Resistência Palestina
A morte da jornalista Shireen Abu Akleh e a luta legítima do povo palestino
Por Marcelo Buzetto*
Da Página do MST
Nos últimos dias o mundo conheceu, mais uma vez, a violência praticada pelo exército israelense contra a população civil palestina. Desde o dia da fundação do chamado “Estado de Israel”, em 15 de maio de 1948, seu governo tem sido responsável por uma política de genocídio, limpeza étnica e apartheid contra o povo palestino. O assassinato, por um atirador de elite do exército israelense, da jornalista Shireen Abu Akleh, da rede de TV Al-Jazeera, é a continuidade de um conjunto de crimes e violações de direitos humanos em escala cada vez mais grave e sem nenhuma probabilidade de interrupção.
Shireen estava cobrindo a repressão das forças israelenses contra manifestantes palestinos, num campo de refugiados na cidade de Jênin, na Cisjordânia, no dia 11 de maio. Ela estava com um colete azul onde estava escrito em letras grandes “Imprensa”, e com um capacete, um traje comum para jornalistas em situações de conflito. A polícia e o exército israelenses tinham pleno conhecimento de sua presença no local, sabiam de sua posição quando disparos começaram a ser realizados por soldados contra os manifestantes. Ela e seu companheiro de trabalho, que já tinham experiência em campo, buscaram se proteger, mas um “sniper” (atirador de elite) israelense fez a mira no rosto da jornalista e disparou, causando imediatamente sua morte. Seu colega de trabalho e alguns manifestantes tentaram se aproximar do corpo caído, mas o atirador continuava disparando contra quem buscava socorrer Shireen. Algumas pessoas foram feridas na perna, provavelmente pelo mesmo atirador. A cena foi filmada e essas imagens correram o mundo.
Shireen tinha dupla nacionalidade, palestina e estadunidense. Ela faz parte de uma longa lista de assassinatos de civis por parte do exército de ocupação israelense. Logo após seu assassinato a polícia israelense tentou invadir a casa da família de Shireen, e disseram que não era para ter manifestação e palavras de ordem nas ruas de Jênin. O povo palestino desobedeceu esta ordem absurda e milhares de pessoas foram para as ruas e marcharam por todas as cidades palestinas. No funeral, policiais israelenses agrediram as pessoas com bombas de gás lacrimogêneo e cassetetes. A polícia israelense espancou as pessoas que seguravam o caixão da jornalista, mostrando que o governo israelense não respeita nem mesmo os mortos e seus familiares. Uma marcha até Jerusalém foi organizada para homenagear mais esta mártir da luta do povo palestino.
A criação do “Estado de Israel”: um ato ilegal praticado pela ONU
O chamado “Estado de Israel” é uma ilegalidade. Foi um Estado criado com apoio de um movimento político nacionalista judaico, racista, conservador e antidemocrático: o sionismo. Os sionistas, com a cumplicidade do imperialismo britânico, iniciaram um projeto de colonização da Palestina, entre o final do século XIX e início do século XX. Quando Theodor Herzl finalizou o Iº Congresso da Organização Sionista Mundial, em 1897, e afirmou: “em 50 anos vamos criar o lar nacional para os judeus na Palestina”.
Sionismo, colonialismo/imperialismo, as elites locais árabes reacionárias foram os responsáveis pela colonização da Palestina. Desde os tempos de Abraão e a fundação do judaísmo até o dia 14 de maio de 1948 todo o território era conhecido como Palestina, com suas fronteiras entre o Mar Mediterrâneo e o Rio Jordão. O sionismo buscou aliados entre a burguesia industrial e financeira mundial, especialmente entre setores da burguesia judaica. Nem todo judeu é sionista, e houve uma divisão no interior dessa comunidade. Existem, inclusive, judeus antissionistas. Mas os sionistas se organizaram economicamente, financeiramente, politicamente, culturalmente e militarmente. Conseguiram, em 02 de dezembro de 1917, uma posição oficial do governo da Inglaterra para seu projeto colonialista na Palestina, a Declaração Balfour, onde o governo britânico apoiava a iniciativa sionista de construir um “lar nacional para os judeus na Palestina”. Com o fim da Primeira Guerra Mundial e a derrota do Império Turco-Otomano (1918) a Palestina era tomada pelo colonialismo/imperialismo inglês. Entre 1918 e 1948 a Palestina tornou-se o “Mandato Britânico na Palestina”.
Houve muita luta e resistência contra o sionismo e o colonialismo/imperialismo, especialmente entre os anos 1936/1939, mas o movimento sionista tinha aliados poderosos, especialmente os governos da Inglaterra e dos EUA. Após o massacre realizado pelos nazistas contra os judeus, na Europa, durante a Segunda Guerra Mundial (1939/1945), o movimento sionista se aproveitou para pressionar a recém-fundada ONU para aprovar a criação do “Estado Judeu”, em terras palestinas.
Em 29 de novembro de 1947, sob o comando do governo dos EUA, e com o apoio de países como Brasil e URSS, foi aprovado, ilegalmente, o Plano de Partilha da Palestina. Uma ação sem nenhum fundamento no direito internacional, pois a ONU não tinha a soberania da Palestina, portanto, não tinha legitimidade/legalidade para decidir sobre a partilha do território. Tal decisão, sob o ponto de vista do direito internacional, só poderia ser tomada pela livre manifestação da sua população, através de um plebiscito popular, de um referendo onde cada cidadão palestino, vivendo sob uma República Democrática e Independente, pudesse expressar sua opinião em relação a esse tema. Ou seja: a ONU dividiu o território da Palestina sem realizar uma consulta democrática ao povo palestino.
Os países vizinhos votaram contra a partilha do território, já alertando que seria inaceitável uma intromissão ilegal nos assuntos que diziam respeito a esse povo árabe. A maioria da população palestina, entre 1947/1948, era a favor de um Estado Palestino soberano, laico e democrático, onde todas as pessoas, independente de sua religião e/ou posição política, pudessem viver em paz e com direitos iguais. Mas a equivocada e ilegal decisão da ONU, apoiada pelas duas superpotências (EUA e URSS), deu início ao conflito atual.
Durante os anos 30/40 foram criados grupos terroristas sionistas na Palestina. Eles atacavam aldeias e vilas, bairros e cidades, fazendo vítimas a população civil cristã e muçulmana. Criaram um clima de medo, com ameaças e intimidação permanente. A união desses grupos terroristas (Stern, Irgun, Haganá, entre outros) resultou na criação das Forças de Defesa de Israel que, em aliança com os oficiais do exército britânico, deram um golpe de Estado entre os dias 14 e 15 de maio de 1948, criando assim o “Estado de Israel”.
A data é conhecida pelos palestinos como Nakba (Tragédia/Catástrofe), mas é comemorada pelos sionistas como o “Dia da Independência de Israel”. Os líderes desses grupos terroristas tornaram-se os governantes, ministros e parlamentares do “Estado de Israel”. Mesmo identificados como responsáveis de massacres e assassinatos de civis palestinos, nunca foram oficialmente denunciados, julgados ou condenados pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU ou pelo Tribunal Penal Internacional. Entre maio de 1948 e dezembro de 1949, o recém-criado “Estado de Israel” destruiu mais de 500 aldeias e vilas palestinas. Nessas operações de limpeza étnica, os homens de 16 a 60 anos eram separados de sua família, enfileirados e fuzilados pelos soldados sionistas.
A Resistência Palestina: da guerra popular de libertação nacional aos fracassados Acordos de Oslo
Os palestinos sempre lutaram pela libertação de sua pátria e pela construção de uma sociedade mais justa e democrática, seja contra o colonialismo turco-otomano, britânico ou sionista-israelense. Mas em 1964, com um forte apoio do governo egípcio do presidente Gamal Abdel Nasser, foi criada a Organização para a Libertação da Palestina (OLP). A OLP recebeu apoio financeiro da Liga Árabe para iniciar suas atividades, mas os palestinos sempre enfrentaram muitos desafios no processo de construção do seu próprio caminho para sua justa e legítima luta de libertação nacional, pois muitos governos árabes queriam disputar e/ou controlar a direção política do movimento nacional palestino. Entre 1964 e 1969 a OLP vivia numa condição de submissão à Liga Árabe, mas a partir da eleição de Yasser Arafat para sua presidência houve maior autonomia nas decisões.
A OLP, muito influenciada pela conjuntura política internacional e pelas lutas de libertação nacional em outros países, adotou uma diversidade de táticas, priorizando a luta armada, visando atingir seu objetivo estratégico: libertar a pátria do sionismo e do colonialismo/imperialismo. O Movimento dos Países Não-Alinhados firmava posição a favor da causa palestina. E a guerra popular de libertação nacional na Indochina/Vietnã avançava, com conquistas e vitórias para esse povo do sudeste asiático, contra o colonialismo francês e contra o imperialismo estadunidense.
O programa original da OLP defendia a criação de um Estado Palestino único, não aceitava a Resolução 181 da ONU, Plano de Partilha da Palestina (29/11/1947), onde todos os cidadãos palestinos, sejam judeus, cristãos ou muçulmanos, pudessem ter os mesmos direitos, numa República Democrática. A OLP reuniu diferentes facções e partidos políticos palestinos, nacionalistas, socialistas e comunistas. A força política hegemônica no interior da OLP sempre foi o Movimento de Libertação Nacional (FATAH), liderado por Yasser Arafat. Mas organizações marxistas também se integraram nessa frente política, como a Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP), liderada por Georges Habash, e a Frente Democrática para a libertação da Palestina (FDLP), liderada por Nayef Hawatmeh.
Essas e outras organizações conduziram uma Guerra Popular de Libertação Nacional entre 1969 e 1989, e conquistaram importantes espaços no cenário político regional e internacional, colocando a causa palestina na pauta da ONU, resultando, inclusive, em muitas resoluções favoráveis e na presença de Yasser Arafat na Assembleia Geral, em 1974, com um discurso que terminava dizendo: “trago em uma de minhas mãos um fuzil, e na outra um ramo de oliveira, símbolo da paz. Não deixem o ramo de oliveira cair! (…).”
Acordos de Oslo (1989/1993): capitulação, traição e divisão no movimento nacional palestino
Entre 1989 e 1993 ocorreram conversações secretas entre representantes do governo israelense e algumas lideranças do partido FATAH, que comandava a OLP. Esse grupo de palestinos que “negociaram” com o governo de Israel foram indicados diretamente por Yasser Arafat, presidente da OLP. Reuniões e encontros secretos foram acontecendo, e a Noruega foi consultada e aceitou ser a anfitriã de uma série de encontros que resultaram no conhecido Acordo de Oslo (1993), assinado publicamente numa cerimônia na Casa Branca, em Washington (EUA), com o presidente Bill Clinton, o palestino Yasser Arafat e o primeiro-ministro israelense Yitzhak Rabin.
Oslo não foi um acordo, foi uma imposição israelense diante de uma correlação de forças considerada favorável aos interesses sionistas e imperialistas. O governo de Israel impôs as condições para sentar numa mesa com os palestinos: não discutir o tema da libertação dos prisioneiros políticos palestinos; não discutir o direito de retorno dos refugiados palestinos (assegurado pela Resolução 194 da ONU), não discutir a situação de Jerusalém (Capital do Estado Palestino), renúncia pública, por parte da OLP, à resistência armada (qualificada por Israel como “terrorismo”).
Um grupo pequeno de dirigentes palestinos, muito influenciados pelas pressões do governo dos EUA e seus aliados, aceitou assinar um documento que tratava do abandono de direitos históricos e inalienáveis do povo palestino, sem se preocupar em realizar uma ampla consulta às organizações populares, sociais, culturais e políticas que atuavam em todo o território palestino e entre os refugiados. Também não se preocuparam em organizar um plebiscito popular, um referendo ou qualquer forma de consulta popular, para que o povo pudesse se manifestar sobre o conteúdo do “Acordo” de Oslo, secretamente construído.
Manter a resistência popular permanente contra o colonialismo sionista-israelense
Após Oslo, o governo colonialista de Israel permitiu a criação da Autoridade Nacional Palestina (ANP), que depois virou Autoridade Palestina (AP), uma administração dos territórios considerados como ocupação israelense (somente 20% do território originário da Palestina). Esse “governo autônomo” palestino mostrou-se incapaz de atender as demandas da população e tornou-se um instrumento político-administrativo subordinado à autoridade do governo colonialista israelense.
Com a AP a OLP foi perdendo força, importância e influência no interior do povo palestino, e surgiram divisões causadas, principalmente, pela iniciativa do “governo palestino” em desarmar as organizações da resistência e realizar operações de segurança em conjunto e/ou coordenadas por EUA e Israel. A polícia palestina é formada sob forte influência de um modelo de segurança pública inspirado em métodos e doutrinas trazidas dos EUA, com instrutores e assessores indicados pelo próprio governo estadunidense e suas forças policiais e agências de inteligência.
Palestinos que são de partidos que fazem oposição à Israel e ao Acordo de Oslo começam a ser perseguidos, reprimidos, presos e assassinados, por Israel e pela Autoridade Palestina. Foi o caso do dirigente e parlamentar palestino Ahmad Sa’adat, secretário-geral da FPLP e deputado no Conselho Legislativo Palestino (CLP). Perseguido por Israel, vivia na clandestinidade. Foi convidado por Yasser Arafat para um encontro secreto em Ramallah, e foi surpreendido quando o líder palestino disse que teria que prender ele e outros membros da FPLP. Foi levado, em 2002, para uma prisão palestina em Jericó. No corredor onde estava sua cela soldados dos EUA e Inglaterra faziam a segurança, numa explícita colaboração com a Autoridade Palestina. Em 2006 o exército israelense cercou e atacou a prisão, sequestrou Sa’adat e outros prisioneiros, sem nenhuma resistência por parte dos policiais da Autoridade Palestina.
Essa colaboração da Autoridade Palestina e muitas lideranças do partido FATAH com o governo colonialista de Israel, e com governos imperialistas dos EUA e Inglaterra, fez crescer, no meio do povo, o apoio a organizações nacionalistas islâmicas, como o Movimento de Resistência Islâmica (HAMAS) e a Jihad Islâmica Palestina, que, assim como a FPLP e a FDLP, dizem não ser possível abandonar a luta armada enquanto existir o colonialismo israelense.
Todas são legítimas representantes dos interesses do povo palestino. Entre 2011 e 2014 EUA, OTAN, União Europeia, Arábia Saudita, Qatar, Turquia, Israel e grupos terroristas como o ISIS (Estado Islâmico do Iraque e Síria),entre outros, desencadearam uma ofensiva contra os governos árabes da Líbia e da Síria, ao mesmo tempo que organizavam “guerras híbridas” contra o Irã e o Líbano. Para se contrapor a essa ofensiva política-militar-midiática sionista-imperialista foi construído o “Eixo da Resistência”, uma coalizão de partidos políticos, movimentos populares e governos da região da Ásia Ocidental (Oriente Médio).
Essa estratégia político-militar impediu o controle da região por aliados dos EUA e Israel. Além dos governos do Irã e Síria, também Yêmen e Iraque agora fazem parte dessa coalizão, além de movimentos como o Hezbollah libanês e vários setores da resistência palestina, como a Jihad Islâmica, oficialmente, setores do HAMAS e, em várias operações conjuntas, a FPLP e a FDLP. Esse eixo de resistência anti-imperialista também conta com a colaboração mais explícita da Rússia e mais discreta de países como Cuba, Venezuela e República Popular e Democrática da Coréia. Essa ação coordenada pode ser o caminho mais eficaz e rápido para impor, num futuro próximo, uma contundente derrota política e militar ao governo sionista-colonialista de Israel, por isso a importância cada vez maior da incorporação de contingentes da resistência palestina nessa coalizão de forças populares e anti-imperialistas.
*Dirigente Estadual do MST em SP e do Coletivo de Relações Internacionais. Professor universitário, autor do livro “A Questão Palestina: guerra, política e relações internacionais”, da editora Expressão Popular.
**Editado por Solange Engelmann