Arte e Cultura
“O teatro é do povo”, afirma Sérgio de Carvalho sobre estreia do MST no Theatro Municipal de SP
Por Lays Furtado e Fernanda Alcântara
Da Página do MST
No próximo dia 3 de maio, estreia no Theatro Municipal de São Paulo a ópera “Café”, criada a partir do libreto de Mário de Andrade, publicado em 1942. A obra recebe em sua adaptação contemporânea a direção de Sérgio de Carvalho, dramaturgo, pesquisador, professor e fundador da Companhia Latão, com uma longa carreira dedicada ao teatro.
Em entrevista ao MST, Sérgio generosamente faz um apanhado sobre a construção dessa ópera coral, composta por Felipe Senna, falando sobre as múltiplas vozes que a compõem a apresentação e sobre os desafios dessa nova leitura sobre a dramaturgia de um tempo passado, mas que dialoga com atualidades urgentemente necessárias ao Brasil.
O dramaturgo também conta porquê convidou o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), entre outros(as) convidados(as) como Juçara Marçal, Negro Léo, Carlos Francisco, e outros(as) colaboradore(as) e coletivos de artistas, para integrar uma intervenção à apresentação da ópera.
Em cena, é narrado ao longo da ópera os contornos da crise de 1929, conhecida como a primeira grande depressão capitalista, que afetou o país fortemente a partir de sua dependência econômica agroexportadora da cultura do café. A dramaturgia perpassa um crítico momento da história, onde as famílias camponesas expulsas do campo protagonizam uma revolução popular.
A exibição da obra integra as celebrações do centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, e acontece em curta temporada nos próximos dias 3, 4, 6, 7 e 8 de maio. Esta será, depois da experiência de Hans-Joachim Koellreutter nos anos 1990, a segunda montagem contemporânea da ópera, que refunda os princípios e modos de se fazer arte em sua história.
Confira trechos da entrevista exclusiva:
A ópera Café é considerada uma das obras mais importantes da última fase da produção artística de Mário de Andrade. Observando de maneira mais geral, como a peça dialoga com a realidade destes tempos? Quais são as perspectivas e desafios que serão levantados nesta leitura da obra hoje?
Bom, o Café é um projeto de ópera do Mário de Andrade, muito incomum. É uma ópera que foi escrita ao longo de anos e terminada em 1942, no momento da Segunda Grande Guerra Mundial, depois de anos da crise de 1929, quando o café foi queimado, que foi uma espécie de momento simbólico, de um país totalmente dependente do agronegócio, ligado à cultura cafeeira. Quer dizer, aquela economia de um país de origem escravista, entrava numa crise naquele momento e o estrago social se apresentava. Então, ele se inspira num contexto em que ele observa um momento de estrago social na sociedade brasileira. Ele vê as forças de direita crescendo, o integralismo brasileiro estava aparecendo naquele momento, o nazifascismo global provocando a guerra.
Então, ele resolve participar do debate como artista. Ele sente que o artista tem que se posicionar em relação à luta de classes, em relação à herança histórica da violência brasileira e faz uma obra de participação. Ele fica anos trabalhando nisso porque ele quer encontrar a forma artisticamente viva de fazer isso. E ele pensa que não adianta tratar de um tema da coletividade se ele também não encontrar uma forma da coletividade. (…) ele quer mostrar como a fome, não só a fome de alimento, mas a fome de justiça, a fome de igualdade, a fome de equiparação, como diz o texto, elas são mobilizadoras e têm que ser mobilizadoras.
Retratar a sociedade enquanto coletividade e não enquanto indivíduos é um dos pilares da obra de Mário de Andrade, especificamente na obra do Ópera Café, onde seu trabalho já trás uma direção política marcante. Como surgiu a ideia de convidar o MST para compor uma intervenção à apresentação?
Então, no nosso espetáculo, procuramos também coletivizar o trabalho da equipe criativa, convidando mais de uma pessoa para dividir uma função. Eu tenho parcerias na direção, (…) [então tentei] convidar também as pessoas que estão ligadas à luta social no seu campo, a luta artística, aí a ideia de convidar a cantora Juçara Marçal, o Negro Léu, e o ator Carlos Francisco para fazerem participações especiais, porque são militantes da luta artística no Brasil. E convidar o Movimento [MST] pra participar foi um convite que vem de uma longa parceria entre mim, entre a Companhia do Latão e o Movimento. São colaborações ao longo dos anos, eu sentia que isso aumentaria a atualidade, ou pelo menos mostra que o tema histórico é, de certo modo datado, que tem alguns temas que são dos anos 40 na obra do Mário, mas que são muito semelhantes à atualidade.
O Café é um projeto antigo meu, eu conheço o texto há muitos anos, cheguei a trabalhar com esse texto num capítulo da minha tese de doutorado, quando eu fiz tese de doutorado anos atrás, em literatura brasileira. Quando eu fui professor da Unicamp, cheguei a trabalhar como dramaturgo numa montagem feita por alguns parceiros da Companhia do Latão, Márcio Marciano e Valter Garcia estavam à frente desse projeto e eu colaborei também. E anos depois, numa parceria com o MST em torno de uma oficina que a gente ia fazer, com um conjunto de formação de teatro político, surgiu a ideia de trabalhar com o Café.
(…) Então, isso também era parte de uma história de parcerias, de algumas colaborações que a gente realiza até hoje. Por exemplo, meus dois projetos esse ano, de certo modo, estão ligados. Um é no Theatro Municipal de São Paulo, que é o Café, e o outro é em um assentamento no interior do Ceará ligado ao movimento. Um assentamento do MST na região de Monsenhor Tabosa, no assentamento Santana. Então, eu posso dizer que os dois espetáculos que eu estou fazendo este ano são com o movimento de algum modo.
Eu sinto que isso é bem importante, porque também está falando no campo da cultura política. E acho que não é só o movimento, é também o setor de cultura, os setores de cultura do movimento são importantes nesse processo.
Essa visão crítica da representação da vida social que aparece na obra está diretamente ligada ao teatro dialético que você propõe. Como essa perspectiva da arte tem sido trazida para os palcos?
Eu acho que a ideia de teatro dialético, que é aquela que eu trabalho, que foi pensada por muitas pessoas, entre elas o Brecht, tem a ver com qualquer teatro, em qualquer lugar do mundo, em qualquer país e região do mundo, em que as pessoas estejam interessadas nas contradições da vida. Em que as pessoas desconfiem de ideias fáceis e trabalhem numa perspectiva prática. Acho que isso é o mais importante dessa tradição da ação dialética. Ela se realiza na prática, ela desconfia de ideias prontas, de ideologia. Eu sinto que isso é muito importante para essa perspectiva de teatro, por que? Porque ela não é uma coisa cerebral, é uma coisa ligada ao vivo.
A gente tem que procurar uma forma viva, a forma viva é mobilizadora também, porque ela desconfia dos padrões que a gente já conhece de representação, ou de atuação, ou de performance. Certos padrões confirmam certos estereótipos. Eu vejo lá… Eu julgo isso só esteticamente?
A gente quer um teatro que não seja só esteticamente, que você julgue aquilo politicamente, criticamente, socialmente, que você não só contemple, que você participe ativamente, mesmo que sentado aqui, assistir uma obra mobilizadora… Eu trabalho sobre ela, eu me ponho contra ela.
Mas não é só a perspectiva de dizer se é artisticamente bom ou não. É pensar à que visão de mundo serve isso. O que isso ajuda para a vida prática? Acho que essas são as perguntas do teatro dialético. Mas isso não está só no teatro, isso está num cantador popular que pensa na sua situação de vida e transforma isso em música. Isso é arte dialética. Eu sinto que você mede a força de uma ação dialética pela capacidade a qual ela tem de ser viva e mobilizadora.
Considerando os processos e contradições históricas do país em suas diversas facetas das lutas de classe, quais os desafios de expor essa nova versão da ópera Café, em um espaço tão simbólico como o Theatro Municipal de São Paulo?
Eu acho que uma das principais razões que eu convidei o movimento foi essa. Foi para mostrar, lembrar na verdade, porque não é mostrar nada para ninguém, que a gente está num teatro público. O Theatro Municipal é um teatro da cidade de São Paulo, do povo dessa cidade, desse país. Ou seja, ele é um teatro que não se pode esquecer que ele foi construído a partir de uma história que não é e não foi uma história boa, foi uma história de exploração do trabalho, de miséria também. Parte da sua beleza tem essa memória de uma miséria do conjunto social. Então, eu sinto que é uma responsabilidade ética e política lembrar do sentido público de fazer arte ali. Eu, como artista convidado pela primeira vez para atuar nesse lugar, quis fazer isso, quis lembrar do que se trata o teatro. (…)
Como você analisa a atualidade do pensamento e obra de Mário de Andrade, no sentido da contribuição de seu legado para a cultura brasileira?
Eu sei que nesse momento difícil de centenário de 1922, está tendo um grande debate sobre o modernismo, os limites do modernismo, que é um debate necessário e importante. Mas é importante também lembrar que esse debate, em parte, já foi feito pela própria geração modernista. Em 1942, o Mário de Andrade escreve um texto incrível em que ele avalia as contradições do processo do movimento modernista, o quanto a geração mais inventiva de arte daquele momento foi dependente de uma cultura que se acreditava aristocrática, mas que de aristocracia não tinha nada, ligada ao café, o quanto àquela invenção crítica que sonhou com o povo, também teve vínculos com o dinheiro do café e com esses salões aristocráticos dos grandes palacetes dos cafeicultores. O Mário observa isso, se critica, se distancia.
A gente não pode esquecer que o Mário de Andrade foi uma das primeiras pessoas a brigar pela função pública do Theatro Municipal. Eu sinto que isso é muito importante. Mas o que eu tenho a dizer, trabalhando com a obra do Mário de Andrade, é que existem pouquíssimos artistas que viveram o problema Brasil na alma como ele. Por todas as razões, por razões pessoais, ligadas à sua origem racial, a suas escolhas afetivas. Você vê que ele põe isso tudo na obra com toda a força e potência política também. Mesmo quando está muito oculto, que são perspectivas do tempo e dos limites do tempo histórico que ele estava vivendo, ele enfrentou tudo de peito aberto, com o coração na mão. É uma figura incrível e acho emocionante, me emociono até de falar disso. E esses dias eu tenho lido a obra do Mário de novo, já li as cartas dele sobre o Café, a mobilização que ele faz com os artistas do tempo deles para eles saírem do acomodamento burguês, para eles não se esconderem no cinismo, nessa crítica demolidora, como se eles fossem melhores do que o tempo histórico. Que eles dessem a cara a tapa para os enfrentamentos, que eles tomassem um dos lados do problema diante da vida sendo arrebentada. Você percebe, então? Pouquíssimas pessoas fizeram isso no campo de atuação dele.
Em um momento onde a classe trabalhadora artística tem sofrido com desmontes, censura, entre outros ataques por parte do governo atual, que afetam diretamente sua produção, qual a função da arte frente a conjuntura atual?
Eu sinto que tem uma novidade histórica na cultura brasileira, que é a direita e a ultra direita terem entrado na disputa cultural com toda a força. Isso nessa escala talvez seja novo, né? É um projeto organizado, não é só brasileiro, esse projeto é mundial, mas de disputa dos espaços universitários, da atuação da religião, os espaços letrados cultos do país estão sendo disputados pela ultra direita. E a internet potencializou isso. É simbólico também que eles tenham achado uma zona de diálogo com certa arte também, que se julgava acima do bem e do mal, que estava ali fazendo algumas experimentações, como se agir como se a arte fosse uma conquista espiritual que pairasse acima das pessoas. Acho que foi muito simbólico o fato de uma pessoa do teatro de vanguarda de São Paulo ter se tornado um dos primeiros, vamos dizer assim, secretários da Cultura desse governo aí e ter saído a partir de uma manifestação nazista. Isso diz muito tristemente sobre o estado da cultura no país e sobre esse momento de guerra cultural.
Enfim, então eu sinto que agora é o momento também da gente encarar isso com a gravidade que é preciso. E você precisa ter coragem, eu acho que começa pela coragem, e de conquistar também parcerias e alianças nessa luta, como luta coletiva. Ninguém pode fazer individualmente, coragem você não tem só individualmente, você tem que ter também a partir de entender que lugares você consegue tensionar ou não, e que pessoas estão dispostas a correr esse risco da tensão. Eu sinto isso.
(…) a arte lida com imaginação, e imaginação exige que você se descole do real e olhe além e aquém, procurar no passado modelos de trabalho que joguem para o futuro, e imaginação tem a ver com esperança. Então é o momento da arte também se mobilizar, né? Eu acho que isso é parte da nossa tarefa.
Veja a entrevista exclusiva completa:
*Editado por Fernanda Alcântara