Temporada de Café
Por Jade Percassi*
Da Página do MST
Primeiro sinal. Acordes maiores das cordas da orquestra ressoam pelos autofalantes da comunicação interna anunciando que o teatro está aberto. Não fosse o tanto de luzes e espelhos na sala ninguém diria que estamos num camarim. Somos pessoas comuns, tocando, cantando e dançando sambas do repertório popular. Uma das moças da empresa terceirizada chega com timidez e visível espanto perguntando se pode entrar para trazer o café. Mais tarde, ela comentaria com a preparadora do elenco sobre nossa presença naquele espaço, dizendo que não fazia ideia de que as pessoas do Sem Terra eram assim, organizadas e educadas, tão diferente de tudo o que ela ouvira falar.
Gostaria de ter contado a ela que nesses quase quarenta anos, Sem Terra faz e já fizeram de tudo. Ocupar, resistir, produzir, alimentos e conhecimentos em todas as dimensões da vida. Somente nessa brigada tem gente de tantos setores: da comunicação à saúde, da educação às finanças, da produção às relações internacionais… Todo mundo numa tarefa da cultura, que para muito além das artes, reúne as práticas das novas relações que queremos construir. Depois de muitos dias convivendo nesse verdadeiro palácio onde alguns de nós nunca tinha nem sonhado entrar, nos sentimos em casa para sentar no chão, alongar os corpos, partilhar sorrisos e o nervosismo típico que antecede a ação de luta. Com mais ou menos noção da importância do que estamos prestes a fazer, sabemos que será mais uma trincheira.
Segundo sinal. Precisamos nos concentrar. Nunca na vida imaginamos que seria preciso ensaiar tanto para puxar um grito de ordem. Na verdade, ensaiamos a vida inteira. Essa é a maior prova de que a luta tem uma forte dimensão simbólica e estética. Receber aplausos em cena aberta, só de pisar em meio ao público com nossas camisas vermelhas, lenços de chita, enxadas, foices e facões em meio à conjuntura adversa em que vivemos é muito mais do que o reconhecimento artístico; significa a afirmação da legitimidade da luta pela terra e pela Reforma Agrária no Brasil. Mas o que a ópera tem a ver com isso? Tudo.
Conhecer a história daqueles e daquelas que nos antecederam, da dinâmica dos jogos de poder político e econômico e sua opressão subjacente através da música, do movimento dos corpos, das palavras entoadas de forma poética tem uma potência inigualável. Impactante, provoca reflexões inéditas ou muitas vezes evitadas. Por que construíram este teatro tão suntuoso nesse lugar? Por que é tão belo e imponente que a gente se sente pequena dentro dele? Por que as pessoas mais simples sequer pensam em passar das escadarias? Por que as greves dos trabalhadores que o construíram não aparecem na história oficial? Apenas algumas das questões que surgem ao respirarmos naquele ambiente.
Terceiro sinal. À custa de muito trabalho humano envolvido, terá início o espetáculo. E as peças começam a se encaixar. Artistas são trabalhadores e trabalhadoras como nós. Sem as equipes técnicas absolutamente nada acontece. Há mais gente branca do que negra e rica do que pobre na plateia. A arte sempre tem lado. Um país não pode depender exclusivamente de um produto agrícola para exportação, baseado na monocultura, no latifúndio e na super exploração do povo. Há séculos a riqueza troca de mãos entre poucos, que acumulam e relegam tanta gente à fome.
O fantasma do Mário (de Andrade) que habita os urdimentos lá no alto, soprou em nossos ouvidos que esse roteiro pode ter um final diferente. Que a revolta popular tem que ser organizada para acabar com a injustiça e as desigualdades, e só assim teremos força, amor, trabalho e paz. Mas temos que estar atentas para as laranjas do caminho, que quando parecem bonitas demais, como se sabe, estão azedas ou têm vespeiro.
*Frente Palavras Rebeldes do MST
**Editado por Solange Engelmann