Agronegócio

Multinacionais do café mantêm negócios com fazendas acusadas de trabalho escravo

Casos expõem fragilidade no monitoramento da cadeia produtiva do setor campeão em trabalhadores resgatados
Problema sistêmico: 310 trabalhadores foram vítimas de trabalho escravo no setor em 2021; número é o maior desde 2013. Foto: ©Lilo Clareto/Repórter Brasil

Por Daniel Giovanaz 
Do Repórter Brasil

Flagrantes de práticas análogas à escravidão em fazendas brasileiras de café durante a safra de 2021 não foram suficientes para provocar a reação de grandes importadoras do grão nos Estados Unidos e na Europa.

Em outubro, a Repórter Brasil contou a história de trabalhadores que viviam em alojamentos precários e eram obrigados a pagar ao empregador por custos de alimentação, gás e aluguel.

Os safristas, que recebiam menos que a metade de um salário mínimo ao final do mês, não conseguiam sequer comprar uma passagem de volta para casa, em municípios de Minas Gerais e da Bahia.

Na Fazenda Laranjeiras, propriedade de Job Carvalho de Brito Filho em Ilicínea (MG), foram identificados 24 trabalhadores em condições análogas à escravidão em julho de 2021. Na Fazenda Floresta, de Guilherme Sodré Alckmin Júnior, em Heliodora (MG), auditores-fiscais resgataram outros 20 em situação semelhante. No mês seguinte, foram libertados mais sete trabalhadores na Fazenda Haras July, do produtor Luiz Sérgio Marques, em São Sebastião do Paraíso (MG).

Registros alfandegários acessados pela Repórter Brasil apontam que tradings e cooperativas regionais abastecidas pelos três cafeicultores continuam fazendo negócios com ao menos cinco multinacionais no Hemisfério Norte.

Por intermédio dessas importadoras, o café “contaminado” por violações de direitos humanos pode alcançar centenas de países. Só a multinacional italiana Lavazza, uma das citadas nesta reportagem, está presente em mais de 140 países.

Na última edição do cadastro de empregadores responsabilizados por trabalho escravo, conhecido como “lista suja”, publicada pelo Ministério do Trabalho em abril deste ano, o café é o setor econômico com mais registros de trabalhadores em situação análoga à escravidão, com 122 resgatados.

Apenas em 2021, auditores fiscais resgataram 310 vítimas de trabalho escravo em 20 fazendas de café. Este foi o maior número desde 2003. Os empregadores ainda não constam na “lista suja” porque têm direito de defesa em duas instâncias administrativas.

Fornecedores indiretos

Os produtores Marques e Brito Filho têm histórico de relacionamento comercial com a cooperativa paulista Coopercitrus, fornecedora da companhia List + Beisler, especializada em cafés premium, com sede em Hamburgo, na Alemanha, e operações nos EUA desde 2018.

Dados alfandegários mostram que a List + Beisler importou dois lotes de café da Coopercitrus entre dezembro de 2021 e janeiro de 2022 – após os resgates dos trabalhadores e a publicação da matéria detalhando os casos.

Questionado pela Repórter Brasil no início do mês, o sócio e gerente da empresa Philip von der Goltz enfatizou o compromisso da companhia com a sustentabilidade e disse desconhecer, até então, o conteúdo das denúncias. Ele argumenta que inúmeras informações sobre a cadeia do café são publicadas diariamente, dificultando o acompanhamento dos casos.

“Com todo respeito, há uma infinidade de artigos – verdadeiros ou falsos, bem ou mal escritos, bem ou mal apurados ​​– publicados quase a cada segundo. Por que alguém em outra parte do mundo leria exatamente a sua reportagem, escrita em uma língua estrangeira (brasileiro [sic]) e publicada em um país diferente (Brasil)?”, questiona.

As respostas enviadas pelo representante da List + Beisler, bem como pelas demais empresas citadas nesta reportagem, podem ser lidas na íntegra aqui.

“Um comprador internacional alegar que não sabia que determinada violação de direitos humanos ocorria em sua cadeia de fornecimento, hoje em dia, é completamente inaceitável”, afirma Gustavo Ferroni, coordenador de Justiça Rural e Desenvolvimento da Oxfam Brasil.

“Os Princípios Orientadores da ONU sobre Empresas e Direitos Humanos dizem claramente que as empresas têm obrigação de saber e demonstrar como suas operações diretas e indiretas, por meio de suas cadeias de fornecimento, impactam nos direitos humanos, e colocam a obrigação das empresas de realizar a ‘devida diligência’: investigar, monitorar, prevenir e mitigar riscos”, completa.

O gerente da List + Beisler afirma que a companhia nunca comprou café das fazendas mencionadas. A Repórter Brasil procurou novamente a Coopercitrus para verificar se a empresa desejaria atualizar o posicionamento enviado em outubro, mas não obteve retorno até o fechamento desta reportagem.

Falta transparência

“As compradoras geralmente alegam que o café que compram não vem da fazenda flagrada. Só que não se encontra em nenhum lugar a informação exata, de qual fazenda vem cada saca de café, como já ocorre em outras cadeias produtivas”, explica o integrante da Oxfam Brasil, citando como exemplo o caso do dendê, cuja origem pode ser verificada. “A cadeia do café não é confiável, não é transparente, não permite rastreabilidade e apresenta muita promiscuidade entre o café produzido com e sem irregularidades.”

O Brasil, maior exportador mundial de café, produziu 47,7 milhões de sacas no último ano. Cerca de 46% da produção foi colhida em Minas Gerais, que lidera o ranking de Estados produtores. Os casos citados na reportagem se referem ao café verde exportado em grãos por pequenos, médios e grandes cafeicultores por intermédio de tradings ou cooperativas.

“Em geral, as cooperativas do café são entidades gigantescas, algumas com até 100 técnicos para assessorar os cooperados”, lembra Ferroni. “Precisaríamos que esses técnicos circulassem durante a safra, visitando as fazendas, com auditorias surpresa, para prevenir irregularidades, e não depender apenas da fiscalização do governo”.

Cumplicidade

Além da relação com a Coopercitrus, Job Carvalho de Brito Filho também fazia parte do Cocatrel Direct Trade (CDT), departamento de exportação de cafés especiais da Cooperativa dos Cafeicultores da Zona de Três Pontas (Cocatrel), no sul de Minas Gerais.

A Cocatrel não respondeu aos questionamentos da Repórter Brasil à época da publicação da reportagem com as denúncias, em outubro do ano passado, e emitiu um comunicado oficial sobre o caso apenas em abril de 2022, após ser confrontada por um comprador internacional procurado durante a apuração desta reportagem.

Na nota, a Cocatrel admite que o fornecedor autuado por trabalho escravo permanece entre os membros da cooperativa. Leia o posicionamento na íntegra.

“A Cocatrel informa a todos os seus parceiros de negócios que o Sr. Job Carvalho de Brito Filho (…) faz parte de seu quadro de associados e que se encontra temporariamente suspenso do Mapa da Parceiros da Cocatrel/CDT e de seu quadro de Certificações, tendo em vista seu envolvimento em uma fiscalização trabalhista ocorrida entre os dias 23 e 30 de julho de 2021”, diz o comunicado.

A suspensão temporária de Brito Filho da lista de fornecedores foi informada pessoalmente ao produtor em 14 de dezembro de 2021, quase cinco meses após o resgate dos trabalhadores.

No mesmo dia, a Cocatrel visitou a Fazenda Laranjeiras para uma “análise de risco social” – conforme documento enviado à reportagem por um representante do setor de exportações da cooperativa. F

oi constatado, na ocasião, “risco alto” em relação a trabalho escravo, condição dos alojamentos, saneamento e acesso a água potável, e “risco médio” de ocorrência de trabalho infantil e assédio ou abuso sexual, físico ou psicológico na propriedade.

Após essa análise, a Cocatrel listou uma série de medidas a serem adotadas pelo produtor para mitigar os riscos identificados. Excluído temporariamente da lista de fornecedores, Brito Filho continua autorizado a usar a estrutura da cooperativa para armazenar café.

“Parar de comprar só depois da fiscalização do governo já é um problema, porque direitos foram violados por falta de uma ação preventiva. Na sequência, manter o produtor no quadro de cooperados e ainda estocar sua produção me parece configurar cumplicidade”, analisa Gustavo Ferroni, da Oxfam Brasil.

Tolerância zero?

Quatro compradores internacionais mantiveram negócios com a Cocatrel mesmo após a divulgação do caso.

A Falcon Coffees, com escritórios de comercialização de cafés especiais no Reino Unido, Alemanha, EUA e Malásia, importa mensalmente da cooperativa mineira e recebeu “em choque” as informações sobre o caso Brito Filho, descritas por e-mail pela Repórter Brasil.

Após o contato da reportagem, a empresa consultou seu banco de dados próprio para rastreamento de cadeia, acionou a cooperativa fornecedora e disse ter confirmado que não adquiriu grãos produzidos na fazenda onde ocorreram as violações.

“Se a Falcon continuará comprando café de uma cooperativa em um caso como esse, dependerá das circunstâncias, das políticas da cooperativa e, crucialmente, de sua resposta a tais descobertas ou alegações”, informa Konrad Brits, CEO da Falcon Coffees.

A empresa exige que seus fornecedores assinem um documento atestando conformidade com as diretrizes de sustentabilidade e proteção ao meio ambiente e aos direitos humanos. Segundo o CEO, a importadora se propõe a visitar todos os fornecedores a cada dois anos, mas as viagens foram impossibilitadas pela pandemia de Covid-19.

Uma das maiores distribuidoras de café do planeta, a italiana Lavazza afirma que o último lote adquirido da Cocatrel foi embarcado em outubro de 2021. Registros alfandegários acessados pela reportagem, no entanto, apontam um envio mais recente, em dezembro. “Estamos fazendo todas as investigações e avaliações cabíveis sobre a Cocatrel, que é um fornecedor marginal para o Grupo Lavazza, representando 1% do total de café comprado no Brasil”, afirma a multinacional.

“Caso um de nossos fornecedores se envolva em conduta contrária às nossas políticas e códigos de conduta, após verificações oportunas e apropriadas, implementaremos atividades de suporte e corretivas e, em caso de feedback negativo, excluiremos imediatamente esse fornecedor da nossa cadeia”, complementa.

Os limites da “lista suja”

Outras duas clientes internacionais da Cocatrel também compram café da Nutrade Comercial Exportadora, trading da multinacional suíça Syngenta. A Nutrade era abastecida pela Fazenda Floresta em 2021, quando 20 trabalhadores foram resgatados na propriedade.

A estadunidense Rothfos Corporation, vinculada ao conglomerado Neumann Kaffee Gruppe (NKG), adquire mensalmente lotes da Nutrade e diz utilizar a “lista suja” como parâmetro para avaliação de fornecedores. O proprietário da Fazenda Floresta, Guilherme Sodré Alckmin Júnior, não consta no cadastro mais recente porque ainda pode recorrer em duas instâncias administrativas.

“A NKG está empenhada em eliminar o trabalho forçado e quaisquer formas de violação de direitos trabalhistas em nossa esfera de influência. Nenhuma empresa da NKG, incluindo a Rothfos Corporation, compraria conscientemente café produzido por fazendas que violam os direitos humanos ou a lei local”, alega.

“Nossos parceiros locais, Nutrade e Cocatrel, se comprometem a não comprar café de produtores que constam na lista suja”, acrescenta a multinacional, uma das líderes globais do mercado de grãos verdes de café.

A multinacional suíça Sucafina, assim como a Rothfos, manteve negócios com a Nutrade e a Cocatrel após seus fornecedores serem autuados. Com presença em 29 países, a empresa também diz ter tolerância zero com trabalho infantil e todas as formas de trabalho forçado. Além da consulta à “lista suja”, a Sucafina afirma possuir um código de conduta para fornecedores baseado nos Princípios da ONU.

“Visitamos regularmente nossos fornecedores para nos certificarmos de suas condições éticas de operação. Todos os contratos contêm uma cláusula específica sobre trabalho forçado que todos devem concordar em cumprir se quiserem trabalhar conosco”, ressalta a empresa, em nota.

No último ano, a Sucafina encomendou uma revisão externa de suas políticas de monitoramento da cadeia produtiva e realizou sessões de formação on-line para sensibilizar os funcionários sobre o desafio de proteger os direitos humanos.

“Estamos conscientes de que devemos fazer mais para resolver esse problema sistêmico, e não podemos fazer isso sozinhos. A indústria cafeeira, os governos, as ONGs e a sociedade civil devem trabalhar juntos”, acrescenta a multinacional.

Procurada pela Repórter Brasil novamente, a Nutrade preferiu manter o posicionamento enviado em outubro, em que disse monitorar os desdobramentos dos flagrantes de trabalho escravo entre os seus fornecedores de café. A empresa reforçou que os três cafeicultores ainda não foram incluídos na “lista suja”.

Para Gustavo Ferroni, as importadoras deveriam tomar atitudes imediatas diante de flagrantes de trabalho escravo, e não aguardar a publicação do nome de fornecedores na “lista suja”. “Os Princípios da ONU são muito claros nesse sentido. As empresas têm a obrigação não só de saber, mas de demonstrar que não violam direitos humanos.”