Marrocos
Direto do Saara Ocidental: conheça a luta da última colônia da África
Por Michele de Mello
Do Brasil de Fato
No meio do deserto do Saara, há um povo de quase meio milhão de pessoas que resiste. Com o lema “intensificar a luta armada para expulsar o invasor e culminar a soberania”, a Frente Polisário, organização política que dirige a República Árabe Saaraui Democrática (RASD), realiza seu 16º Congresso em Dajla – um dos cinco acampamentos de refugiados saarauis na cidade de Tindouf, Argélia. Depois de 30 anos de cessar-fogo, este é o primeiro Congresso realizado novamente em situação de guerra com o Marrocos.
“Todos os recursos humanos, financeiros, materiais vão orientados a apoiar o combate na frente armada. Antes orientávamos em outros campos que continuarão, mas devemos centrar no campo de batalha”, diz taxativo o primeiro-ministro da RASD, Bucharaya Beyun.
A República Saaraui foi fundada em 1975, após conquistar sua independência da Espanha. Depois de expulsar os espanhois, o povo saaraui passou a lutar contra a invasão do Marrocos, que buscava anexar seu território de cerca de 266 mil km², no norte da África, rico em fosfato e com uma vasta costa marítima voltada para o Atlântico.
Derrotado na guerra, em 1991, o Marrocos assinou um acordo de cessar-fogo com os saarauis, prevendo a realização de um referendo popular, mediado pela Organização das Nações Unidas (ONU), que selaria a independência do Saara Ocidental. À época, foram entregues 2.500 soldados marroquinos que haviam sido capturados pelo Exército Popular de Libertação Saaraui (EPLS). Em troca, o reino de Rabat deveria libertar cerca de 600 presos saarauis, mas só entregou 200 pessoas.
De lá para cá, os dirigentes da Frente Polisário vinham optando pela via diplomática para retomar o controle do seu território. Além de colocar travas para a realização de um referendo sobre a independência do território, prometido há décadas, em novembro de 2020, o Marrocos voltou a bombardear o povo saaraui na região conhecida como “fenda de Guerguerat”, um acesso entre o deserto do Saara e o Atlântico.
Congresso
Entre os dias 13 e 17 de janeiro, 2 mil delegados, vindos de todos os acampamentos de refugiados e do território saaraui ocupado, estão reunidos para eleger o próximo presidente, o secretário-geral da Frente Polisário e definir as táticas políticas dos próximos três anos de luta armada.
Tata Salek é uma das delegadas eleitas da Frente Polisário para participar do Congresso. Nascida em um dos acampamentos de refugiados, aos 20 anos, esta é a primeira vez que ela participa do principal evento político do povo saaraui. “Nós jovens nos sentimos muito orgulhosos de participar, apoiar a nossa gente e ter a oportunidade de estarmos mais preparados para o debate. Quero seguir participando e espero que possamos realizar o próximo congresso na nossa terra”, afirma Tata.
Além dos delegados, o Congresso recebeu mais 300 visitantes internacionais, representando países aliados e associações de solidariedade. Os dois primeiros dias foram abertos para receber as saudações dos convidados internacionais, já os últimos dias são fechados aos delegados. Todo o evento, no entanto, é transmitido ao vivo para todos os acampamentos de refugiados pela TV Arasdtb, canal estatal saaraui.
“Estamos em tempos de guerra, então o Congresso está mais voltado para a luta armada. Já são mais de 40 anos debatendo saídas políticas que não levaram a lugar algum. Então tanto as mulheres, como homens e jovens, têm a mesma ideia de retomar as armas para liberar nosso território”, defende Tata Salek.
Para ela, o papel central das mulheres e da juventude será a batalha comunicacional.
“A diplomacia, liderada pelos homens antes da guerra, agora será uma tarefa central das mulheres. Nas redes sociais e em viagens internacionais. Ainda que as mulheres também possam lutar, nossa causa não impede que as mulheres participem do combate, mas agora estamos voltadas para a luta comunicacional, em visibilizar nossa causa em outros países”, afirma a jovem saaraui.
História
Com um dos conflitos de independência mais longos da história, o Saara Ocidental abrange um território desértico com 266 mil km² ao norte da África, fazendo fronteira com o Oceano Atlântico, Marrocos, Argélia e Mauritânia. O povo saaraui representa uma população de cerca de 600 mil habitantes, sendo 260 mil nos acampamentos de refugiados na Argélia, cerca de 200 mil no território liberado e outros 100 mil no exílio. O Saara Ocidental possui as maiores jazidas de fosfato do mundo, além de reservas de cobre, urânio e ferro.
A Espanha se apoderou do território em 1885, em 1950 o Saara perdeu o caráter de colônia e passou ser considerada a 53ª província da Espanha. A partir de 1963, o Saara Ocidental tornou-se um dos 17 territórios não autônomos reconhecidos pela ONU — e o mais populoso deles. A lista inclui lugares como as Ilhas Malvinas, Bermudas, Gibraltar e as Ilhas Caimã.
Somente em 1975, a Espanha assinou o acordo de independência, por isso o Saara Ocidental é considerada a última colônia do continente africano. O acordo inicial previa respeitar as fronteiras herdadas do período colonial, mas o interesse nas reservas de fosfato e na costa rica em frutos do mar com acesso às Ilhas Canárias e Celta fizeram com que o governo espanhol violasse o pacto.
Na época, o governo espanhol assinou o Acordo de Madri, entregando a parte norte do território do Saara Ocidental ao Marrocos e o sul à Mauritânia.
Em outubro de 1975, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) sentenciou que não havia lastro legal para a anexação do Saara Ocidental pelo Marrocos e pela Mauritânia, que haviam promovido a ação na Corte de Haia.
Diante da derrota nos tribunais, o rei Hassan II, de Marrocos, iniciou a Marcha Verde sobre o Saara Ocidental, enviando 350 mil civis e militares para invadir e colonizar o território saaraui.
Em 1979, a Mauritânia se retirou do conflito, após ser derrotada pelo Exército de Libertação da Frente Polisário.
Foram cerca de 10 mil mortos em 16 anos de guerra até a assinatura do acordo de cessar-fogo em 6 de setembro de 1991. Um dos termos acertados era a realização do referendo sobre a independência do território, que nunca foi feito de fato.
Em 1991, a ONU criou a Missão de Paz para o Saara (MINUSRO), que seria responsável pela convocatória do plebiscito sobre a autodeterminação do povo saaraui. Quando terminaram o censo para a votação, o Marrocos passou a exigir que toda a população residente no Saara Ocidental, incluindo os colonos marroquinos, pudesse votar, já a Frente Polisário só aceita que sejam os habitantes contados no censo de 1974, antes da Marcha Verde.
Desde o acordo de cessar-fogo, dois terços do território, incluindo a maior parte da costa atlântica, é controlado pelo reino marroquino, com apoio tácito da França, dos Estados Unidos e de Israel.
Em novembro de 2020, com a ruptura unilateral do cessar-fogo pelo lado marroquino, o EPLS decretou estado de guerra e passou a revidar com bombardeios nos muros levantados pelo Marrocos.
Frente Polisário
A Frente Popular de Libertação de Saguía el Hamra e Rio do Ouro (Polisário) foi criada em 1973, inspirada no Movimento de Países não Alinhados (MNOAL). O objetivo foi unificar movimentos e partidos políticos saarauis em um único instrumento político em torno da luta pela independência da Espanha.
A estrutura engloba a União Nacional de Mulheres Saarauis (UNMS), a Liga de Proteção dos Presos Políticos Saharauis nos Cárceres Marroquinos (LPPS), uma frente juvenil e o Exército de Libertação Popular Saharaui. Ao proclamar a República Árabe Saaraui Democrática, em 27 de fevereiro de 1976, a Frente instalou um governo no exílio na cidade de Tindouf, Argélia.
Já nos primeiros dez anos após o fim da colônia, a RASD ganhou o reconhecimento formal de 46 estados e foi aprovada sua adesão à União Africana.
“A Frente Polisário tratou de criar um Estado em situação anormal e conseguiu. Nosso governo tem relações diplomáticas, vários ministérios, contato com outros países, e este é nosso caminho. A diferença é que agora precisamos colocar mais esforços na frente militar”, defende o primeiro-ministro Beyun.
Relação com o Brasil
Hoje 82 países reconhecem a independência do Saara Ocidental. Na América Latina, o primeiro país a estabelecer relações diplomáticas com a República Árabe Saaraui foi o Panamá, ainda em 1978. Somente Brasil, Argentina e Chile mantém uma posição de neutralidade. Os outros Estados reconhecem o direito do povo saaraui sobre seu território.
Em 2022, com a ascensão de governos progressistas, Peru e Colômbia retomaram relações diplomáticas, enquanto a Bolívia promete a abertura de uma embaixada saaraui em La Paz neste ano.
“Nossa estratégia é seguir o combate e, paralelamente, avançar na estratégia diplomática, buscando mais reconhecimento. Já na política interna, queremos potencializar a educação, o trabalho com as mulheres e a juventude. Queremos ganhar em todas as frentes, não apenas no combate. Queremos garantir uma vida digna às pessoas”, conclui o premiê saaraui.
O Brasil mantém uma posição de neutralidade em relação ao status diplomático da República Saaraui. Em 2019, uma militar brasileira, a capitã Andrea Firmo, chegou a chefiar a MINUSRO, em Tifriti. Já em 2021, o país doou US$ 100 mil ao Programa Mundial de Alimentos da ONU, direcionados aos acampamentos de refugiados em Tindouf.
“Esperamos que Lula, quem conhece a causa saaraui, esteja do nosso lado, que Brasil reconheça a República Árabe Saaraui e esperamos abrir uma embaixada em Brasília”, disse o representante da Frente Polisário para o Brasil, Ahmed Mulay Ali Hamadi.
Edição: Thales Schmidt e Flávia Chacon