Entrevista

Fala da Terra: filme exposto no Masp encena os sentidos da luta do MST

Criada por Bárbara Wagner e Benjamin de Burca junto ao Coletivo Banzeiros do MST, obra retrata uma geração que aprofunda raízes de resistência em meio à conflitos na Amazônia
Divulgação filme Fala da Terra (2022)

Da Página do MST

Se encerra neste domingo, 13 de novembro – na Sala de vídeo do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp) – a exibição do filme Fala da Terra (2022), obra criada por Bárbara Wagner e Benjamin de Burca junto ao Coletivo Banzeiros do MST.

Depois de mostra inaugurada no New Museum, EUA, o vídeo que teve sua estreia nacional no Masp, apresenta o trabalho do Coletivo Banzeiros. Um grupo de teatro composto pela Juventude do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do sudeste do Pará, região entre Marabá e Parauapebas – território emblemático da luta pela terra, onde ocorreu o Massacre de Eldorado dos Carajás, em 1996.

Os Banzeiros, que surgiram em 2016 – no marco dos 20 anos do Massacre de Eldorado – tiveram sua primeira experiência impulsionada pelo Coletivo Nacional de Cultura do MST, durante a encenação da peça “A Face da Justiça Burguesa”. E desde então, o grupo tem aglutinado a militância, principalmente da Juventude Sem Terra em imersões artísticas que experimentam diversas linguagens teatrais na construção de narrativas próprias.

Foi a partir dessas experiências artísticas de construção de sentidos da história da luta pela terra, que o Banzeiro Alan Leite – que encenou o filme – se aproximou do Movimento.  “Eu sou esse jovem que não conhecia o MST, e eu fui para o Movimento através das linguagens artísticas, sabe? Assim, eu me apaixonei pelo MST por causa disso” – conta, destacando a arte, a cultura e a educação enquanto elementos chaves de conexão com a militância.

O filme partiu do convite do duo de artistas Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, que há dez anos traduzem experiências antropológicas entre artistas populares de diversas linguagens tecendo narrativas densas, onde emergem identidades de um Brasil que precisa ser descoberto.

“Nós somos mediadores de fenômenos que a gente percebe e a gente se aproxima. A gente olha, a gente escuta, a gente aprende essas metodologias e junto a gente traduz isso para o audiovisual.”  – narra Bárbara.

A dupla desenvolveu um método de pesquisa a partir da investigação e observação documental, mas construindo a direção, o roteiro, os figurinos e trilhas sonoras em colaboração com os protagonistas de cada projeto.

“Tem uma densidade, parece que é só  um filme. Mas o filme não é o trabalho, o trabalho é o processo de fazer o filme juntos.” – expõe Benjamin, que conta que após ser exposto nos Estados Unidos e no Brasil, o vídeo ainda circulará em festivais, entre outros espaços culturais em outras partes do mundo.

Confira a entrevista com artistas*

BdF – Você acha que vocês conseguem ir em lugares que vocês não iriam de outra forma se não fosse por meio da arte?

Alan – A maioria do coletivo de juventude que assumiu o coletivo Banzeiro no início eram estudantes da universidade também e muitos deles – alguns em Geografia e outros em História – estavam concentrados na Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará, que é a Unifesspa, aqui em Marabá-AM. Então, dentro da educação do campo a gente começou a adentrar principalmente os muros da universidade, também com a linguagem, sempre através do coletivo Banzeiros. Por exemplo, quando tinha a abertura de algum  evento, a gente sempre era convidado pra participar. Então, a gente experimentava o público, a gente era bem recepcionado, convidado para eventos, não só nas nossas áreas, que também tem muito isso, da gente apresentar o teatro nas áreas do MST, mas também da gente adentrar os espaços institucionais dessa região.

BdF – E como você vê a importância da arte dentro do MST?

Alan – Hoje eu sou um jovem formado, tenho um curso superior. Sou formado em Educação do Campo, em Letras e Linguagens. E eu sou esse jovem que não conhecia o MST, e fui para o MST através das linguagens artísticas. Assim, eu me apaixonei pelo MST por causa disso. Então o MST trabalha muito bem isso com a juventude. Desde Sem Terrinha, a gente já começa a explorar o lado artístico do ser Sem Terrinha e na juventude não é diferente. Então, muitas pessoas que hoje vê o MST como um movimento político e cultural. E é muito por isso, nas linguagens artísticas, ele tem um poder muito grande nessa questão de aproximação das pessoas, por exemplo.

Então, o MST é cultura, também é arte, e tipo assim, o MST sempre foi assim. Desde o início da construção do MST teve a música, teve a poesia. É cultura e arte. Isso significa que o povo brasileiro não estava conhecendo, não conhecia o Brasil, não conhecia o MST e agora estão conhecendo o MST de fato, a partir das linguagens culturais. Principalmente agora que o MST está rompendo várias barreiras através de exposições que estão em Nova York, no Brasil. Enfim, teve o Ópera Café [Theatro Municipal de São Paulo]…

E isso se coloca muito importante para aproximação dos sujeitos também com o MST. Nesse período que a gente está de batalha das ideias, a arte ganha esse papel muito fundamental, importante para dialogar com a sociedade, para buscar novos sujeitos, inclusive para o MST.

Então, tem muitas pessoas se aproximando perguntando como eu faço para participar do MST? A gente pode ir se aproximando, que depois a gente vai levar o povo para construir também a reforma agrária popular, através da arte, da cultura, da ocupação de terra. Que isso a gente não pode deixar, o povo brasileiro sem ter o mínimo de arte e da cultura, e poder ter onde morar, sobreviver e ter o que comer. Então o MST é esse movimento cultural, que também é um movimento de luta pela Reforma Agrária no Brasil.

A nossa Regional Amazônica, que compõem os estados do Tocantins, Maranhão, Pará, Roraima e Roraima, tem uma prática muito forte nessa questão da mística da prática das linguagens artísticas. E esse é o coletivo da juventude de sonhadores que pretendem construir o Movimento Sem Terra na região amazônica, que é uma região que, enfim, é muito conflituosa. Essa notoriedade que estamos ganhando é romper cercas dessa região. Então, a gente precisa ocupar esses espaços. O MST é arte, sim. E a gente precisa estar o tempo todo ocupando os espaços que sempre foram da elite burguesa.

Bastidores do Fala da Terra. Foto Benjamin de Burca

MST – Tu pode contar como começou sua relação com a arte, até essa trajetória que perpassa o Fala da Terra?

Benjamin – Eu sou na verdade da Irlanda. Nasci na Alemanha, mas cresci na Irlanda. E fui formado em artes plásticas na Escócia e Irlanda do Norte, em Belfast, onde estudei várias áreas e métodos de pintura, fotografia, música, arte e onde também montei exposições de outras pessoas, fazendo eventos, trabalhando na comunidade e também como artista que é. O que é muito bom e interessante é que isso tem muito a ver com o trabalho que o Coletivo Banzeiros também faz. Só que num outro contexto completamente o ensino das classes mais urbanas. Então, eu tenho várias relações em vários cantos que também me formou. Bem como o trabalho que eu e Bárbara temos juntos na obra, ela como jornalista, formada em jornalismo e eu como artista, ou seja, uma pessoa formada em artes plásticas. E quando a gente junta as coisas, a gente leva todas essas perspectivas também para fazer novos trabalhos e para aprender.

E a arte é para comunicar, a arte e uma conversa, não é necessariamente um objeto feito e pronto para exibir, mas é todo o diálogo que acontece ao redor.

A conferência do objeto, ou da peça, poesia ou pintura, isso não faz muita diferença. O que faz toda a diferença, na verdade, é o que também marca o trabalho entre Bárbara e eu. Que é essa perspectiva de trabalhar em colaboração e levar todos os esforços de todas as pessoas e todas experiências por trás disso. E chegar em um resultado que até todo o mundo tem uma ideia, mas ninguém sabe o que vai acontecer. É meio arriscado, mas é lindo. E a gente trabalha há dez anos juntos, eu e Bárbara desenvolvendo esses métodos de trabalhar intuitivamente com outras pessoas.

Então, o filme também mostra que há diálogo através da arte e é muito importante. A gente entendeu isso como um prático e eu acho que isso está em todos os seriados. Como o MST, também envolve a arte em integral no processo de informação, no processo de entendimento sobre, e também apresentando um  grande leque dos assuntos e questões importantes sobre si e na matéria. Obviamente sobre a luta da terra e a dignidade que todo o mundo tem que ter, o respeito dos outros, pessoas, se for LGBT, se for por classe tudo, se for raça… Então, eu me identifiquei muito com isso. Com essa possibilidade de usar a arte para ensinar, para instrumentalizar um mundo melhor, basicamente.

MST – Como começou a feitura do filme? Como foi essa experiência?

Bárbara – No início da nossa pesquisa era o comecinho do mês de março. E a Maria Raimunda, que é essa liderança brilhante, a gente conhece ela nessa articulação que a gente construiu com o coletivo Banzeiro. É assim que a gente chegou nela ela. Para além de nos dar essa contextualização, porque ela imediatamente disse Vocês vão ter que conhecer esse território, né? Foi muito bonito. A gente se encontrou na Secretaria de Cultura do movimento em Marabá. O Alan, a Maria Raimunda, a Luciana, também do coletivo, estavam presentes e a gente entendeu onde a gente estava. Uma das primeiras coisas que ela fez foi convidar a gente para uma mobilização que estava acontecendo na cidade de Estreito, exatamente de mulheres organizadas. Era o 8 de março, sobretudo mulheres ribeirinhas, que tinham sofrido com, enfim, o. O avanço do rio no território da comunidade ribeirinha, exatamente na cidade de Estreito. Então a gente participou de um ato. A gente estava exatamente ali, atravessando uma ponte, fazendo parte dessa mobilização. Assistimos a nossa primeira mística, organizada ali por Maria Raimunda, com uma grande parte dos Banzeiros e as mulheres ribeirinhas que estavam, enfim, tanto participando quanto eram espectadores dessa mística ali. A experiência do filme foi  transformadora.

Eu tenho uma formação no jornalismo. Comecei a trabalhar com fotografia na cidade do Recife [PE] no comecinho dos anos 2000. Fiz talvez parte dessa geração que aprendeu a usar a fotografia digital. Então, parte das minhas investigações no campo do retrato documental foi exatamente a partilha do resultado da produção da imagem, que eu poderia compartilhar com a pessoa fotografada e, assim, criar em parceria uma uma cena. Eu acho que esse aprendizado, que é muito interessante, e que tem tudo a ver com o que a gente acompanha hoje, das gerações que estão aí produzindo vídeos. E é tanto conteúdo a partir dos celulares, das redes sociais. Isso no comecinho dos anos 2000 era uma novidade.

Eu sentia a necessidade de trazer para o campo da informação, da comunicação jornalística algo que exatamente trouxesse o fotografado, o personagem da imagem como um componente de fala, de presença e de participação. Então, eu acho que, intuitivamente, eu já estava ali também aprendendo o que é a construção de algo ou a desconstrução, talvez, de imagens que se formam partindo de um ponto só. 

Então a imagem do MST – que já tem um movimento tão importante, que já tem quase 40 anos com uma prática artística tão fundamental para a organização – tem, ainda no começo de 2020, um estigma da violência, das ocupações, na grande imprensa, vamos dizer assim. Talvez no imaginário da maioria do povo brasileiro, a prática artística do Movimento e a prática pedagógica do Movimento não fosse tão difundida. Então, eu junto com o Benjamim e com o Pedro Sotero – que é o fotógrafo, o diretor de fotografia que trabalha com a gente desde o início da nossa parceria – a gente veio chegando perto dessas questões.

Quem são esses artistas que estão fora do circuito, que estão conseguindo se organizar, criar novas formas de resistência e sobrevivência a formas de governo tão excludentes? O próprio sistema da arte, sendo a arte como a gente entende das grandes instituições sendo tão elitista e tão excludente. Então, a gente sempre teve muito interesse em escutar, em observar e aprender junto com artistas de outros, de outros circuitos. […]

Então, a gente se interessou até hoje muito por essa política, do gesto, da voz,  desse corpo que está fora do circuito, mas que faz arte para sobreviver, para se organizar. E quando a gente chega em 2021, já quase saindo da pandemia, o  Movimento Sem Terra está estrategicamente muito visível nas cidades. E  cuidando muito da ideia de que o povo precisa comer. Então, há a presença do Movimento na cidade, como no Recife, por exemplo, estava muito forte, estava muito na cara da gente que o Movimento é algo que o Brasil precisa conhecer de perto, né? E então a gente começa a investigar.

Teaser Fala da Terra (2022)

*Entrevista concedida por Alan Leite, Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, conduzidas por Lays Furtado (MST) e Luana Ibelli (Brasil de Fato).