Aromas de Março
A ameaça que ronda a vida das Mulheres Sem Terra – Uma história de resistência
Por Letícia Souza, Luana Oliveira, Ricarda Gonçalves e Tuíra Tule
Da Página do MST
Do silêncio de um canavial onde não se via o fim, brotaram-se bandeiras, um mar delas, elas cantavam. Cantavam o futuro. O vermelho que tremulava eram os de nossos sonhos, plantados naquelas terras, como sementes, germinando. Assim hasteamos nossas bandeiras e cultivamos as nossas vidas, nessas terras de Quilombo.
O que era a antiga e falida usina, nas terras que um dia foi o maior Quilombo do Brasil, o MST ocupou, e essas terras voltaram para as mãos dos trabalhadores e das trabalhadoras. Hoje no acampamento do MST, Quilombo Campo Grande, no Sul de Minas Gerais, passados 24 anos e 10 despejos, as 465 famílias, mais de 3 mil pessoas que aqui moram e cultivam as terras, resistem, constroem, plantam suas vidas.
Não é segredo para ninguém que a vida no campo tem proporcionado a diversas famílias a garantia da subsistência através da produção de alimentos e da criação de pequenos animais dentre as inúmeras experiências que vem sendo praticadas e que dão origem aos processos de agroindustrialização dos alimentos in natura. O que talvez muita gente não saiba é o protagonismo das mulheres nesse processo.
A história do Quilombo Campo Grande é frutífera em demonstrar essa força, como podemos observar nas palavras de Dona Ricarda (72), educadora e dirigente do Movimento Sem Terra:
“A mulher hoje nesse acampamento tem o reconhecimento da sua força em todas as frentes, seja na produção do seu leite como produção no coletivo, desde o trabalho agroecológico com a terra e a produção orgânica de alimentos e plantas medicinais para o consumo da família, e também para comercializar, colocar na mesa alimentos e fitoterápicos saudáveis. Na educação, a mulher é cirandeira, é professora e coordenadora, e educa seus filhos para uma sociedade melhor, a criança já cresce sabedora dos seus direitos e deveres como cidadão, cuidando de si e do outro, da terra e da natureza.”
As práticas agroecológicas adotadas pelas mulheres e pelas famílias Sem Terra, determinam o rompimento da cultura do agronegócio, deixando de lado a ideia de grandes monocultivos para exportação e geração de commodities, para a diversificação de uma variedade de produtos que estejam na base da alimentação do povo brasileiro, e o melhor, aplicando-se as técnicas de preservação da natureza e do cuidado com as relações humanas. É a vida contra o lucro. Disso se trata a nossa luta. É isso que nossos inimigos têm tanto medo e querem destruir em cada despejo.
As comunidades rurais, nossos assentamentos e acampamentos de Reforma Agrária, têm sofrido bastante no último período com os cortes de orçamento do governo para o financiamento destinado a agricultura familiar, somado ao discurso de ódio direcionada as nossas famílias e as inúmeras tentativas de despejos. Entretanto, ele encontrou resistência em cada uma dessas trincheiras, e isso é inegável. A última tentativa de despejo no Quilombo Campo Grande em 2021 foi exemplo disso e de como a força e a organização popular vencem o medo e as violências.
Essa organização popular tem nome, Reforma Agrária. Essas terras hoje produzem mais de 130 tipos de alimentos: verduras, legumes, cereais, ervas medicinais, etc. Plantamos mais de 150.000 árvores frutíferas e nativas, mais de 1.000 hectares de cereais (arroz, feijão, amendoim, gergelim), 2 milhões de pés de café. Nós devolvemos a fertilidade ao solo e “plantamos” água no cuidado com cada manejo de forma agroecológica.
Re-existimos ao longo desses 24 anos, e fomos reocupando, brotando novamente como sementes boas germinando por todos os lados. Reconstruindo nossas casas, nossas plantações, nossas hortas. Nós mulheres, mesmo com tantas tristezas, nos fortalecemos, reorganizamos nossas vidas, individual e coletivamente. A produção e a auto-organização foram fundamentais.
Construímos o Coletivo de Mulheres Raízes da Terra, com intuito de desenvolver a produção, gerar renda, fazer formação e nos fortalecer. A centralidade não era apenas a luta pela terra, mas a luta pela vida, por isso reorganizamos o setor de saúde para valorizar e colocar em pratica o conhecimento ancestral que carregamos, aprendemos: saúde é lutar contra tudo que nos oprime.
Re-erguemos nossa Escola Eduardo Galeano, para que nossas crianças jovens e adultos tenham a oportunidade de aprender, trocar conhecimentos. E como sem cooperação não tem produção, criamos uma Cooperativa, a Camponesa, e fortalecemos a nossa auto sustentação financeira e política.
A possibilidade de perder, mais que o barraco, suas vidas, semeadas com tanta ousadia e dificuldades, com as ameaças de despejos iminentes sem que haja qualquer política de reassentamento adequado, realça a face desse governo e os interesses da classe dominante, em transformar nossas vidas, corpos, conquistas, tudo em mercadoria.
Porque ainda querem despejar quem muito lutou pra ter terra e vida digna? Pra ter alimento pra si e pra outras trabalhadoras e trabalhadores? É o que perguntam as mulheres Sem Terra. É com a simplicidade e sabedoria de Dona Ricarda que queremos ajudar a refletir:
Então pensem, avaliem, o impacto na vida dessas mulheres e na sociedade onde elas estão inseridas, num ano em que estamos saindo de uma pandemia que tudo foi difícil para toda humanidade, estamos vivendo uma guerra onde tudo está cada dia mais difícil, desde as pessoas próximas até as distantes. Então o que tenho a dizer é o seguinte: DESPEJO ZERO! O que está dando certo não mexa, essas mulheres muitas delas estão em cima dessa terra há mais de 20 anos, já tem uma estrutura de vida e estão criando seus filhos em um ambiente sadio, estão gerando renda para o município. Não destruam o lar dessas companheiras. Nós somos leoas e defenderemos nosso território, como suor, lágrimas e muita garra. Vamos assentar essas mulheres revolucionárias que só querem ser feliz em cima de um pedaço de terra que possam chamar de seu.”
Confira também um depoimento sobre a perspectiva a resistência do Quilombo Campo Grande por Despejo Zero
*Editado por Fernanda Alcântara