Violência Contra Indígenas
Pistoleiros matam adolescente e povo Pataxó denuncia atuação de milícia anti-indígena na BA
Por Gabriela Moncau
Do Brasil de Fato
Um grupo de pistoleiros atacou indígenas Pataxó numa fazenda retomada, dentro da Terra Indígena (TI) Comexatibá Cahy Pequi, no sul da Bahia. Gustavo Silva da Conceição, um adolescente de 14 anos, foi morto com um tiro de fuzil na nuca. Outro indígena, de 16 anos, ferido no braço. O ataque aconteceu na madrugada do último domingo (4) no município de Prado.
De acordo com um cacique da TI Comexatibá ouvido pelo Brasil de Fato, o sol começava a despontar quando o carro modelo Fiat Uno branco encostou na rodovia em frente à sede da Fazenda Samambaia, que foi ocupada pelos Pataxó na última sexta-feira (3).
“Já a 50 metros o carro vinha com a porta traseira aberta. Os meninos viraram ‘ih, está vindo com a porta aberta’, quando falou assim já encostou no portão dando rajada. Uns correram para dentro da casa, outros para o mato, 10 minutos de tiro sem parar”, relata a liderança. No chão, ficaram o menino, o sangue e os cartuchos de armas de calibre 12, 32, fuzil .40 e bombas de gás lacrimogêneo. “Armamento de polícia”, descreve.
Segundo os indígenas, os tiros duraram cerca de 10 minutos ininterruptos / Povo Pataxó
Em protesto, os indígenas bloquearam a estrada em direção à cidade de Corumbau (BA). “E agora estão juntando indígenas da região toda aqui na retomada, chegando gente de tudo quanto é lugar”, conta a liderança Pataxó.
Auto-demarcação
O ataque, para o cacique, é uma tentativa de intimidação por parte de fazendeiros e pistoleiros ao processo de auto-demarcação do povo Pataxó, que está sendo feito desde 2000 e se intensificou nos últimos três meses, com cinco retomadas.
A TI Comexatibá Cahy Pequi – composta por nove comunidades – já teve o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena (RCID) publicado pela Fundação Nacional do Índio (Funai), ainda em 2015. Apesar disso, a retirada dos não indígenas da área de 28 mil hectares e a homologação não avançaram. Assim, os indígenas vêm recuperando suas terras por conta própria.
“Tem muita venda de terra dentro do território, exploração de madeira, de areia, construção civil irregular. A invasão está demais. Então a gente começou a ocupar pacificamente as áreas”, explica o cacique. Em 22 de julho, os Pataxó retomaram a fazenda Santa Bárbara. Desde então, afirmam estar sendo monitorados por drones. E em 3 de agosto, ocuparam a Fazenda Samambaia. Foi ali que, pouco tempo depois, houve o ataque.
“Nós estamos cercados de pistoleiros, de organizações criminosas dos fazendeiros: estamos acuados dentro do nosso território sagrado”, resume a liderança Pataxó.
Ao som de cantos tradicionais, Gustavo da Conceição foi enterrado na tarde chuvosa desta segunda-feira (5). Foto: Povo Pataxó
“A gente teme novos ataques, porque essas pessoas armadas estão dentro do território”, salienta outro indígena Pataxó da TI Comexatibá ouvido pelo Brasil de Fato. “O que a gente pede é que as autoridades olhem para o povo e para o que está acontecendo. As retomadas são de cunho legítimo. A gente precisa que a justiça se acione, senão vamos perder mais parente com bala na cabeça, bala no peito”, alerta.
“Botar só de fuzil no peito desses índios”, diz áudio
“Este ataque não é isolado, mas faz parte de uma série de atentados que têm se intensificado com o estímulo de Bolsonaro às milícias, que têm se organizado na região”, denuncia a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), mencionando o cerco de pistoleiros em torno da TI Barra Velha, ali perto.
Em um áudio que circula no whatsapp, um homem convoca para a ação violenta contra os indígenas. “Esses policial aí, esses veado não tá querendo resolver a onda aí. A gente vai descer, com nosso arrastão”, diz: “Botar só de fuzil no peito desses veado desses índio. Separar só as crianças, o que é de homem vai cair tudo na bala. Já que os polícia não quer resolver a gente vai resolver do nosso jeito, hein. Botar só de fuzil, nas caixa do peito, para vazar do outro lado”.
A voz do homem é similar àquela que narra um vídeo gravado na região no último 26 de junho. Ele registra um comboio de grandes caminhonetes numa estrada de terra. “Está se juntando os agropecuaristas do sul da Bahia, entendeu, todos os proprietários rurais se juntando para tirar da Fazenda Brasília os falsos índios”, explica o homem, e avisa: “Daqui para frente vai ser assim: invadiu a propriedade, vai cair para cima”.
Na ocasião, os fazendeiros reagiam à retomada que os Pataxó haviam feito, no dia anterior, de uma área reivindicada como território tradicional e que está no nome de Fazenda Brasília. Segundo a Federação Indígena das Nações Pataxó e Tupinambá do Extremo Sul da Bahia (Finpat), o comboio foi composto “por cerca de 200 fazendeiros, pistoleiros, milicianos e supostos policiais militares, portando arma de fogo de grosso calibre”. Naquele dia, sem ordem judicial, os Pataxó foram retirados da área.
Em carta lançada nesta segunda-feira (5), lideranças Pataxó das TI Comexatibá e Barra Velha expõem que “os atos violentos vêm sendo protagonizados pela mesma associação de fazendeiros”.
“É de conhecimento público, visto que a exibição de suas ameaças e atos violentos circulam nas redes de whatsapp da extrema direita bolsonarista locais e regional”, salienta a carta, lembrando que “muito desse material já foi anexado às denúncias que fizemos junto a Funai, MPF [Ministério Público Federal] e DPU [Defensoria Pública da União].
Milícia
“A população reconhece o envolvimento de policiais na milícia, articulados com fazendeiros bolsonaristas que têm realizado manifestações contra os indígenas e espalhado notícias falsas para difamar a legitimidade do movimento”, denuncia a Apib.
Segundo a articulação indígena, o grupo paramilitar se reúne periodicamente em uma sede chamada Casa Brasil, localizada na cidade de Teixeira de Freitas (BA). Ali, afirma a Apib, acontecem “encontros para mobilização da extrema direita, que conta com uma rede de sites e páginas propagadoras de notícias falsas para difamar a legitimidade do movimento. Esse grupo conta com o apoio de Nabhan Garcia, secretário do Ministério da Agricultura e do presidente Bolsonaro”.
Procurado pelo Brasil de Fato, o MPF informou que está “apurando os conflitos fundiários no sul da Bahia” e que mantém diálogo com lideranças indígenas, servidores da Funai e da Polícia Federal, “para avaliar todas as medidas cabíveis a serem adotadas”.
A Delegacia Territorial de Prado disse estar investigando a morte de Gustavo e que “os laudos periciais ajudarão na investigação do caso”. A Funai não respondeu até o fechamento desta matéria.
Comunicado Pataxó
Leia na íntegra abaixo o documento emitido pelas lideranças Pataxó:
Profundamente abalado(a)s, tristes e indignado(a)s com mais uma vítima assassinada pelas forças do latifúndio que imperam na nossa região, vimos a público denunciar e informar das violências ataques e tocaias que temos sofrido nestas duas terras indígenas, sobretudo, nos três últimos meses. Cientes de que embora, venham sendo praticadas por meio de diferentes estratégias que vão, desde as balas dos trabucos e fuzis, até as setas envenenadas das fakenews, mentiras calúnias e difamações, direcionadas para nossas lideranças. No intuito de espalhar desconfiança, deslegitimar o movimento indígena por auto demarcação da nossa terra.
Por isso, com o objetivo de informar e melhor esclarecer o que está se passando, vimos expor o seguinte. No dia 23 de Junho 2022 a Secretaria de Assuntos Indígenas do município de Prado-BA, em nota encaminhada ao MPF, informou a decisão consensuada entre as lideranças da aldeia Alegria Nova e o Senhor Rodrigo Carvalho. Detentor da posse subtraída de forma violenta da família da Senhora Julice e Elviro no ano de 2002. O acordo previa a desocupação da fazenda e sua restituição à Terra Indígena Comexatiba.
Com base nesse acordo que seria selado com a FUNAI e MPF, 160 parentes Pataxó resolveram auto demarcar pacificamente a área com a construção de suas moradias. Este acordo só durou três dias, o suposto proprietário (invasor) do antigo Pequi Velho, atual “Fazendo Santa Bárbara/ Santa Rita” desistiu do acordo. Após ter sido contatado pela organização dos fazendeiros armados que vinham divulgando nos seus grupos de whatsapp a promessa de transformar a região no mesmo campo de guerra instalado no Mato Grosso do Sul. Ostentando uma carreata com 60 carros de carroceiras com homens exibindo suas potentes armas.
Desde então, os parentes da área retomada passaram a ser vigiados por drones, dia e noite direcionados à área em questão. Descobriram neste movimento que na fazenda São Jorge vizinha e limitante com o Pequí Velho (Fazenda Santa Barbara /Santa Rita) pertencente à TI Comexatiba, havia sido instalado um depósito de armas e munição. Além de servir de alojamento para os pistoleiros e milicianos que passaram a monitorar as imagens captadas pelos drones que circulavam e continuam circulando no entorno.
É importante situar estes acontecimentos no quadro geral da campanha de ataques e violências que vêm sendo metodicamente planejados contra nós, povos indígenas do Brasil da Bahia, especialmente nesta região, com a anuência da FUNAI e omissão dos órgãos de segurança pública. Mais grave ainda, com participação de militares que ‘prestam serviços’ extras aos fazendeiros em conflito. Porque neste caso, os nossos adversários invasores de nossas terras indígenas Barra Velha e Comexatiba, são os mesmos, os atos violentos vêm sendo protagonizados pela mesma associação de fazendeiros já citada.
É de conhecimento público, visto que a exibição de suas ameaças e atos violentos circulam nas redes de whatsapp da extrema direita Bolsonarista locais e regional. Muito desse material já foi anexado às denúncias que fizemos junto a FUNAI, MPF e DPU. Pelo exposto, os parentes pressionados por recorrentes invasões violentas de sua vizinhança decidiram expulsar os pistoleiros e auto demarcar a Fazenda São Jorge para fazê-la cessar. Essa propriedade já cumpriu esta mesma função há vinte anos atrás, quando serviu de abrigo para a pistolagem contratada pelos fazendeiros do vale da microbacia do rio Cahy.
No ano 2000, sobe o domínio do vulgo Betão esta área invadida foi vendida para o Senhor Nem Gomes. Este Senhor cultiva a fama de não ter compaixão com índio e se arroga ao contar sobre supostos massacres que já executou no Estado do Pará onde tambem afirma ter muitas posses. Em linha com os ataques citados uma verdadeira máquina de fake news vem sendo operada nesta guerra sem fim. Principalmente, por políticos representantes das elites locais que se mobilizaram em torno de uma suposta matéria jornalística, prometida pelo senhor Juliano Ceglia.Outro ator que é por nós, considerado parte no conflito. Se, levarmos em conta que, segundo ele próprio informou, no seu instagram e por meio de outros meios de comunicação, também, é parente consanguíneo próximo dos Srs. Normando Carvalho e Rodrigo Carvalho, supostos proprietários das áreas em litígio, sobrepostas a TI Comexatiba, autodemarcada.
Este tal jornalista Juliano Ceglia, sob o pretexto de estar produzindo uma matéria para o programa “Domingo Espetacular” da Rede Record, fez contato e se aproximou de parentes e lideranças da Aldeia Águas Belas, até conseguir do cacique Baia a narrativa que queria para sustentar a tese que ele mesmo criou com os fazendeiros: a de que o movimento das retomadas não vem sendo feito por parentes indígenas, mas por não-índios, milicianos e criminosos infiltrados.
Não corresponde em nada, a verdade dos fatos, tampouco, a força da autodeterminação de nosso movimento para garantir minimamente nossos direitos, nossas Terras Indígenas. Apesar da Funai que, em vez de nos defender e proteger, tem demonstrado que se encontra totalmente aparelhada por aqueles que querem invadir nossas terras, nos exterminar.
Somos todo(a)s indígenas, indígenas Pataxó. Não há infiltrados neste movimento que realizamos pacificamente. O Cacique Baia e sua comunidade Aldeia Águas Belas vêm sofrendo as mesmas ameaças e os mesmos ataques que nós temos sido vitimados. É um parente reconhecidamente cooptado e afagado por fazendeiros e políticos locais, a exemplo da família Brito e do vereador bolsonarista de Prado Brênio Pires, invasor da área da Aldeia Tibá, protagonistas locais de vários ataques contra nós e nosso território.
Sua fala manipulada nos vídeos que o tal jornalista passou a veicular, não nos representa, tampouco, seu conteúdo corresponde à verdade dos fatos, nem sua veiculação teve nosso pleno e informado esclarecimento. O mais grave é que tudo isso serviu para atirar mais combustível na fogueira das violências autorizadas neste território, cujo consentimento vem sendo conquistado através de notícias, matérias caluniosas espalhadas nos grupos de wattsapp e redes sociais que só desqualificam nossas lideranças, aliado(a)s histórico(a)s e apoiadore(a)s locais.
Foi usando deste artifício de manipulação da opinião pública por meio da veiculação de supostos ‘vazamentos’ de trechos da matéria jornalística citada que ameaça ser veiculada no próximo domingo dia 11 de setembro, pelo próprio autor e suposto jornalista Juliano Ceglia que, na última madrugada do domingo dia 4 de setembro, o jovem Gustavo Silva da Conceição, foi cruelmente assassinado com vários tiros de fuzil disparados covardemente contra ele durante o ataque, enquanto dormia de madrugada.
Um verdadeiro massacre teria se consumado, caso os próprios combatentes não tivessem alvejado acidentalmente, dois de seus comparsas no grupo. Cuja estratégia se configurou numa verdadeira tática de guerra com o uso recursivo de equipamentos e tecnologias altamente sofisticadas, registradas somente nas ações da segurança pública, a exemplo do emprego de toucas ninjas, gás lacrimogênio, fuzil, escopetas calibre 12, rifles 38.
Por tudo isto, clamamos por justiça, que seja impedida a veiculação pela Rede Record ou qualquer outro meio de comunicação, da matéria caluniosa anunciada para o programa domingo espetacular. Que sejam identificados e criminalizados os assassinos de nosso(s) parente(s), os agentes locais que operam na propagação de mentiras e fakenews para dar suporte e justificar as violências. Que a polícia federal assuma o comando para desintrusão e retirada das milícias e pistoleiros contratados para espalhar a morte e o terror no nosso território, ao longo das estradas de servidão e acessos vicinais. Que a nossa Terra Indígena Barra Velha e Comexatiba seja, finalmente, demarcada!
Edição: Rodrigo Durão Coelho/ Brasil de Fato