Memória
MST luta pelo tombamento do patrimônio no assentamento Dênis Gonçalves, em Minas Gerais
Por Júlio Black
Do Tribuna de Minas
Um pedaço da história da Zona da Mata tem o tempo como inimigo para não ser ainda mais descaracterizado. Integrantes do MST tentam há alguns anos o tombamento das edificações que restaram na antiga fazenda Fortaleza de Sant’Anna, em Goianá, que se estendia também pelos municípios de Chácara, São João Nepomuceno e Coronel Pacheco. O assentamento Dênis Gonçalves, como é chamada a área desde o início a emissão (posse) dos trabalhadores rurais após o processo de desapropriação por parte do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Segundo uma das integrantes da coordenação do assentamento e do MST, Priscila Araújo, desde o início da ocupação que os assentados estão em busca de formas de conservar o patrimônio, que data do século XIX e inclui construções como o paiol, a casa de máquinas, oficinas, terreiros de secagem de café, a casa do administrador e a senzala que ficava no porão de uma das construções ainda de pé.
“Entramos com um pedido de tombamento no Iphan [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional] e não deram a resposta dentro do prazo [para avaliação do pedido], que era de cinco anos. Entramos então com o mesmo pedido no Iepha [Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico], e o Ministério Público entrou com uma ação contra o Iphan, Incra e Prefeitura de Goianá pelo não cumprimento do prazo para avaliação”, conta.
A comunidade pediu para ser parte no processo, e estamos sendo representados por um defensor público. O juiz responsável pela ação veio até aqui e fez uma audiência in loco para ver a situação, pois a documentação do patrimônio era anterior à deterioração. Pedimos que fosse feita uma vistoria a fim de ver a situação atual.”
De acordo com Priscila, existe uma mobilização por parte do assentamento e os agentes públicos envolvidos para a preservação do sítio histórico, ainda com possibilidade de nova fonte de renda para a comunidade. “O que precisamos é que seja feito o escoramento dos prédios o mais rápido possível, antes do período de chuvas, mas sabemos que o Incra e o Iphan não teriam verbas para isso. Estamos pensando em criar um fundo para conseguir os recursos necessários para realizar essas ações, que tenhamos um esforço coletivo com a Prefeitura, Incra e Iphan. Buscamos os recursos por meio de editais, mas não pudemos porque o terreno pertence ao Incra.”
Uma fazenda com muita história
Segundo um dos integrantes do assentamento, a região foi ocupada antes do período colonial por diversos povos originários, como os puris, coroados e coropós, pertencentes aos grupos tupi e macro-jê. Com muitas cavernas e nascentes de córregos e rios, foi na localidade da Serra da Babilônia que se descobriu na chamada Toca da Índia, em 1874, restos mortais e vestígios funerários, entre eles as únicas três múmias (uma mulher e duas crianças) indígenas totalmente íntegras encontradas no Brasil. Os corpos, que foram datados como sendo do início do século XIV, foram doados pela família de Mariano Procópio a D. Pedro II. As múmias se perderam no incêndio do Museu Nacional, em setembro de 2018.
Já a Fazenda Fortaleza de Sant’Anna, com cerca de 4.213 hectares – sendo 3 mil hectares de Mata Atlântica preservada, e possivelmente com alguns trechos de mata primária -, foi demarcada em 1811, tendo produzido açúcar e café por meio do trabalho escravo de mulheres e homens negros. O tenente Joaquim José de Santana adquiriu a fazenda em 1842, que foi herdada e administrada posteriormente por seu neto, Mariano Procópio. “Atualmente temos cerca de 150 famílias no terreno, que possui esse patrimônio histórico e arqueológico, mas também ecológico e cultural”, aponta.
Dos edifícios e resquícios de construções são listados uma senzala no porão de um edifício de dois andares, ruínas de uma usina de açúcar e uma casa de máquinas, que guarda equipamento datado de 150 anos e que era usado para o beneficiamento do café, que segundo Priscila estão em precárias condições de conservação. Já a casa do fazendeiro foi destruída por um incêndio anos antes da ocupação.
“É uma fazenda tradicional, que também teve exploração de gado de leite pela família Tostes, e que conta um pouco da história agrária brasileira em um território só. Além das populações indígenas e do trabalho escravo, da cultura do açúcar e do café, tivemos os trabalhadores italianos, os assalariados, o abandono da fazenda, a reforma agrária e o que temos hoje, que é a agricultura familiar”, pontua Priscila, que acrescenta que as edificações têm características da arquitetura alemã, ao contrário das construções da época. “Desde que o MST ocupou a fazenda nos deparamos com esse patrimônio, que consideramos importante preservar.”
Por essas razões, a integrante do assentamento destaca que eles buscam um esforço coletivo para encontrar uma solução que impeça a deterioração completa do que restou da Fazenda Fortaleza de Sant’Anna. “A ideia da comunidade é que esse espaço seja usado para o turismo, com a criação de um museu sobre a questão agrária brasileira, que possa ser usado e explorado pelo povo”, expõe.
Ainda em relação à preservação, Priscila diz que a comunidade busca fazer a limpeza do terreno para que o mato não tome conta do patrimônio, mas que não podem interferir na arquitetura nem fazer ações de restauração, como a de pintura. Além disso, a desapropriação e entrega dos lotes para os assentados fez com que eles deixassem o entorno dos prédios, o que dificulta impedir invasões eventuais que possam vandalizar e dilapidar ainda mais o patrimônio. “Algumas famílias moram a quase 20 quilômetros dos prédios, não tem como o agricultor fazer a vigília. Sempre que acontece alguma coisa e somos avisados fazemos um boletim de ocorrência, conversamos com as famílias para conscientizar que é um patrimônio que representa a história do Brasil e deve ser cuidado.”
Turismo da reforma agrária
Outro ponto importante observado pelos integrantes do Assentamento Dênis Gonçalves é o potencial do chamado turismo da reforma agrária. “Desde 2019 recebemos muitas pessoas no assentamento, que ficam deslumbradas com o patrimônio e a mata, que chega a ser maior que a de Ibitipoca. Identificamos o potencial e desde então pensamos em como explorar a questão do turismo de base comunitária”, conta Priscila. Por conta disso, foi realizada a primeira experiência em setembro de 2021, seguida por outra meses depois
“Todo o alimento consumido pelos visitantes foi produzido por nós. Avaliamos essa primeira experiência e conseguimos identificar que é uma forma de gerar renda pelo turismo e também pela venda de nossa produção. Foi, ainda, uma forma de mostrar como é a reforma agrária de fato, o que é um assentamento, a vida das pessoas e a produção. Agora queremos dar os próximos passos, incluindo hospedagem, mas não queremos fazer um hotel fazenda, e sim uma experiência da reforma agrária que inclua o patrimônio histórico e arqueológico.”