeses, no qual um avião do Estado sobrevoa a região, jogando panfletos na mata em que solicitava que fosse autorizada a entrada de um agente público na região para dar início às negociações para uma solução pacífica.

Acordo de trégua

O desdobramento da nova posição do Estado foi um acordo de trégua, em que os camponeses receberam garantias para ficar de posse de suas terras e foi instalada na região uma delegacia para garantir o cumprimento dos termos do acordo. A vitória dos camponeses foi consolidada em 1962, quando o novo governador do Estado inicia um processo de distribuição de títulos de terra aos camponeses.

A vitória dos camponeses de Trombas teve grande repercussão em Goiás. José Porfírio após a luta na região correu o estado organizando sindicatos rurais e participando de lutas contra processos de expulsão de camponeses e no ano de 1962 foi eleito deputado estadual, sendo o primeiro deputado camponês do estado.

Entrincheirados, posseiros defendem suas terras na região de Porangatu (GO). Foto: Última Hora

Golpe

A História de Trombas talvez fosse de plena vitória se tudo tivesse ficado por ai, mas em 1964 ocorre no Brasil o Golpe Militar. Trombas por sua fama foi um dos primeiros municípios a serem ocupados pelas forças militares e inicia-se uma forte repressão no local com tentativas de prisão aos militantes de Trombas.

Em 1972 o Regime Militar organiza a Operação Mesopotâmia, que corre toda a região entre os Rios Araguaia e Tocantins a procura dos lutadores de Trombas. Na ocasião foram presas diversas lideranças, tanto as ligadas diretamente ao PCB, como José Porfírio, o qual foi encaminhado a uma prisão em Brasília. No dia 07 de junho de 1973, José Porfírio é solto e desaparece a caminho de casa, entre Brasília e Goiânia. Foi considerado, pela Comissão da Verdade, desaparecido político, seu corpo nunca foi encontrado.

O sucesso de Trombas, um dos poucos aquela época, no Estado de Goiás, foi garantido porque os camponeses organizaram a luta ao seu modo. Trombas foi uma luta vitoriosa, apesar do fim trágico de Porfírio, os camponeses venceram um grande processo de grilagem e garantiram a terra em que viviam.

*Professor da Unidade Acadêmica Especial de História e Ciências Sociais da Universidade Federal de Catalão, do Mestrado Profissional de História na mesma instituição e do Programa de Mestrado de Direito Agrário da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás (UFG). 
**Artigo escrito com base na pesquisa intitulada “Os Donos da terra: a disputa pela propriedade e pelo destino da fronteira – A Luta dos posseiros em Trombas e Formoso 1950/1960”, do próprio autor; no livro “A Igreja da Denúncia e o silêncio do fiel”, de Jadir de Morais Pessoa; e do jornal Folha de Goiás.
***Editado por Wesley Lima